NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

FÁBRICA DE LEIS

Por Renê Braga

Um dos pontos apresentados como tema de interesse desta recém-inaugurada coluna foi a crescente judicialização do processo normativo e o controle judicial do processo legislativo.

 

Menos de duas semanas após a estreia este espaço, decisão do Tribunal Pleno do STF referendou, por maioria, medida cautelar que suspendeu os efeitos da Lei 14.434/2022, que instituiu o piso salarial nacional dos profissionais de enfermagem.

 

A citada decisão reaviva as discussões sobre a legislação baseada em evidências empíricas e a atividade política do Poder Judiciário, uma vez que a ADI 7.222 levantou tese de inconstitucionalidade (entre outros argumentos) em função do descumprimento do dever de justificação no processo legislativo, sendo este o argumento central utilizado pelo ministro Luis Roberto Barroso para fundamentar o deferimento de cautelar que suspendeu os efeitos da Lei 14.434/2022.

 

Interessante notar que a decisão ultrapassa, portanto, a discussão sobre o direito posto, com foco no controle procedimental da legislação, indo além do controle judicial com enfoque formal ou regimental, mais comum.

 

O controle judicial da atividade legislativa com base na qualidade das deliberações é, há muito, objeto de crítica. No Brasil, os argumentos mais fortes em desfavor dessa modalidade de controle são a ausência de previsão constitucional, o desrespeito à separação dos poderes e o risco que controle dessa natureza representa à própria legitimidade da função legislativa.

 

Ainda sobre a legitimidade das decisões, Waldron[1] fixa as bases para o argumento de que os parlamentos não estão subordinados às análises de custo-benefício ou outras ponderações de ordem técnica realizadas para subsidiar as deliberações. Nesse sentido, é o Poder Legislativo o local adequado para enfrentamento dos dissensos políticos e tomada de decisão e a legitimidade da conclusão advém justamente da observância do processo legislativo para que se chegue à decisão.

 

Voltando à decisão cautelar em comento, esta determinou a suspensão dos efeitos da Lei até que sejam esclarecidos impactos sobre i) a situação financeira de Estados e Municípios, ii) a empregabilidade e iii) a qualidade dos serviços de saúde.

 

Os pontos que carecem de esclarecimentos são, portanto, análises acerca do impacto da legislação aprovada, apontando que o Ministro Barroso concordou com a linha defendida na inicial de que houve falha no dever de justificação no processo legislativo, e que tal deficiência é apta a determinar a suspensão dos efeitos da lei já em vigor.

 

Sobre esse ponto, pondera-se em que medida o questionamento imposto pelo Supremo Tribunal Federal não é consequência das próprias transformações que vêm ocorrendo no Poder Legislativo no sentido de valorizar a verificação de evidências como requisito de legitimidade para decisões legislativas.

 

Mesmo nos casos mais alinhados ao pensamento de Waldron, que indicam a observância ao procedimento como fonte da legitimidade das normas produzidas pelo Parlamento, não se pode negar que a utilização de instrumentos como a análise de impacto legislativo e a utilização de evidências empíricas qualificam o debate político.

 

Nota-se um esforço tanto do poder executivo quanto do poder legislativo no sentido de internalizar essas ferramentas à produção normativa brasileira, tanto na produção de leis quanto de regulamentos.

 

Tais esforços podem ser colocados em contexto quando atenta-se ao desejo, já antigo, do Brasil de aderir à OCDE (vide os Decretos 9.920/2019 e 10.109/2019), sinalização internacional de que o país está disposto a aderir aos costumes internacionais indicados como “boas práticas” pelos países membros da organização.

 

Seguindo essa linha, a necessidade de estimativa de impactos orçamentário e financeiro de todas as proposições legislativas apresentadas já foi colocada como um requisito pela presidência da Câmara, mesmo que tal iniciativa tenha sido parcialmente abandonada.

 

As iniciativas de avaliação legislativa, instituição de procedimentos ou metodologias acabaram se mostrando assistemáticas e inconstantes. O resultado é que cresce a consciência acerca da importância da metodologia de análise de impacto legislativo sem que cresça, proporcionalmente, o comprometimento do Congresso com a implementação dessas técnicas como requisitos da produção normativa.

 

Esse parece ser um dos casos em que meias medidas acabam sendo mais prejudiciais do que medida alguma.

 

A análise dos pareceres, despachos, justificações, declarações de voto e das próprias votações que levaram à aprovação do PL 2.564/2020 demonstram que havia grande vontade política para a aprovação do projeto. Nesse cenário, a aferição dos impactos da aprovação dos pisos salariais acabou sendo vista como um obstáculo a ser transposto para que a aprovação pudesse ocorrer o quanto antes.

 

Mesmo a tramitação da PEC 11/2022, que resultou na Emenda Constitucional nº 124 de 2022 foi no mesmo sentido, indicando em sua proposta que a emenda constitucional era necessária para evitar o risco de suspensão de eventual Lei do Piso Salarial pelo Judiciário em função de vício de iniciativa.

 

Esse fato é mencionado expressamente no relatório do grupo de trabalho criado com o objetivo de aferir os impactos da decisão. Em sua apresentação, o relator afirma que reconhece e apoia o projeto e que trabalhou para “dar celeridade em seu andamento, como forma de garantir, o quanto antes, a sua votação e aprovação”.

 

Também em suas conclusões, o grupo de trabalho indica que há outros temas relevantes acerca dos impactos do piso salarial, mas que estes são alheios ao objetivo do relatório. O relatório indica expressamente que não buscou responder questões acerca da fonte dos recursos, da implantação de medidas mitigadoras dos impactos (reconhecendo-as como necessárias) e da necessidade de observar as desigualdades regionais na implantação destas.

 

Tais ponderações, em vez de afirmarem a suficiência do levantamento do impacto orçamentário apresentado em cumprimento ao disposto no artigo 113 dos ADCT, serviram para destacar a insuficiência dos levantamentos feitos.

 

De fato, o citado artigo 113 restringe-se à “estimativa do impacto orçamentário e financeiro”.  Não obstante, a insuficiência desse levantamento se mostra patente quando se atenta para as próprias ressalvas levantadas pelo grupo de trabalho às suas conclusões.

 

Nesse sentido, a tramitação de projetos dessa relevância requer uma honestidade metodológica levada às últimas consequências. Ou bem o Congresso assume que a decisão é política e que está sendo tomada por ser o Poder Legislativo o local legítimo para que escolhas como essa sejam tomadas, ou bem o Congresso encara a missão de realizar uma análise de impacto legislativa completa que responda às perguntas e questionamentos que fatalmente surgirão.

 

É passado o tempo das meias medidas.


[1] Dois textos de Jeremy Waldron merecem nota, “Law and Disagreement” e “The Core of the Case Against Judicial Review”, ambos referenciados em sua página de publicações.


 é advogado. Doutor e mestre em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Professor do curso de graduação em Direito do Unilavras.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-set-27/fabrica-leis-piso-salarial-enfermagem-procedimento-comprometimento