A Constituição dedica dispositivos especificamente aos trabalhadores economicamente dependentes, entre os quais figura uma categoria de autônomos prestadores de serviços os mais variados. Assim o faz porque são a parte mais frágil nas relações de trabalho. Essa debilidade é revelada pela impossibilidade de controlar os meios produtivos nas atividades em que inseridos, e das quais não são titulares ou parceiros. Laboram para terceiros segundo regras rígidas, envolvendo condições de trabalho e remuneração-base predeterminadas.
Essas características desequilibram a relação jurídica mantida com o titular da atividade produtiva, tornando o trabalhador hipossuficiente e, assim, merecedor de tutela jurídica processual diferenciada da Justiça do Trabalho, prevista na Constituição, verbis:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.” (grifo do articulista)
Entre os trabalhadores urbanos e rurais protegidos pela Constituição, os mais fragilizados são os que laboram como empregados. Nessa condição, ficam totalmente expostos ao poder organizacional diretivo, fiscalizatório e punitivo do empregador, com aplicação total dos dispositivos inseridos no artigo 7º da Constituição.
Quanto aos demais trabalhadores, posto que a Constituição não utiliza a palavra “empregados” (espécie) e sim “trabalhadores” (gênero), são aplicáveis as normas previstas na legislação civil (prestadores de serviços em geral), comercial (representantes comerciais), em lei especial (cooperativados) e na Lei nº 8.112/1990. No último caso, porque o dispositivo constitucional acima referido inclui entre os trabalhadores aqueles que trabalham para o Estado — não obstante o Supremo Tribunal Federal, em 2005, após a Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional nº 45/2004) tenha, surpreendentemente, afastado da competência da Justiça do Trabalho o exame dos litígios estatutários.
O tamanho do poder do empregador na relação jurídica mantida com o trabalhador empregado lhe permite estabelecer ou cobrar, sob o risco de aplicação direta de penas disciplinares, o que, como, onde e quando o trabalho deve ser executado. Se a proteção ao trabalho e ao trabalhador em geral precisou ser elevada à categoria de direito fundamental, e com esse viés figura no artigo 7º da Constituição, com mais razão ainda a proteção ao trabalhador empregado é consubstanciada em dispositivos a ele especificamente direcionado, a exemplo dos turnos ininterruptos de trabalho e dos adicionais noturno e de horas extras.
Diferentemente, dispositivos como aviso prévio — instituto jurídico cabível até mesmo em relação aos prestadores autônomos de serviços e aos representantes comerciais — e proteção do meio ambiente contra os riscos à saúde e segurança são direcionados a todos os trabalhadores, empregados ou não, públicos ou privados. Seria absurdo imaginar que um trabalhador não empregado pudesse ser submetido, na prestação do seu trabalho, a um meio ambiente inseguro ou com riscos de adoecimento, sem prevenção adequada.
Para efeito de equilibrar as discussões sobre condições específicas de trabalho do empregado na empresa ou no setor produtivo onde inserido, os artigos 8º, 9º e 11 da Constituição cuidam da organização sindical, da estabilidade do dirigente sindical, do direito de greve e da representação dos trabalhadores nas empresas. E o artigo 10 assegura a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação.
Além dos direitos fundamentais formais (a exemplo do fundo de garantia do tempo de serviço, do 13º salário e do aviso prévio proporcional ao tempo de serviço) ou dos materialmente constitucionais (direitos que constam da Constituição apenas para lhes dar estabilidade e dificultar a alteração da norma ou extinção do direito. Cito como exemplos a irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; e os direitos de greve e de estabilidade do dirigente sindical).
Os direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição, inespecíficos em relação ao trabalhador, porque direcionados a todos os componentes da sociedade, podem, conforme a situação jurídica que se apresentar, também incidir nas relações de trabalho. É o caso das liberdades de expressão, de crença e política. Também é, entre tantas outras, das normas previstas no artigo 5º, incisos V (direito de resposta e indenização por dano material, moral ou à imagem) e X (inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral), que cuidam exatamente, entre vários outros, de direitos fundamentais inespecíficos dos trabalhadores.
Competência trabalhista mais ampla
A regulação internacional iniciada na Organização Internacional do Trabalho para adoção facultativa pelos países membros, ao partir do pressuposto de que os trabalhadores ditos autônomos — que em tese seriam capazes de negociar em igualdade de condições com os empresários as condições de trabalho —, fez com que a regulação protetiva dos trabalhadores ficasse centrada unicamente no trabalho subordinado, como paradigma teórico do Direito do Trabalho.
Assim, quem não tem horário, um chefe, local definido de trabalho, tarefas diárias a cumprir e vigilância ou controle direto ou indireto na execução do trabalho, permaneceu regulado pela legislação civil ou comercial, deixando sem proteção uma enorme gama de trabalhadores, mormente a partir de novas relações de trabalho constitutivas de uma zona gris.
No Brasil, os trabalhadores avulsos foram equiparados aos trabalhadores com vínculo permanente (mais uma vez a Constituição não utiliza para esse fim a palavra “empregados”); os trabalhadores cooperados receberam proteção adequada pela Lei nº 12.690/2012, e os trabalhadores em atividade-fim nos salões de beleza foram regulados pela Lei nº 13.352/2016 (ou os empresários desses salões foram beneficiados por uma regulação que afasta direitos trabalhistas para quem labora diariamente atendendo a clientela do salão?).
A Lei nº 13.352/2016 inaugurou a chamada “pejotização”, que se estendeu aos motoristas profissionais autônomos. Essa condição está sendo agora utilizada para “regular” o trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativos.
Embora a EC 45/2004 tenha incluído na competência da Justiça do Trabalho o poder de julgar os conflitos dos corretores, agenciadores, distribuidores, comissionistas, empreiteiros, marceneiros e outros prestadores pessoais de serviços — lógico, com aplicação das normas de regência profissionais —, essa competência tem sido ultimamente questionada.
Esses trabalhadores, quando não têm negócio próprio, e trabalham com pessoalidade, evidentemente não são empresários, porque nada empreendem. Trabalham para outrem, mediante regras inflexíveis de preço e modo de trabalhar, a fim de receberem paga equivalente a salário
Como a aplicação da legislação trabalhista não é uma escolha e sim um enquadramento legal, é de fazer cair o queixo do advogado de raiz, do professor universitário vocacionado para a área em que atua, do magistrado trabalhista e do membro do Ministério Público do Trabalho, todos cumpridores da Constituição e das leis do país, interpretações altamente liberais que, contrariando a história e as consequências de seus atos, destroem o princípio protetivo trabalhista, reconhecido e respeitado no mundo todo, para aplicar normas fundadas na igualdade das partes.
Às relações de trabalho são aplicáveis normas sociais, por força da proteção prevista nos artigos 7º a 11 da Constituição da República e no artigo 170, que limita a livre iniciativa à dignidade da pessoa humana e à valorização do trabalho, em um meio ambiente orientado pela justiça social.
Pejotização ou simulação?
Pejotização significa a execução do trabalho no estabelecimento do tomador por profissionais contratados como pessoas jurídicas.
A questão foi examinada como decorrência das teses vinculantes trazidas pela ADPF 324 e pelo Tema 725, de repercussão geral do STF, ou seja, quanto à contratação desses profissionais (PJs) como terceirizados, sendo, em tese, considerada lícita.
A verdadeira discussão a ser travada não é se pode haver esse tipo de contratação, porque contratar pessoa jurídica para executar serviço é, logicamente, lícito. A distinção que não vem sendo debatida e aprofundada é se é lícita a formalização da execução do trabalho subordinado por profissionais que não têm negócio próprio e são contratados como pessoas jurídicas.
No passado, a Justiça do Trabalho já se deparou com as falsas contratações de empregados como “cooperados”, no intuito do afastamento da relação de emprego. Agora, a pejotização é utilizada com a mesma finalidade. Brasil afora, há inúmeros garçons de restaurante contratados como PJ.
Quanto a motoristas profissionais e salões de beleza, a pejotização é válida desde que observados os limites das legislações correspondentes. Como também é lícita quando se trata de médico que presta serviços em hospitais atendendo clientela própria, além da do hospital. Ou de médicos que prestam serviços para várias clínicas, investigando à distância ou encaminhando laudos de exames de imagem feitos por técnicos que efetivamente executam ou acompanham a maior parte dos exames de imagem — esses últimos, por exemplo, já não seriam “pejotas”.
O exame da regularidade dessa forma de contratação não deveria caber ao STF. Primeiro, por não se tratar de matéria constitucional e, segundo, porque a Justiça do Trabalho, com três instâncias a serem percorridas, é a Corte Superior especializada e destinada pela Constituição para o exame dos conflitos.
Por outro lado, o fato de existir contrato atribuindo natureza comercial ou civil, com afastamento da configuração de vínculo trabalhista, longe de afastar a competência da Justiça do Trabalho, é a ela inerente. Está ali, assim como o MPT, para que seja apreciada a regularidade da formalização da relação.
Não por outra razão, recentemente o Código do Trabalho português incluiu, em seu artigo 12, a presunção de laboralidade contra a tentativa de afastamento das normas trabalhistas às relações de trabalho subordinado.
Diretivas europeias e leis da UE estabeleceram normas de proteção ao trabalhador contra as novas tecnologias, a exemplo da Diretiva 2024/2831, de 2024, que protege os trabalhadores da má utilização da gestão algorítmica e previne contra a falsa classificação de autonomia.
A Justiça Comum, que não tem conhecimento específico sobre os requisitos da relação de emprego ou experiência em relação aos usos e costumes empresariais e fraudes comumente praticadas no mercado em relação à matéria, irá decidir sobre a existência ou não de vínculo de emprego e eventual fraude?
Mais: as Superintendências Regionais do Trabalho, em existindo contrato de natureza civil ou comercial, não mais poderão autuar empresas em casos de fraude à legislação trabalhista?
Quanto ao Ministério Público, em existindo contrato de natureza civil ou comercial, não mais poderá ajuizar Ações Civis Públicas na Justiça do Trabalho? Deverá fazê-lo na Justiça Comum, onde não atua?
Não se discute que a sociedade caminha mais rápido que o Direito e que é preciso atualizar as formas de ver, entender e julgar as atividades profissionais. Porém, princípios não mudam, tampouco direitos fundamentais previstos na Lei Maior, a não ser que refundemos a nação. Enquanto isso não ocorrer, e a relação de trabalho for uma relação de poder, os donos dos meios de produção não serem iguais a quem vende sua força de trabalho em troca de remuneração é um princípio sob a jurisdição da Justiça do Trabalho.