OPINIÃO
A terceirização e a pejotização têm sido objeto de diversas discussões acaloradas nos tribunais trabalhistas e perante o Supremo Tribunal Federal.
Apesar da existência de precedentes qualificados do STF, com trânsito em julgado, indicando a direção da questão sob o viés constitucional, fato é que a celeuma ainda persiste e apresenta pontos um tanto controvertidos, uma vez que, apesar dos referidos precedentes, ainda não há uma solução definitiva no Supremo, em razão de algumas divergências entre os ministros sobre o tema.
Para entendermos o cerne do debate, faz-se necessário conceituar e pontuar algumas nuances dos institutos que circundam a matéria.
Definição
Conceituar a terceirização, doutrinariamente, não é tarefa complexa, já que não existem divergências substanciais entre os estudiosos. De modo geral, os autores definem a terceirização pela existência de uma relação triangular, na qual figuram como agentes o empregado (quem presta o serviço efetivamente; a mão de obra), a empresa prestadora de serviços (contratada por uma outra empresa) e aquela que é a tomadora desses serviços (a contratante).
Assim, a partir dessa definição, a figura do empregado (aquele que presta a mão de obra) é inserida na relação da terceirização como sendo um dos agentes integrantes da relação contratual, cujo vínculo de trabalho resta firmado com a empresa contratada, com os requisitos próprios da relação empregatícia: onerosidade, subordinação, pessoalidade e habitualidade (artigos 2º e 3º, da CLT).
Novo paradigma
Partindo-se do conceito doutrinário, amplamente utilizado pela Justiça do Trabalho, o que se observa, como novo paradigma e alvo dos enfrentamentos jurídicos, é justamente a temática relacionada à presunção de licitude da terceirização observada a partir da relação existente entre o empregado/obreiro, cujo vínculo de trabalho é firmado com a empresa contratada, e o serviço prestado para a empresa contratante.
De início, a jurisprudência consolidada pelo TST na Súmula 256 era no sentido de que, salvo nas hipóteses de contrato temporário (Lei nº 6.019/74) ou nos serviços de vigilância (Lei nº 7.102/83), qualquer outro tipo de terceirização seria ilegal.
Posteriormente, esse entendimento evoluiu no sentido de que o trabalho prestado pelo empregado-terceirizado não poderia se confundir, em absoluto, com a própria identidade e objeto da empresa terceirizante/contratante, uma vez que, sendo vedada pela CLT a triangularização e a vinculação de emprego diretamente com a empresa contratante, a existência de um serviço terceirizado em atividade-fim formaria um elo entre o obreiro-terceirizado e o tomador de serviço. Isto é, a mão-de-obra terceirizada não poderia ser alvo do benefício da empresa contratada na busca de seus objetivos primários, nos termos da Súmula 331.
No entanto, o caráter legiferante da Súmula 331 do TST sempre foi contestado, uma vez que a norma regulava de forma ampla a livre iniciativa e as possibilidades de terceirização sem que houvesse regramento específico sobre o tema, além de trazer o conceito aberto de atividade-meio e atividade-fim para diferenciar em qual situação a terceirização seria lícita (atividade-meio) ou ilícita (atividade-fim).
Neste particular, o ponto nodal das alterações paradigmáticas que vamos analisar são os critérios definidos nos julgados qualificados do STF e a sua maturação por meio das reclamações constitucionais que analisaram a matéria a partir do entendimento firmado no âmbito da Justiça Trabalhista.
Guinada
O julgamento do STF representou uma guinada jurisprudencial, especialmente quando recebe a ADPF 324 para analisar o tema, além de reconhecer no RE 958.252 a existência da repercussão geral, fixando tese ao ementário de Tema nº 725.
A primeira quebra de paradigma, portanto, a ser analisada atingiu o próprio conceito, abrangência da terceirização e a licitude de sua utilização.
Na oportunidade, a Corte Constitucional fixou o seguinte entendimento:
“Terceirizar significa transferir parte da atividade de uma empresa – a empresa contratante – para outra empresa inserida em sua cadeia produtiva, denominada contratada ou prestadora do serviço.”
Percebe-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal trata a terceirização, enquanto conceito, a partir de uma relação contratual existente entre empresas e que ocorre quando a contratante transfere parte de sua atividade à outra que será a responsável pela mão-de-obra.
No entanto, a ratio decidendi incutida no julgado permite concluir também que, com essas decisões, o STF fixa uma percepção quanto ao escopo da terceirização distinto daquele até então utilizado pelos estudiosos do assunto e, também, do adotado pela própria Justiça Trabalhista.
Isso porque o STF declarou a licitude do objeto da terceirização em atividade finalística, derrubando o posicionamento de que essa não poderia ocorrer na prestação de serviço do objeto primário empresarial, ou seja, a contratação por terceirização poderia ocorrer em qualquer etapa da atividade, seja ela meio, seja ela fim, não importando o objeto principal da empresa contratante, conforme tese fixada no tema 725/RG.
Pejotização e o princípio da livre iniciativa
Dentro, ainda, do âmbito do julgamento da ADPF 324 e do RE 958.252 – Tema 725/RG, observa-se uma outra quebra de paradigma importante, qual seja: o reconhecimento de licitude de qualquer outra forma de divisão de trabalho entre pessoas jurídicas distintas, o que abriu o caminho para a discussão da licitude da denominada “pejotização”.
A partir desse entendimento, o debate quanto às formas possíveis de trabalho/prestação de serviços ganhou amplitude em outros julgados do STF, nos quais foram analisadas a contratação entre pessoas jurídicas e/ou trabalhadores autônomos sem vínculo de emprego celetista, como ocorreu nos casos dos julgamentos da ADC 48 e da ADI 5.625, que examinou a Lei do Salão Parceiro.
Por meio desses dois últimos julgamentos, a Corte Suprema pacificou o entendimento quanto à permissão de contratação de motoristas por meio de pessoa jurídica ou trabalhadores autônomos em regime de parceria com salões de beleza, sem que houvesse a regulamentação da relação empregatícia clássica, isto é, normatizada pela CLT.
Nesse sentido foi a conclusão do ministro Nunes Marques, relator da ADI 5.625/DF:
“(…) O vínculo de emprego não deve ser o único regime jurídico a disciplinar o trabalho humano. Com efeito, a produção de bens e serviços ocorre das mais variadas formas, e não exclusivamente por meio do sistema caracterizado pela presença de um empresário e seus empregados.”
A conclusão do STF, quanto à constitucionalidade das diversas formas de trabalho, além daquela prevista na CLT, é uma afirmação do princípio da livre iniciativa, insculpido no artigo 170 da CF. Além disso, vislumbrou o STF que a diversidade de prestações de serviços e contratações respaldadas em contratos civis contribuem para o fomento e evolução econômica do país.
Nesse sentido, o ministro Gilmar Mendes, nos autos da Reclamação Constitucional 63.507, com propriedade, discorreu sobre a flexibilização das normas que regem as relações de trabalho frente ao texto constitucional:
“Registrei, ainda, que o que se observa no contexto global é uma ênfase na flexibilização das normas trabalhistas. Com efeito, se a Constituição Federal não impõe um modelo específico de produção, não faz qualquer sentido manter as amarras de um modelo verticalizado, fordista, na contramão de um movimento global de descentralização.”
Com essa alteração paradigmática, portanto, a existência de uma flexibilização interpretativa quanto aos elementos da relação de emprego passa a levar em consideração a manifestação de vontade do contratado, além de validar o intuito empreendedor e buscar uniformizar o desenvolvimento da sociedade, aumentando as oportunidades de serviços.
Resistência das cortes trabalhistas
É nítida, assim, a oposição diametral entre as conclusões do Supremo Tribunal Federal e da Justiça do Trabalho, o que acaba por acarretar um entrave entre as teses e entendimentos definidos.
Isso porque, após as definições consagradas pelo STF, o que se verifica é uma imensa resistência das cortes trabalhistas, inclusive no âmbito do TST, em aplicar os precedentes vinculantes, apesar da obrigatoriedade de sua observância.
A referida resistência tem desencadeado uma enxurrada de reclamações constitucionais perante o Supremo Tribunal Federal no intuito de garantir a autoridade de suas decisões, fato que tem causado atrito constante entre a Suprema Corte e a Justiça do Trabalho, ao que se destaca trecho do voto do ministro Gilmar Mendes no julgamento da Reclamação 53.688-AgRg, quando faz forte crítica à atuação da Justiça especializada:
“Apesar desse sólido conjunto de precedentes desta Corte, formalizados em diversas classes processuais, nos controles difuso e concentrado de constitucionalidade, ainda nos deparamos com casos como o dos autos, em que a Justiça do Trabalho de forma escancarada descumpre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, promovendo inequívoco bypass às decisões da Corte.
Se antes a Justiça do Trabalho limitava-se a impor toda sorte de obstáculos às opções políticas legitimamente realizadas pelos Poderes Executivo e Legislativo, agora também o Supremo Tribunal Federal é alvo da constante resistência de segmento que, embora especializado, integra o Poder Judiciário e, portanto, deve respeito aos precedentes desta Corte.
[…]
Como se vê, os magistrados do trabalho reconhecem que a todo custo buscam se desviar da jurisprudência desta Corte: ora alegam que o precedente não é específico para a situação dos autos, ora tergiversam sobre a necessidade de valoração do acervo probatório. As justificativas são inúmeras, mas o propósito é único e bem definido: implementar o bypass dos precedentes do Supremo Tribunal Federal.”
O tema ainda será objeto de calorosas discussões no âmbito doutrinário e jurisprudencial sem estar próximo de uma solução, apesar de já verificarmos avanços dentro do TST, consoante julgado proferido pela 5ª Turma do tribunal, em processo de relatoria do ministro Breno Medeiros:
“(…) O Ministério Público do Trabalho ajuizou a presente ação civil pública com o objetivo de condenar a ré ” na obrigação de não fazer, para que se abstenha de utilizar de trabalhadores para a realização de sua atividade-fim sem o devido registro em CTPS, sob pena de multa “. (…) Ocorre que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no dia 30/8/2018, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 324 e o Recurso Extraordinário (RE) nº 958.252, com repercussão geral reconhecida, decidiu que é lícita a terceirização em todas as etapas do processo produtivo, ou seja, na atividade-meio e na atividade-fim das empresas. (…) Do mesmo modo, no julgamento da ADPF n.º 324, (…) Prevaleceu, em breve síntese, como fundamento o entendimento no sentido de que os postulados da livre concorrência (art. 170, IV) e da livre-iniciativa (art. 170), expressamente assentados na Constituição Federal de 1.988, asseguram às empresas liberdade em busca de melhores resultados e maior competitividade. (…) Nesse contexto, a partir de 30/8/2018, é de observância obrigatória aos processos judiciais em curso ou pendente de julgamento a tese jurídica firmada pelo e. STF no RE n.º 958.252 e na ADPF n.º 324. Assim, não há mais espaço para o reconhecimento do vínculo empregatício com o tomador de serviços sob o fundamento de que houve terceirização ilícita (ou seja, terceirização de atividade essencial, fim ou finalística).” (…) (RR-2241300-22.2009.5.09.0651, 5ª Turma, relator ministro Breno Medeiros, DEJT 15/12/2023).
O tema, como já indicado, continuará despertando intensos debates, bem como já aponta relevantes repercussões práticas.
Ônus da prova
Como exemplo, cita-se a questão do ônus da prova: em causas em que a contratação ocorreu a partir do instituto da “pejotização”, a Justiça do Trabalho, embora as partes não neguem a existência do contrato de prestação de serviços de natureza civil, sem qualquer comprovação de vícios de vontade ou máculas que possam invalidá-lo, ou, até mesmo, ausente qualquer exame relacionado à capacidade das partes, vem reconhecendo sua nulidade, atribuindo à empresa-ré (contratante) o ônus de provar a inexistência de fraude.
Ainda na esfera do ônus da prova, continua sendo comum a aplicação, pela Justiça do Trabalho, do entendimento consubstanciado na Súmula 212, pressupondo que confirmada a prestação de serviços, mas por modalidade diversa da relação de emprego, o ônus é da empresa de demonstrar que a relação existente distinta da relação de emprego.
No entanto, questiona-se: como imputar o ônus da prova à empresa se, nos termos do artigo 818, I da CLT, o ônus é de quem alega a fraude/ilicitude?
Ao adotar esse entendimento, a Justiça do Trabalho acaba por inverter, à revelia da própria disposição legal, o ônus da prova sob a suposição de que a relação distinta da relação de emprego seria presumidamente irregular, cabendo à empresa demonstrar a regularidade da forma de contratação.
Todavia, o caminho jurídico traçado pela Justiça Trabalhista demonstra-se obsoleto frente aos precedentes vinculantes já citados, reforçados pelas diversas decisões em sede de reclamação constitucional, afinal, havendo afirmação pelo STF de que as demais formas de contratação são lícitas, e se o contrato foi firmado atendendo aos requisitos da livre manifestação da vontade, o ônus de vício da contratação não deve recair sobre a empresa, mas sim sobre a parte que o alega, ou seja, o reclamante.
Considerações finais
Para o futuro, partindo da ideia de que a terceirização implica transferir parte de uma atividade da empresa a uma prestadora de serviços (contratada), precisamos pensar se podemos ter, então, uma relação comercial entre empresas, mesmo que de forma indireta ocorra a prestação de serviços.
Consideramos que a tendência é de alargamento do conceito do que seriam contratos meramente comerciais, o que traria uma grande repercussão no âmbito da responsabilidade sob débitos trabalhistas, mas isso, pelo que acreditamos, ainda será maturado ao longo do tempo.
Assim, face aos novos paradigmas devidamente consagrados como constitucionais, é necessária a urgente atuação dos poderes legislativo e executivo em normatizar e possibilitar que essas outras formas de relação de trabalho e prestação de serviços, dentro do cenário público, ganhem a tutela estatal sob o viés social, de forma a criar soluções que assegurem os cidadãos nessas relações.
Por fim, conclui-se que alterações de paradigmas não constituem retrocessos, mas necessitam da atuação dos poderes constituídos, enquanto partes integrantes desse avanço, sendo, ainda, necessário nesse momento, a análise quanto à competência da própria Justiça do Trabalho, assim entendida a partir da sua especialização em relações jurídicas inseridas no âmbito das relações de trabalho (não somente regulamentadas pela CLT) e, ainda, quanto à criação de uma legislação que deverá compor o suporte normativo para o enfrentamento dessa nova realidade.