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Pesquisas recentes abordam fundamentos sociais do trabalho escravo contemporâneo e enriquecem debate acadêmico sobre a questão no Brasil. Elas renderam coletâneas sobre o trabalho escravo na modernidade.
Por Maurício Reimberg
O ex-ministro Paulo Vanucchi, que liderou por cinco anos a pasta de Direitos Humanos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2005-2010), costuma afirmar que a luta contra a escravidão contemporânea é um desafio-chave. 

Para Vanucchi, ali está “a voz abafada de um Brasil pré-democrático que se recusa a ser extinto ou superado definitivamente”. A investigação dos fundamentos sociais dessa “resistência surda e dissimulada” enuncia contradições nucleares do nosso processo de formação histórica. Esse é um daqueles paradoxos que fornecem chaves teóricas aos empenhados em decifrar – e transformar – o Brasil.

Duas coletâneas recentes situam-se nesse campo de problemas. São elas: Trabalho escravo contemporâneo: um debate transdisciplinar, organizado pelos professores Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado e Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior, e Olhares sobre a escravidão contemporânea: novas contribuições críticas, também compilado por Adonia e Ricardo, que atuou como agente pastoral entre os anos 1970 e 1980 no Pará. As obras têm à frente o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (Gptec) – que faz parte do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ -, em parceria com outros especialistas. 

Criado em 2003, o grupo busca “pautar a discussão da escravidão contemporânea nos marcos da universidade”, conferindo “status científico” ao tema. São utilizados conceitos da antropologia, da história, da sociologia, da economia, da geografia, da psicologia e do direito. Segundo Adonia, professora da Faculdade de Educação da UFRJ e integrante do Gptec, “essa forma de extração e acumulação (o trabalho escravo) faz parte de uma cadeia que sustenta o modo de produção dominante no mundo atual e não deve ser interpretada como um ‘acidente de percurso’”. O pressuposto é compartilhado por diferentes abordagens, que flagram a dinâmica moderna da reposição do atraso no país. 

Herança escravocrata

Dessa forma, as obras evitam o reconhecimento inócuo de “resquícios” arcaicos na marcha da mercantilização. Os textos denunciam como essa armadilha retórica vira justificativa da violência ao ser apropriada por empresários “avançados”. Um exemplo disso é o depoimento de um fazendeiro do Pará, citado em Trabalho escravo contemporâneo. Acusado por uso de mão de obra escrava, ele reclama do fardo que os pobres do meio rural representam para o agrobusiness: “Nós é que somos escravos dos peões. Afinal, temos que lhes arranjar emprego, sustentá-los e ainda cuidar deles”, afirma. A indiferença de classe assume feição brutal e sinaliza a herança escravocrata não superada.

Para enfrentar obscurantismos dessa natureza, os estudos resgatam contribuições teóricas pioneiras sobre a expansão da fronteira agrícola na Amazônia, subsidiada pela ditadura militar (1964-1985). Nesse processo de concentração de terras, permeado pela indistinção entre progresso e barbárie, torna-se visível a prática da escravidão por dívida, associada às migrações. O aliciamento, por sua vez, segue a rota das commodities. O tráfico de mulheres e a “lógica” do esforço desumano nas plantações de cana-de-açúcar também são analisados. Há ainda debates sobre as atuais ações do Estado e da sociedade civil para erradicar a escravidão, as implicações jurídicas do crime e estudos de casos em regiões vulneráveis, como o Pará e o Maranhão. 

Direitos sob ameaça

O trabalho escravo contemporâneo surge como forma de produção que “irrompe onde o contrato social não está suficientemente vigilante”, na definição dos organizadores. A ausência de mediação que assegure direitos ocorre em setores como a cana, a pecuária, o algodão, o café, o carvão vegetal e a tecelagem. Para Marcelo Campos, auditor fiscal do trabalho e assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), “nas formas contemporâneas de escravidão quem explora e escraviza os trabalhadores não está minimamente preocupado com a manutenção da vida do trabalhador”, diz. “Se morrer hoje, amanhã terá outros dez para ocupar o seu lugar”.

Sob ameaças de regressão, o próprio “Direito do Trabalho tornou-se uma cidadela sob cerco”, afirma José Damião de Lima Trindade, procurador do Estado em São Paulo. “O único direito individual que segue gozando de todas as garantias é o direito de propriedade”, diz. O ritmo dessa modernização conservadora, regida pela busca desenfreada do lucro, mostra que a erradicação do trabalho escravo não virá apenas com “medidas mitigadoras”, como a libertação de trabalhadores. Na avaliação de Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, “é preciso, para isso, um tratamento maior, com mudança na própria estrutura do modo de produção, incluindo alteração na forma de expansão do capital”. Ao desnaturalizar mecanismos que sustentam a violência, o esclarecimento serve ao tempo presente.

Serviço:

Trabalho escravo contemporâneo: um debate transdisciplinar 
Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado e Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior (orgs.) 
Mauad X, 296 págs., R$ 46 
Mais informações direto no site da editora

Olhares sobre a escravidão contemporânea: novas contribuições críticas
Ricardo Rezende Figueira e Adonia Antunes Prado (orgs.)
EdUFMT, 418 págs., R$ 50