O PL 638/2019, de autoria da deputada Luzianne Lins (PT-CE), aprovado pela Câmara dos Deputados no último dia 1º de julho, representa uma iniciativa transformadora para o reconhecimento formal da economia do cuidado no Brasil.
O texto propõe a aferição do valor econômico e do impacto da “economia do cuidado” no desenvolvimento econômico e social do país por meio de uma conta-satélite vinculada ao Sistema de Contas Nacionais (SCN), além de alterar a Lei 7.735/1985 para incluir nas competências do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher o acompanhamento da implementação dessa conta-satélite.
O projeto surge em um cenário de reconhecida importância das chamadas atividades de cuidado não remunerado para a manutenção da vida, da sociedade e da própria economia.
Essas atividades, desempenhadas majoritariamente por mulheres, integram a “economia do cuidado”, que, conforme definida no projeto, engloba um conjunto de atividades essenciais à reprodução social e ao bem-estar da população, incluindo tarefas domésticas, cuidados diretos a crianças, idosos, pessoas com deficiência e enfermos, além de serviços comunitários não remunerados. Apesar de indispensáveis para a manutenção da força de trabalho e da sociedade, não são contabilizadas como produção econômica.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2022, analisados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Brasil, o fato de ser mulher acrescenta, em média, 11 horas semanais no trabalho doméstico e de cuidado não remunerado em relação aos homens[1].
Em 2022, as mulheres despenderam semanalmente 21h36min, e os homens 11h48min neste trabalho[2]. As mulheres dedicam, em média, 25,7 horas semanais a trabalhos domésticos e de cuidados não remunerados, enquanto os homens dedicam cerca de 10,8 horas por semana a essas atividades.
Considerando a “dupla jornada”, com uma diferença de aproximadamente 11,1 horas semanais em afazeres domésticos, as mulheres acumulam, ao longo de um ano, cerca de 577 horas a mais que os homens, o que corresponde a aproximadamente 72 dias de trabalho adicional por ano (considerando uma jornada diária de 8 horas).
Estudo do Ipea, publicado em 2023[3], com base na PNAD Contínua de 2022, reforça que as mulheres, especialmente as mais pobres, enfrentam uma carga significativamente maior de trabalho não remunerado. O estudo aponta que mulheres em domicílios com renda de até um quarto de salário-mínimo por pessoa dedicam, em média, 25,7 horas semanais a afazeres domésticos, enquanto as mais ricas (com renda superior a 8 salários-mínimos por pessoa) dedicam 15,5 horas.
Essa desigualdade de gênero no trabalho doméstico e de cuidados não remunerados tem impactos negativos na vida das mulheres, especialmente em termos de tempo disponível para lazer, educação ou progressão na carreira.
Essa sobrecarga, conhecida como “dupla jornada”, impacta negativamente o tempo disponível para lazer, educação e progressão profissional, especialmente entre mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica. As tarefas de cuidado, historicamente invisibilizadas e majoritariamente desempenhadas por mulheres, não são contabilizadas como produção econômica, apesar de serem indispensáveis para a manutenção da sociedade e da força de trabalho.
O PL 638 alinha-se aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, particularmente o ODS 5, que promove a igualdade de gênero, e o ODS 8, que foca no trabalho decente e no crescimento econômico inclusivo.
A proposta complementa a Lei 15.069/2024, que instituiu a Política Nacional de Cuidados, visando garantir a corresponsabilização social e entre gêneros na provisão de cuidados, considerando as múltiplas desigualdades estruturais presentes na sociedade brasileira.
O reconhecimento da economia do cuidado é um passo fundamental para visibilizar o trabalho não remunerado, majoritariamente feminino, e subsidiar políticas públicas que promovam igualdade, proteção social e valorização do trabalho doméstico.
A proposta busca criar um mecanismo sistemático para quantificar e valorizar essas atividades, que, apesar de sua relevância socioeconômica, permanecem ausentes das contas nacionais.
No mercado de trabalho formal, segundo dados do Dieese, em 2022 25% dos homens tinham jornada de trabalho semanal superior a 44 horas. As mulheres ocupadas tinham jornada de 55,1 horas semanais, quando somados afazeres domésticos e outros trabalhos[4].
Apesar da relevância socioeconômica dessas funções, não há ainda um mecanismo sistemático que quantifique e valorize formalmente essa economia do cuidado no Brasil, onde as desigualdades de gênero são marcantes, e a visibilidade dessa economia pode ser um avanço significativo.
A proposta central do PL é a criação de uma conta-satélite no âmbito do SCN para mensurar o valor econômico e o impacto social do trabalho de cuidado não remunerado, abrangendo atividades como organização do lar, preparação de alimentos, limpeza, cuidados diretos a dependentes e serviços comunitários voluntários.
Diferentemente do PIB, que se restringe a atividades mercantis, a conta-satélite permitirá capturar atividades não monetizadas, funcionando como um indicador socioeconômico complementar, sem integrá-las ao cálculo oficial do PIB. Essa abordagem preserva a metodologia tradicional do PIB, mas cria espaço para novas métricas que podem, no futuro, apoiar a incorporação do trabalho não remunerado nas contas nacionais.
A conta-satélite será baseada na Pesquisa de Uso do Tempo, conduzida pelo IBGE em 2009 e 2019, que coleta dados detalhados sobre o tempo dedicado a atividades domésticas e de cuidado, permitindo estimativas econômicas por meio de técnicas de valoração, como o custo de oportunidade ou o custo de substituição.
A implementação da conta-satélite exigirá coordenação intersetorial entre o IBGE e os Ministérios da Fazenda, Planejamento e Orçamento, Mulher, Família e Direitos Humanos, com atualizações dos dados previstas a cada cinco anos. Os resultados subsidiarão a formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas voltadas ao cuidado, promovendo a institucionalização do tema na agenda de desenvolvimento nacional.
O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher desempenhará um papel crucial no acompanhamento da implementação, em parceria com universidades, órgãos de controle e organizações sociais, reforçando a perspectiva de gênero. Essa abordagem reconhece que a maior parte do trabalho de cuidado é realizada por mulheres, especialmente em situação de vulnerabilidade, e busca promover políticas que reduzam as disparidades relacionadas ao tempo e à carga de cuidado, que limitam a participação feminina em outras esferas da vida.
O impacto socioeconômico da proposta é amplo e significativo. Ao visibilizar o trabalho de cuidado, o PL contribuirá para a redução das desigualdades de gênero, alinhando-se à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), ratificada pelo Brasil em 2002.
Dados do Fórum Econômico Mundial (2023) posicionam o Brasil na 89ª colocação no Índice de Desigualdade de Gênero, e a formalização da economia do cuidado pode impulsionar políticas públicas que ampliem o acesso a creches, serviços de assistência a idosos e programas de proteção social para cuidadores informais. Essas medidas podem aliviar a sobrecarga sobre as mulheres, promovendo maior equidade na divisão do trabalho e melhores condições para sua inserção no mercado formal, educação e lazer.
Estudos internacionais reforçam a relevância econômica do trabalho de cuidado não remunerado. O Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2018 estima que, em 53 países, esse trabalho representa cerca de 9% do PIB global, com variações de 2,1% a 41,3% dependendo do país e da metodologia utilizada.
No Brasil, cálculos[5] indicam que o trabalho doméstico não remunerado equivale a aproximadamente 11% do PIB, o que, considerando o PIB de 2024 (R$ 11,7 trilhões), representaria entre R$ 1,2 e R$ 1,75 trilhões. A ONU Mulheres e a Cepal (2021) apontam que, na América Latina, o trabalho não remunerado das mulheres contribui com 15,9% a 25,3% do PIB, sendo 75% desse valor atribuído às mulheres. Esses números destacam o impacto potencial da conta-satélite na economia brasileira, fornecendo uma base empírica para políticas públicas mais assertivas.
Experiências internacionais oferecem referências valiosas para o PL 638/2019. A Austrália, pioneira desde 2006, utiliza a Pesquisa de Uso do Tempo e o método de custo de substituição para estimar o trabalho não remunerado, que representa 41,6% a 58,7% do PIB. O Canadá, com atualizações entre 2015 e 2019, calculou que o trabalho doméstico não remunerado equivale a 37,2% do PIB (US$ 860,2 bilhões em 2019).
O México, desde 2013, estima esse trabalho em 26,3% do PIB (2019), utilizando dados da Pesquisa Nacional sobre o Uso do Tempo para subsidiar políticas de igualdade de gênero, como licenças parentais igualitárias. Na União Europeia, países como a Suécia utilizam contas-satélite para estimar valores entre 25% e 40% do PIB, apoiando políticas de parentalidade e creches universais.
O PL 638 posiciona o Brasil em linha com essas práticas, mas destaca-se por vincular explicitamente a implementação ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, reforçando o foco na igualdade de gênero.
A implementação da conta-satélite enfrenta desafios significativos. A quantificação do trabalho de cuidado é metodologicamente complexa, envolvendo aspectos econômicos, sociais e emocionais, além da subjetividade na definição das atividades. A exclusão desses dados do cálculo do PIB pode ser vista como uma limitação, mantendo o trabalho de cuidado à margem da economia formal.
Além disso, a efetividade da proposta dependerá de vontade política, investimento em capacitação técnica e coordenação entre instituições governamentais, universidades e sociedade civil. Outro desafio é garantir que os dados gerados se traduzam em políticas públicas eficazes, como a redistribuição das responsabilidades de cuidado, a ampliação de serviços públicos de qualidade e a valorização do trabalho feminino.
O PL 638 é uma iniciativa inovadora que posiciona o Brasil na vanguarda do reconhecimento da economia do cuidado, uma dimensão essencial para a sustentabilidade social e econômica do país. Ao visibilizar o trabalho predominantemente feminino, muitas vezes desvalorizado, o projeto fomenta o debate sobre justiça social e igualdade na divisão do trabalho doméstico e de cuidado.
Sua implementação pode transformar a forma como o Brasil aborda o desenvolvimento nacional, promovendo políticas públicas que reduzam as desigualdades estruturais, especialmente de gênero, e alinhem o país com compromissos internacionais de direitos humanos e desenvolvimento sustentável.
A criação da conta-satélite fornecerá uma base empírica robusta para políticas de cuidado, como incentivos à formalização do trabalho doméstico, ampliação de serviços públicos e redistribuição das responsabilidades de cuidado, contribuindo para um futuro mais equitativo e inclusivo.
[1] https://repositorio.ipea.gov.br/server/api/core/bitstreams/0c205514-5f9d-4ab8-a005-e82390995894/content
[2] https://www.ipea.gov.br/portal/retrato/indicadores/trabalho-domestico-e-de-cuidados-nao-remunerado/apresentacao
[3] https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/14024-estudo-aponta-desigualdade-de-genero-no-trabalho-domestico-e-de-cuidados-nao-remunerado-no-brasil
[4] https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2024/1demaio.pdf
[5] Ver Hildete Pereira de Melo e Lucilene Morandi. Mensurar o trabalho não pago no Brasil: uma proposta metodológica. Economia e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 1 (71), p. 187-210, janeiro-abril 2021.
Luiz Alberto dos Santos é consultor legislativo (aposentado) do Senado. Mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais/Estudos Comparados, advogado e professor colaborador da Ebape/FGV
DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/pl-638-a-economia-do-cuidado-no-brasil-e-sua-contabilizacao/