NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Por Ingo Wolfgang Sarlet

A fixação do valor equivalente a 25% do salário mínimo (atualmente R$ 303) como uma garantia do assim chamado “mínimo existencial” pelo Decreto 11.150/2022, que regulamenta a Lei 14.181/2021 (Lei do Superendividamento), como era de se esperar, não poderia deixar de causar reações imediatas por parte da comunidade jurídica, tanto é que não tardou para que a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos e a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público aforaram duas demandas no STF, respectivamente, a ADPF 1.005 e a ADPF 1.006.

 

 

Antes disso, o Ministério Público Federal já havia defendido, em nota técnica (15/8/2022), a revisão do referido decreto, não só, mas para o nosso propósito aqui, precisamente quanto à fixação do valor do “mínimo existencial”, que corresponde — nos termos da normativa citada —  à quantia mínima da renda de uma pessoa para pagar as despesas básicas, não podendo ser utilizado para a quitação de débitos. Segunda a nota técnica, mediante a fixação de valor tão irrisório, o governo federal acabou por desvirtuar a intenção original do legislador, abrindo caminho para um endividamento maior dos consumidores, ao invés de assegurar o contrário. Ainda segundo a nota técnica “é notório que tal valor é irrisório para a assunção realizável dos compromissos domésticos mais basilares”. “Além disso, a ampla margem disponibilizada para endividamento não contribuiria para a sustentabilidade nem das relações de consumo, nem do mercado de crédito.”

 

Dentre os argumentos esgrimidos nas peças vestibulares das duas demandas, as associações autoras destacam a absoluta dissonância do valor estabelecido com a realidade atual brasileira, tendo em conta que – tomando por base a estimativa do Dieese —  na ocasião da propositura das ações o valor da cesta básica era de R$ 663, o que, por sua vez, representa mais da metade do valor atual do salário mínimo (R$ 1.212). Por isso, a fixação do montante do “mínimo existencial” em 25% do valor do salário-mínimo representa frontal violação do princípio da dignidade da pessoa humana.

 

O tema, como adiantado, já foi e ainda tem sido amplamente discutido, não sendo poucas as notícias, opiniões, colunas, notas técnicas e pareceres produzidos por diversos atores do mundo do direito, inclusive por nomes de reconhecida reputação na área da proteção do consumidor. Nesse sentido, sem qualquer pretensão de esgotar as referências, faz-se alusão às Notas Técnicas elaboradas pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), firmada pelo seu diretor-presidente (membro do Ministério Público e professor) Fernando Rodrigues Martins,  e do Instituto de Defesa Coletiva, de Belo Horizonte, respectivamente publicadas em 27/7/2022 e 29/7/2022, bem como às excelentes manifestações do Professor Marcelo Schenk Duque, do Rio Grande do Sul (reportagem publicada no periódico Migalhas, em 5/8/2022), da professora e magistrada Gaúcha Káren Rick D. Bertoncello (opinião publicada na ConJur em 30/7/2022) e da advogada e presidente do Comitê Técnico do Instituto de Defesa Coletiva, Lilian Salgado, na ConJur, em 19/8/2022.

 

Calha sublinhar, ainda nesse contexto, que a infame — para dizer o mínimo — normativa do governo federal, de acordo com matéria da autoria de Luiz Fernando Baby Miranda e Maria Paula Bertran, veiculada pela Folha de S.Paulo em 28/7/2022, possivelmente criou uma espécie de escravidão moderna. De acordo com trecho que aqui tomamos a liberdade de transcrever,

 

“o crédito pode oferecer liberdade. O crédito irresponsável pode oferecer cativeiro. A lei planejava compartilhar a responsabilidade do crédito entre aqueles que o recebem (a população) e aqueles que o ofertam (os bancos e os arremedos de bancos: lojinhas de crédito, correspondentes bancários e agiotas em vestes de fintechs). Na prática, o decreto plúmbeo vai suplantar a lei que se pretendia redentora. A determinação do mínimo existencial tem tudo para, de forma cruel, economicamente errada e socialmente injusta, criar uma forma de escravidão moderna de nossa população.”

 

À vista do exposto, o que pretendemos, na coluna de hoje, é apenas fazer coro com as manifestações acima referidas e tantas outras vozes que se tem pronunciado de modo crítico relativamente à — diria não somente infame, mas revoltante —  regulação do valor do que, como já amplamente apontado nas ações, notas técnicas e matérias colacionadas, impropriamente tem sido designado de mínimo existencial, distorcendo por completo um conceito que, ainda que indeterminado e controverso quanto ao seu conteúdo e função na ordem jurídico-constitucional, designadamente na sua articulação com a dignidade da pessoa humana e outros direitos humanos e fundamentais, não pode, como é mais do que sabido, ser confundido com o que se chama de mínimo vital.

 

Aliás, seja na esfera doutrinária, seja em sede jurisprudencial — destaque para o STF —, de há muito se consolidou o entendimento de que a garantia de uma existência digna para todas as pessoas, nos termos do estatuído pelo artigo 170, caput, da Constituição de 1988 (CF), não se limita à uma norma-objetivo (usando a conhecida fórmula de Eros Roberto Grau) ou o que os alemães cunharam como sendo uma norma definidora de fins e tarefas do Estado (Staatszielbestimmungen), mas assume também a condição de um direito fundamental. Esse direito fundamental, por sua vez — como já, há tanto tempo tivemos diversas ocasiões de escrever (também na ConJur), é de titularidade em primeira linha individual e universal, que tanto opera — no que diz respeito à sua dimensão subjetiva — como direito à prestações estatais, quanto como um direito de defesa, visto não poder ser objeto de supressão ou restrição, pelo menos, neste último caso, em se partindo da premissa (aqui na linha de Robert Alexy e sem adentrar os meandros de sua doutrina e as críticas que se tem a ela endereçadas) de que a dignidade da pessoa humana não é passível de intervenções restritivas quando concretizada e protegida por uma norma-regra.

 

O ponto que aqui se destaca, quanto ao conteúdo do mínimo existencial, é de que o mesmo — justamente por se distinguir de um mínimo vital — abarca, nos termos de reiterada jurisprudência do Tribunal Constitucional da Alemanha, do STF e da doutrina especializada — tanto a garantia das condições materiais para a manutenção da vida (do direito à vida, no sentido da sobrevivência física da pessoa), ou daquilo que também se chama de “mínimo existencial fisiológico”, quanto de um mínimo existencial “sociocultural”, ou seja, de que cada pessoa possa ter condições fáticas para o seu livre desenvolvimento da personalidade, mediante acesso e efetiva inserção na vida social, econômica, política e cultural. Aliás, é justamente a conjugação da garantia do direito à vida com a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana — no sentido de uma vida com dignidade — que define, ao menos de acordo também com a nossa tradição jurídica, o mínimo existencial.

 

Ora, como igualmente já advogado e demonstrado, o valor estabelecido pelo Decreto 11.150, de 26/7/2022, não viola “somente” o direito humano e fundamental a um mínimo existencial (o que já é suficientemente grave), como sequer atende às exigências de um mínimo vital, porquanto se trata de quantia que praticamente representa a metade do valor de uma cesta básica, sabendo-se, ademais, que uma alimentação adequada (também assegurada como direito fundamental na CF) não é a única condição material para a sobrevivência de alguém, ainda que possa ser a mais importante.

 

Note-se, por sua vez — apenas para utilizar um outro parâmetro — que no Brasil, de acordo com as regras vigentes, está obrigado a declarar o Imposto de Renda apenas quem recebeu, em 2021, rendimentos tributáveis em valores superiores a R$ 28.559,70, o que representa uma média mensal (arredondada) de R$ 2.380,00, superior ao valor de dois salários-mínimos mensais. Isto significa, ao fim e ao cabo, que a mesma pessoa que não paga Imposto de Renda, pelo fato de o próprio Estado reconhecer a insuficiência dos vencimentos para tal efeito, pode-se endividar e garantir o pagamento de seus débitos com sua renda até o limite de irrisórios 25% do salário mínimo.

 

Por outro lado, não é legítimo pretender comparar — para todos os efeitos! — o caso ora discutido (assim como o da isenção do Imposto de Renda e mesmo a vedação de tributo com efeito confiscatório ou a impenhorabilidade de imóvel ou outros bens — para citar outro exemplo), com prestações como o benefício único da assistência social ou mesmo o direito fundamental a uma renda básica familiar (artigo 6º, parágrafo único, CF), na condição de direitos a prestações, com a função defensiva que ora se está atribuindo ao mínimo existencial dos consumidores, em especial do mais vulneráveis, em face de um superendividamento.

 

Embora também as prestações acima referidas tenham umbilical vinculação com a garantia do mínimo existencial — não sendo, contudo, por si só, necessariamente as únicas modalidades prestacionais disponíveis para tanto —, o fato é que, diferentemente delas, no caso do tema ora em discussão, não trata da necessidade de assegurar, simultaneamente, os recursos públicos suficientes para as prestações sociais estatais (sabendo-se que mesmo nesse caso a assim chamada reserva do possível não pode ser tida como um obstáculo intransponível).

 

Pelo contrário, a preservação de um valor efetivamente compatível para a garantia de uma vida condigna em face de um superendividamento dos consumidores, depende apenas da aplicação de critérios razoáveis e facilmente justificáveis a partir de dados concretos, amplamente disponibilizados, como é o caso do valor da cesta-básica, gastos com saúde, educação, moradia, transporte, energia elétrica, etc.

 

Aliás, isso também demonstra que a própria fixação de um percentual da renda em abstrato e sem possibilidade de ajustamento aos casos concretos — visto que as necessidades e as despesas, mesmo no âmbito de um mínimo existencial, podem ser, por várias razões, significativamente diferentes — ainda que fosse estabelecido não sobre o salário mínimo, mas sobre a renda familiar, se revela questionável do ponto de vista de sua legitimidade constitucional, porquanto potencialmente violadora do dever de tratamento desigual dos que são desiguais, ou mesmo ofensiva ao próprio mínimo existencial, a depender das circunstâncias do caso concreto. Mas isso, não é o caso de desenvolvermos aqui.

 

O que definitivamente não pode prevalecer é a profunda indignidade cometida pelo Governo Federal ao estabelecer o percentual de 25% do valor do salário mínimo como limite do endividamento pessoal dos consumidores, verdadeira aberração constitucional, que, por certo (e é isto que se espera) o STF logo mais deverá fulminar.

 

 é advogado e professor.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-set-26/direitos-fundamentais-notas-decreto-minimo-indecente-vida-indigna