Rafael Izidoro Bello Gonçalves Silva
A suspensão das ações sobre pejotização ignora fraudes, paralisa direitos e ameaça a Justiça do Trabalho. Entenda os riscos de tratar relações desiguais como se fossem iguais.
A recente decisão do STF, que suspendeu nacionalmente todos os processos judiciais sobre a licitude da contratação de trabalhadores por meio de pessoa jurídica ou como autônomos (Tema 1.389 da repercussão geral), parece buscar paz institucional – mas corre o risco de gerar um apagão de Justiça. O argumento apresentado pelo ministro Gilmar Mendes é o de que a Justiça do Trabalho tem desrespeitado as diretrizes da Corte, fomentando insegurança jurídica. A consequência prática, porém, é que milhares de ações ficam travadas, indistintamente, mesmo aquelas que envolvem fraudes explícitas, vínculos mascarados e situações de absoluta vulnerabilidade.
Desde 2018, o STF já reconhecia a licitude da terceirização em qualquer etapa da produção – meio ou fim – conforme fixado na ADPF 324 e no RE 958.252 (Tema 725 da repercussão geral). A tese aprovada foi clara e objetiva:
“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.”
Mas ao relatar a ADPF 324, o ministro Luís Roberto Barroso também registrou uma advertência que precisa ser lembrada:
“Impossibilitar que a Justiça Trabalhista fiscalize e censure práticas decorrentes da intermediação perniciosa de mão-de-obra, tais como a ‘pejotização’, não se coaduna com a estruturação constitucional das relações de emprego.”
Ou seja, o próprio Supremo já reconheceu que o direito ao livre exercício empresarial não pode servir de escudo para fraudes trabalhistas.
A Justiça do Trabalho, historicamente, tem essa vocação: aplicar o princípio da primazia da realidade e reconhecer o vínculo de emprego sempre que estejam presentes os requisitos previstos na CLT – pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação. O que se vê no cotidiano forense é que a assinatura de um contrato como PJ, por si só, não significa independência econômica, liberdade negocial ou autonomia técnica.
É nesse ponto que a suspensão determinada pelo STF mostra seu efeito mais cruel. A medida, que deveria pacificar a jurisprudência, paralisa indiscriminadamente ações de motoboys, motoristas, vendedores e outros trabalhadores em evidente situação de dependência, que, embora formalmente registrados como PJ, prestam serviços com exclusividade, controle de jornada e ordens diretas dos contratantes. A decisão, como se nota, “trata como juridicamente idênticas relações absolutamente desiguais”.
Segundo o Ministério Público do Trabalho, até ações civis públicas que discutem situações análogas à escravidão foram impactadas pela suspensão. Isso significa que a medida atinge até mesmo casos com provas robustas de violação de direitos fundamentais. O argumento de Gilmar Mendes, de que a suspensão evitaria a “proliferação de decisões conflitantes”, ignora que a pluralidade de decisões reflete a pluralidade das realidades concretas.
Como alertado por membros do próprio MPT, há processos em fase avançada que foram travados por tempo indeterminado. Trabalhadores que dependem de uma sentença para sobreviver ficam aguardando a formação de uma tese geral – que pode vir tarde demais.
Não se trata de negar a necessidade de segurança jurídica. O que se defende é o reconhecimento de que não há justiça sem análise do caso concreto. A uniformização de entendimento só faz sentido quando respeita a diversidade das situações. O direito do trabalho não pode ser reduzido a uma fórmula: ele exige sensibilidade institucional, exame da realidade vivida e compreensão da desigualdade estrutural presente na maioria das relações.
A tese de que é possível contratar PJs é válida. Mas só o é quando há autonomia real, como a de um profissional liberal com carteira de clientes, liberdade de horário e independência técnica. A imposição do regime PJ a um trabalhador sem opção, sem voz e sem proteção social não é liberdade contratual – é subordinação disfarçada.
A esperança é que, no julgamento de mérito do Tema 1.389, o STF se lembre da sua própria advertência feita em 2018, que a legislação trabalhista congrega direitos básicos e que é papel da Justiça do Trabalho identificar a fraude e proteger o hipossuficiente, mesmo quando disfarçado de empresário. Nenhuma tese pode prevalecer sobre a dignidade do trabalhador. E nenhuma suspensão pode ser tão ampla a ponto de suspender, junto com os processos, o próprio sentido de Justiça.
Rafael Izidoro Bello Gonçalves Silva
Advogado, pós-graduado em Direito Tributário, CEO da Vismar, Oliveira e Izidoro Advogados, especialista em Direito do Trabalho com ampla atuação na defesa de trabalhadores em todo o Brasil.