Tornou-se recorrente no Supremo Tribunal Federal, pela via das reclamações constitucionais, a cassação de decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem vínculo de emprego em múltiplos casos, como “pejotizados”, profissionais liberais e trabalhadores considerados “hipersuficientes”, o que vem a ser tratado no Tema 1.389 de Repercussão Geral do STF.
Digno de transcrição trecho de decisão proferida na Reclamação 70.008/PR, em que se afastou o vínculo de emprego entre um franqueado e uma empresa de seguros: “Desse modo, mesmo que tenham ocorrido os fatos narrados na decisão reclamada, inclusive com a alegada subordinação, fato é que os abusos perpetrados na relação devem ser analisados e eventualmente reparados pela Justiça comum”. [1]
Outras decisões poderiam ser citadas, que essencialmente imunizam certas relações laborais à incidência do direito do trabalho, independentemente do reconhecimento de fraude no caso concreto pela Justiça do Trabalho.
Ainda que conservando suas peculiaridades, os julgados em questão se sustentam, basicamente, na derrogação, expressa ou não, da pedra angular do direito do trabalho, nomeadamente a primazia da realidade sobre a forma.
Relação de emprego ultrapassado
Por trás desse cenário, reina um espírito que toma a relação de emprego como algo ultrapassado por novas formas de trabalho alheias a suas disposições. Conforme essa acepção, rejeitar formas alternativas à relação de trabalho dependente implicaria insegurança jurídica e prejuízo ao pleno desenvolvimento econômico do país.
Nesse sentido, já se afiançou publicamente que as leis trabalhistas são engessadas e obsoletas [2]. Na audiência pública relativa ao Tema 1.389, chegou-se a mencionar sobre “o avanço da pejotização no mundo inteiro” [3].
O atento estudo do tema em referência mostra que não.
A discussão sobre a relação de emprego, sobretudo no tocante a sua aplicabilidade a novas formas de trabalho, não é novidade. Trata-se de uma preocupação globalmente compartilhada, que integra a agenda da Organização Internacional do Trabalho, quando menos, desde a década de 1990 [4].
Os debates em referência evoluíram a ponto de editar-se a Recomendação 198/2006 da OIT, que assume as dificuldades na detecção da relação de trabalho, em especial diante de tentativas de encobri-la sob formas contratuais artificiais [5].
Além de assentar universalmente a primazia dos fatos, a Recomendação 198 da OIT sugere o emprego de presunções legais quando se verificarem um ou mais indícios que possam levar o intérprete a concluir pela existência da relação de trabalho.
Apesar de, a princípio, a Recomendação 198 da OIT não possuir efeito vinculante, sua força normativa reside na ampla adesão a seus termos.
Fatos prevalecem sobre forma contratual
Nesse sentido, segundo guia divulgado pela OIT, na grande maioria dos sistemas legais, a primazia dos fatos prevalece sobre a forma contratual, a exemplo do Reino Unido, Japão, Canadá, África do Sul e Uruguai[6]. A mesma conclusão é extraída dos países da União Europeia [7].
Para levar a termo o primado dos fatos na determinação da existência de uma reação de emprego, diversas tradições jurídicas utilizam o critério da presunção de laboralidade, como ocorre na África do Sul [8], Alemanha [9], nos Estados Unidos [10] (precipuamente, mas não somente, em um de seus Estados mais ricos, a Califórnia) e em Portugal [11].
Mencionado critério é pautado pelo método indiciário/metodológico, que não se submete a fórmulas rígidas, senão oferece ao intérprete um conjunto de indícios que lhe permitam analisar o caso concreto em sua integralidade. Esses indicadores não necessitam estar todos, sempre e cumulativamente, presentes — importa apenas que suas características “típicas” tenham lugar em tal número e força que a situação corresponda globalmente ao contrato de trabalho.
O Capítulo II da Recomendação nº 198 da OIT, pertinente à “determinação da existência de uma relação de trabalho”, elenca uma série desses indicadores, como, entre outros, o fato de o trabalho: ser executado de acordo com as instruções e sob o controle de outra pessoa; integrar o trabalhador na organização da empresa; ser realizado única ou principalmente para o benefício de outra pessoa; ser realizado pessoalmente pelo trabalhador; render uma remuneração periódica ao trabalhador, constituindo sua única ou principal fonte de rendimento; não gerar riscos financeiros ao trabalhador.
O catálogo de indícios não é exaustivo, uma vez que tende a agregar outros indicadores, à medida que se modificam as técnicas de produção, com impacto direto na exploração do trabalho humano.
Trabalho digital
A título de exemplo, os países ibéricos acrescentaram aos indícios já existentes fatores específicos do trabalho digital, tais como a circunstância de a plataforma digital fixar a retribuição para o trabalho; exercer o poder de direção; e determinar regras específicas, conforme artigo 12-A do Código do Trabalho Portugal e o decidido na Sentença nº 805/2020 do Tribunal Supremo espanhol [12].
Os artigos 4º e 5º da Diretiva (UE) 2024/2831, por sua vez, reafirmam o primado dos fatos na determinação da relação de emprego com plataformas digitais, que é legalmente presumida, considerando a utilização de sistemas automatizados de monitorização ou sistemas automatizados de tomada de decisões na organização do trabalho [13].
Não por acaso, a adoção do método indiciário é quase universal [14].
Como se espera ter demonstrado pelo estudo comparado, o surgimento de novas formas de trabalho não torna o primado da realidade anacrônico — pelo contrário, busca-se aprimorar seus efeitos para compreensão de fenômenos atuais em toda sua complexidade.
Nesse contexto, se há espaço legítimo para aperfeiçoar a dogmática nacional, tal não reside na negação da primazia da realidade, mas no seu fortalecimento, mediante revisão do modo como se identifica o trabalho dependente no país.
O atual paradigma, centrado em cinco elementos (ou obstáculos) cumulativos, tende a engessar a missão do intérprete em desvelar com precisão um fenômeno intrinsecamente movediço, tal como a relação de trabalho.
Pejotização é fraude
Dessa forma, seria o caso de avaliar, respeitadas nossas peculiaridades, o emprego do método indiciário/tipológico preconizado pela Recomendação 198 da OIT, que apresenta uma abordagem holística e maleável.
Após compreendido o panorama global, a abolição pura e simples do primado dos fatos não se acomoda ao mais elementar senso de justiça, especialmente no marco da Constituição de 1988, que alicerçou a República na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Daí ser profundamente questionável interpretar, a partir de um Estatuto Fundamental repleto de direitos trabalhistas, que uma multiplicidade de relações tipicamente trabalhistas é imune a seus dispositivos.
É imperativo, portanto, ecoar as lições da ciência e das práticas de excelência globais.
O primado da realidade é universal.
Definir a existência da relação de emprego carece da análise dos fatos.
Pejotização, presentes os fatores típicos do trabalho dependente, é fraude.
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Referências
ÁFRICA DO SUL. Labour Relations Act 66 of 1995. Government Gazette no. 1877 of 1995, Pretoria, 29 nov. 1995. Disponível aqui.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação Constitucional nº 70.008/PR. Relator(a): André Mendonça. DJ 24.09.2024. Disponível aqui.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. TRANSCRIÇÕES DA 47ª AUDIÊNCIA PÚBLICA. Disponível aqui.
FERNANDES, João Renda Leal. O “Mito dos EUA”: um país sem direitos trabalhistas? 3. ed. São Paulo: JusPodivm, 2004.
NASCIMENTO, Bárbara. Leis trabalhistas estão engessadas e obsoletas, diz Gilmar Mendes. O Globo, Rio de Janeiro, 30/03/2017. Disponível aqui. Acesso em 09 de nov. 2025.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Conferência Internacional do Trabalho. R198 – Recomendación sobre la relación de trabajo. 95ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho da OIT,Genebra,2006. Disponível aqui. Acesso em: 9 nov. 2025.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Conferência Internacional do Trabalho Report V (1), The employment relationship, Fifth item on the agenda. Genebra: OIT, 2006. Disponível aqui.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Escritório Internacional do Trabalho. Regulating the employment relationship in Europe: a guide to Recommendation Nº 198. Genebra: OIT, 2013. Disponível aqui.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Escritório Internacional do Trabalho. THE EMPLOYMENT RELATIONSHIP: An annotated guide to ILO Recommendation No. 198. Disponível aqui.
PORTUGAL. Código do Trabalho. Lei nº 07/2009. Diário da República, n.º 30/2009, Série I, Lisboa, 02 dez. 2009. Disponível aqui.
SÁNCHEZ-URÁN AZAÑA, Yolanda. Las fronteras del contrato de trabajo y sistema de indicios de laboralidad. Revista del Ministerio de Trabajo, Migraciones y Seguridad Social, Madrid, n. 143, 2019. Disponível aqui.
UNIÃO EUROPEIA. Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2024, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais. Bruxelas, 2024. Disponível aqui.
WANK, Rolf. Workers’ protection: national study for Germany for the ILO. Genebra: OIT, 1999. Disponível aqui.
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação Constitucional nº 70.008/PR. Relator(a): André Mendonça. DJ 24.09.2024. Disponível aqui.
[2] NASCIMENTO, Bárbara. Leis trabalhistas estão engessadas e obsoletas, diz Gilmar Mendes. O Globo, Rio de Janeiro, 30/03/2017. Disponível aqui.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. TRANSCRIÇÕES DA 47ª AUDIÊNCIA PÚBLICA. Disponível aqui.
[4] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Conferência Internacional do Trabalho Report V (1), The employment relationship, Fifth item on the agenda. Genebra: OIT, 2006. Disponível aqui.
[5] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. R198 – Recomendación sobre la relación de trabajo. 95ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho da OIT,Genebra,2006. Disponível aqui..
[6] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Escritório Internacional do Trabalho. THE EMPLOYMENT RELATIONSHIP: An annotated guide to ILO Recommendation Nº 198. Disponível aqui.
[7] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Escritório Internacional do Trabalho. Regulating the employment relationship in Europe: a guide to Recommendation Nº 198. Genebra: OIT, 2013. Disponível aqui.
[8] ÁFRICA DO SUL. Labour Relations Act 66 of 1995. Government Gazette no. 1877 of 1995, Pretoria, 29 nov. 1995. Disponível aqui.
[9] WANK, Rolf. Workers’ protection: national study for Germany for the ILO. Genebra: OIT, 1999. Disponível aqui.
[10] FERNANDES, João Renda Leal. O “Mito dos EUA”: um país sem direitos trabalhistas? 3. ed. São Paulo: JusPodivm, 2004, p. 257.
[11] PORTUGAL. Código do Trabalho. Lei nº 07/2009. Diário da República, n.º 30/2009, Série I, Lisboa, 02 dez. 2009. Disponível aqui.
[12] SÁNCHEZ-URÁN AZAÑA, Yolanda. Las fronteras del contrato de trabajo y sistema de indicios de laboralidad. Revista del Ministerio de Trabajo, Migraciones y Seguridad Social, Madrid, n. 143, 2019. Disponível aqui.
[13] UNIÃO EUROPEIA. Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2024, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais. Bruxelas, 2024. Disponível aqui.
[14] SÁNCHEZ-URÁN AZAÑA, Yolanda. Las fronteras del contrato de trabajo y sistema de indicios de laboralidad. Revista del Ministerio de Trabajo, Migraciones y Seguridad Social, Madrid, n. 143, 2019. Disponível aqui.
