NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

OPINIÃO

Por Patrícia Ferreira Muzzi, Filipe Soares Cândido e Isabela Antônia Rodrigues de Almeida

O nomadismo encontra as suas raízes migratórias desde a pré história. Gradualmente, no decorrer da história da civilização, os nômades se tornaram seminômades e firmaram como sedentários na sociedade civilizada [1]. Tal parâmetro se modificou significativamente em decorrência do surgimento era digital, caracterizada por uma geração que convive com a alta tecnologia, forte adesão a essas e uma grande quantidade de informações disponibilizadas, principalmente em decorrência do acesso pela internet, que remodelou as relações sociais.

 

Nesse cenário, surgiram os nômades digitais, definidos como profissionais que não estão limitados à localização geográfica, por conseguinte, estão desvinculados de limitações espaciais, bem como possuem a capacidade de conciliar viagens e o trabalho virtual com o auxílio da tecnologia [2]. Exatamente por isso que se tem usado o termo “nômade” para referenciar esse modelo de trabalho moderno, posto que, conforme a origem dessa palavra que advém de “nomas”, que significa pastagem em latim, esses indivíduos são livres para se deslocarem geograficamente.

 

Aqui, crucial destacar que o nômade digital é distinto do trabalhador móvel, visto que para este não há como requisito um deslocamento para lugares como elemento da atividade laboral, para que então possa exercer essa atividade, o trabalho daquele é exercido durante esse deslocamento. Da mesma forma, os nômades digitais se diferem dos trabalhadores home office, pois a execução do trabalho pode ser realizada em qualquer local além da casa do trabalhador, a exemplo, de cafés que possuem espaço para as pessoas possam trabalhar, com acesso à internet, evento este denominado coffee office.

 

Nota-se que há uma significativa flexibilização do trabalho exercido pelo nômade digital, visto que o “trabalho é empacotado com a mala de viagem, e o mundo torna-se o escritório do indivíduo que adota esse novo estilo de vida” [3]. O limite de realização se encontra na capacidade de conexão com a internet e na possibilidade de o negócio ser exercido pelos meios digitais. Por isso, essa forma de trabalhar não é compatível com qualquer profissão, tendo sido explorada por aquelas tipicamente digitais, como designer e programador e outras não tão típicas, mas com a modificação do modelo de trabalhar em decorrência das restrições advindas pela pandemia da Covid-19 puderam pensar esse novo modelo, como os advogados, profissionais da área da saúde, como psicólogos, nutricionistas e até mesmo médicos, através de consultas virtuais. As profissões em que não é possível exercer o trabalho fora do ambiente presencial estão longe de se pensar o modelo de nômades digitais.

 

Como mencionado, a Covid-19 acelerou o fenômeno da mobilidade global digital da qual os nômades digitais fazem parte, de maneira que conforme o Relatório Global de Tendências Migratórias de 2022 da Fragomen, especializada em imigração, tem-se que 35 milhões de profissionais já atuam dessa forma pelo mundo e esse número poderá chegar a um bilhão em 2035 [4].

 

O Brasil, assim como outros países, entrou para a rota do nomadismo digital. Em janeiro de 2021 foi publicada a Resolução CNIG MJSP nº 45/2021 que dispõe sobre a concessão de visto temporário e de autorização de residência para imigrante, sem vínculo empregatício no Brasil cuja atividade possa ser realizada de forma remota.

 

A resolução define o nômade digital como o “imigrante que, de forma remota e com a utilização de tecnologias da informação e de comunicação, seja capaz de executar no Brasil suas atividades laborais para empregador estrangeiro”. Para fins de comprovação dessa condição é necessário apresentar documentação vasta, dentre os quais se destaca a “declaração do requerente que ateste a capacidade de executar suas atividades profissionais de forma remota, por meio de tecnologias da informação e de comunicação” e “comprovação de meios de subsistência, provenientes de fonte pagadora estrangeira, em montante mensal igual ou superior a US$ 1.500 ou disponibilidade de fundos bancários no valor mínimo de US$ 18.000”.

 

Destaca-se que segundo o levantamento da Fragomen, há 23 países que possuem programas nesse modelo e, como regra geral, “todos pressupõem que o trabalhador não esteja vinculado a uma empresa local, o que não faz concorrer com a mão de obra do país, e que receba em moeda estrangeira” [5].

 

Ainda que não seja um fenômeno novo, como destacado, a aderência ao estilo de vida e de trabalho dos nômades digitais cresceu de maneira exponencial nos últimos anos e ainda são incertas as suas regulamentações, sobretudo quanto aos aspectos trabalhistas e tributários. Nesse sentido, é necessário delimitar esses aspectos nos cenários possíveis.

 

Aspectos trabalhistas

Diante ao referido crescente fenômeno, diversos questionamentos surgiram sobre a aplicação da legislação trabalhista aos nômades digitais vinculados a empresas brasileiras.

 

Inicialmente, importante esclarecer que o Direito do Trabalho brasileiro se aplica às relações de trabalho legalmente especificadas, que ocorram dentro do espaço interno do território do Brasil.

 

Assim, realizando-se o contrato de trabalho dentro das fronteiras brasileiras, não há dúvida de que se submete, plenamente, de maneira geral, à ordem jurídica trabalhista pátria. Trata-se da incidência do princípio da soberania, aliado ao critério da territorialidade, de modo a assegurar o império da legislação nacional em cada Estado independente.

 

Contudo, com relação aos empregados que prestam serviços no estrangeiro, durante muitos anos aplicou-se o critério da territorialidade, reconhecido pela Convenção de Direito Internacional Privado de Havana, ratificada pelo Brasil. Neste mesmo sentido, a jurisprudência havia fixado a tese segundo a qual “a relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação do serviço e não por aquelas do local da contratação” (antiga Súmula nº 207, TST, editada em 1985; cancelada em 2012).

 

Com o advento da Lei n° 11.962/2009, que estendeu a abrangência da Lei n° 7.064/82, o critério da norma mais favorável substituiu o critério da territorialidade, sendo, inclusive, aplicável para todos os trabalhadores transferidos para o estrangeiro, além daqueles contratados diretamente para lá trabalhar.

 

Assim, os contratos de trabalho passam a se submeter à legislação brasileira — naquilo que não for incompatível com o disposto na Lei n° 7.064/82 — quando mais favorável do que a legislação territorial estrangeira, observado o conjunto de normas em relação a cada matéria (artigo 3º, II, Lei n° 7.064).

 

Nesse aspecto, em regra, devem ser avaliadas as normas mais favoráveis em um contexto micro e macro da análise jurídica, comparando os dois ordenamentos, tanto o brasileiro quanto o do país em que está sendo executada a prestação de serviços.

 

Neste cenário, considerando as inseguranças que tais regras podem gerar, a depender do caso concreto, recomenda-se a elaboração de um contrato contemplando toda as condições e particularidades que deverão ser observadas pelas partes.

 

Registra-se, inclusive, que, caso o trabalhador se amolde ao conceito de empregado hiperssuficiente (portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social), a legislação confere uma maior amplitude do poder de negociação entre as partes.

 

Contudo, o tema ainda é recente e pouco explorado pela doutrina e jurisprudência, sendo certo que diversas questões envolvendo a prestação de serviços dos nômades digitais ainda serão debatidas nas cortes brasileiras, de forma que ainda paira entre as empresas a insegurança decorrente da lacuna legislativa.

 

Por fim, no tocante à situação migratória desses trabalhadores, diversos países, dentre eles o Brasil, vêm regulando modalidades de vistos para viabilizar a permanência temporária do nômade digital.

 

Assim, trabalhadores vinculados a empresas estrangeiras poderão ter concedido um visto ou residência provisória no Brasil desde que atendidas as exigências elencadas na a Resolução CNIG MJSP nº 45, de 9 de setembro de 2021. O prazo inicial do visto temporário para nômades digitais bem como da concessão de residência provisória pode ser de até um ano, prazo este renovável por igual período.

 

Aspectos tributários

Destaca-se que a formalização de contrato de trabalho dos nômades digitais implica em auferir renda (salário, lucros, bonificações, etc.), que estará sujeita aos impactos da legislação tributária, notadamente quanto à apuração de imposto de renda.

 

Nesse aspecto, é sabido que as regras quanto à apuração do imposto de renda dependem de fatores subjetivos que delimitam a relação do nômade digital entre o seu país de origem e seu país destino, como, por exemplo, em que país está localizada a sede do contratante, se autônomo, qual seu status no país de origem e de destino (residente ou não-residente) ou, ainda, qual seria a relação entre esses países, especialmente se possuem acordo de não bitributação entre si.

 

Para se evitar problemas com o Fisco, no caso do Brasil, aqueles que pretendam sair provisoriamente ou definitivamente do país, devem transmitir ao Fisco a Declaração de Saída Definitiva do Brasil, prevista na Instrução Normativa RFB nº 208/2002, sob pena do pagamento de multa.

 

Quanto à tributação em si, se a pessoa que deixou de residir no país estiver contratada por empresa brasileira ou sediada no Brasil, ou no caso de não-residente mas que tenha auferido renda no território brasileiro, estão sujeitos a incidência do imposto de renda retido na fonte, de maneira que os rendimentos decorrentes do contrato de trabalho estão sujeitos à alíquota de 25% deste imposto, conforme artigo 36 da IN SRF nº 208/2002 [6], ressalvados os casos do artigo 37 desta norma.

 

Se a situação for contrária, o trabalhador que optou por residir no Brasil e recebe rendimentos do exterior, deverá realizar a apuração e pagamento do imposto de renda na data do recebimento dos rendimentos (carnê leão), utilizando-se a tabela progressiva mensal vigente no mês de recebimento dos valores [7] (artigo 16, §5º, da IN SRF nº 208/2002).

 

Importante ressaltar, que da mesma forma que a legislação tributária brasileira buscará tributar os rendimentos que entrem e saiam do país, as outras nações também o farão. Por isso, antes de tudo, é importante o nômade digital verificar se o seu país possui acordo de não bitributação com o país de destino, o que evitará a duplicidade do pagamento de imposto da mesma renda.

 

O Brasil, atualmente, possui acordo de não bitributação com 37 países, a exemplo da Alemanha, Canadá, França e Portugal, em que são tratadas questões referentes ao status do cidadão em cada país e, principalmente, trata sobre as regras que afastarão a cobrança de imposto de renda pelas duas nações envolvidas sobre o mesmo rendimento.

 

Se não houver acordo entre os países, como ocorre entre o Brasil e os EUA, por exemplo, a legislação pode estabelecer um crédito entre o imposto de renda já recolhido e aquele ainda devido, de forma que o nômade digital arque apenas com a diferença de alíquotas deste tributo nas diferentes nações, como disposto no Ato Declaratório SRF nº 28/2000. Dessa forma, o Estado brasileiro reconhece o imposto pago nos Estados Unidos e permite a sua dedução com o tributo devido no Brasil.

 

Considerações finais

Em resumo, ainda que o mundo globalizado e conectado digitalmente permita maior flexibilidade dos ambientes de trabalho, o sistema tributário ainda é rígido, ante ao ímpeto arrecadador dos Estados (Nações).

 

Portanto, antes de qualquer movimento para mudar de país, ainda que flexíveis as condições de trabalho, o nômade digital deverá verificar quais os impactos tributários e trabalhistas (como vistos específicos) que essa mudança pode acarretar, inclusive para que possa entender se economicamente será viável, pois a simples alteração do endereço para outro país pode acarretar a majoração dos tributos incidentes sobre os rendimentos recebidos.

 


[1] SANTOS, Nayane de Castro. A experiência no destino e o impacto na qualidade de vida de nômades digitais. Dissertação (Mestrado), Belo Horizonte/MG, Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, 166f, 2021, P. 23.

[2] SANTOS, Patrícia Matos dos. Nômades Digitais: um estudo etnográfico sobre trabalho móvel contemporâneo e estilo de vida. Tese (Doutorado), Niterói/RJ, Programa de Pós-Graduação em comunicação, Universidade Federal Fluminense, 204f, 2020, P. 58.

[3] SANTOS, 2021, op. Cit., p. 25.

[6] Artigo 36. Os rendimentos do trabalho, com ou sem vínculo empregatício, e os da prestação de serviços, pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a não-residente sujeitam-se à incidência do imposto na fonte à alíquota de 25%, ressalvado o disposto no artigo 37.

[7] Artigo 16. Os demais rendimentos recebidos de fontes situadas no exterior por residente no Brasil, transferidos ou não para o país, estão sujeitos à tributação sob a forma de recolhimento mensal obrigatório (carnê-leão), no mês do recebimento, e na Declaração de Ajuste Anual.

 

(…)

 

§5º O imposto relativo ao carnê-leão deve ser calculado mediante utilização da tabela progressiva mensal vigente no mês do recebimento do rendimento e recolhido até o último dia útil do mês subseqüente ao do recebimento do rendimento.


 é advogada da área de Direito do Trabalho do VMS Advogados, pós-graduada em Governança, Riscos, Compliance e Controles com ênfase em Direito e Compliance Trabalhista pela Faculdade Arnaldo e membro da Oficina de Estudos Avançados “As Interfaces entre o Processo Civil e o Processo do Trabalho” (IPCPT).

 é advogado da área de Direito Tributário do VMS Advogados e pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

 é advogada da área de Direito Tributário do VMS Advogados e membro do Centro de Estudos de Mercado de Capitais e Financeiro (Cemc).

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-out-14/opiniao-nomade-digital-aspecto-trabalhista-tributario