A Portaria MTE 3.665/2023, que entrará em vigor no próximo dia 1º de julho, promove mudanças substanciais nas normas que regem o trabalho em domingos e feriados, especialmente no segmento do comércio e dos serviços. Revogando autorizações permanentes previstas na Portaria 671/2021, estabelece-se que o labor em dias feriados se submeta à prévia negociação coletiva, imprimindo a esse arranjo laboral as notas da temporariedade, da revisão periódica e da consensualidade coletiva.
Trata-se da recuperação do império da legalidade em sentido formal — que não pode ser superada por portarias administrativas, sobretudo em prejuízo do trabalhador – conforme já dispunham a Lei 10.101/2000 e sua alteração pela Lei 11.603/2007 (art. 6º-A).
Além disso, a normativa reforça a segurança jurídica e valoriza o diálogo social, pois as condições para o trabalho em feriados deixam de ser unilateralmente impostas e passam a ser objeto de negociação entre empregadores e sindicatos, prestigiando a autonomia privada coletiva e reforçando o papel constitucional dos sindicatos (CF, art. 8º, III).
Entre os setores impactados estão supermercados, açougues, farmácias, lojas de veículos e diversos outros ramos do comércio varejista. A exigência de convenções ou acordos coletivos de trabalho impõe novos desafios, sobretudo para pequenas e médias empresas, que poderão enfrentar dificuldades operacionais e financeiras para viabilizar negociações sindicais. Ainda assim, a medida representa uma oportunidade para adoção de práticas laborais mais equitativas, que valorizem a negociação coletiva e reconheçam o descanso como aspecto indissociável da dignidade do trabalhador.
Os críticos da nova portaria alegam riscos de desabastecimento em setores essenciais e excesso de “burocracia”. No entanto, a normativa preserva o funcionamento de serviços definidos como essenciais (Lei 7.783/1989, art. 10), tais como postos de combustíveis, hotéis e feiras livres, que permanecem autorizados a operar nos feriados sem a exigência de negociação coletiva.
Vale ressaltar também que a Portaria 3.665/2023 não altera as regras sobre controle eletrônico de jornada (REP-C, REP-A e REP-P, da Portaria 671/2024), como tampouco interfere – e nem poderia – nas normas municipais sobre o funcionamento do comércio.
Por outro lado, o argumento de que a obrigação de negociar coletivamente antes de suprimir ou relativizar um direito tão sensível seja um “excesso burocrático” chega a ser cínico, quando parte daqueles que, há alguns anos (mais exatamente em 2017, ao tempo da reforma trabalhista), pediam maior espaço para a negociação entre patrões e sindicatos e a redução do papel do Estado na regulação das relações de trabalho. A tese do Estado mínimo só tem serventia quando o Estado regula em prol das classes trabalhadoras?
Em plagas brasileiras, no ano de 2024, os processos trabalhistas envolvendo horas extras e intervalos intrajornada estiveram entre os mais recorrentes no Tribunal Superior do Trabalho (TST): foram 70.508 processos relacionados a horas extraordinárias, representando um aumento de 19,7% em comparação com 2023.
Apenas isso já parece revelar que o trabalho além da 8ª hora e/ou em domingos e feriados é recorrente – e cada vez mais recorrente – no Brasil. Nada obstante, a CLT proíbe o trabalho em feriados (art. 70), assegurando o pagamento integral dos dias não trabalhados; e, se trabalhados e não compensados, cabe remunerá-los em dobro, i.e., com adicional de 100% (Súmula 146 do TST).
A regulamentação administrativa do trabalho em feriados busca justamente compatibilizar o funcionamento de atividades econômicas que não devem sofrer soluções de continuidade (veja-se, na origem, o Decreto 27.048/1949) com o direito fundamental ao repouso e à desconexão.
Do ponto de vista social e econômico, porém, o labor em feriados impacta negativamente a saúde física e mental do trabalhador, reduzindo o convívio social e familiar e aumentando os riscos de estresse e exaustão.
Por isso, a Portaria 3.665/2023 anda bem ao promover a negociação coletiva – e não a individual, em que o empregado amiúde se vê instado a consentir com todas as posições patronais – como forma de garantir compensações justas e preservar a integridade do empregado.
Por meio de acordos e convenções coletivas, com efeito, podem-se pactuar medidas de proteção e equilíbrio — como remuneração adicional, folgas compensatórias e limitações de jornada — que alinhem as necessidades econômicas às exigências humanas do trabalho.
Trata-se, assim, de uma normativa que milita na direção da valorização do trabalho humano e da proteção dos direitos fundamentais. E, para mais, restaura-se o império da legalidade, já que, ao revogar várias das autorizações permanentes previstas na Portaria 671/2021 e ampliar o condicionamento do labor em dias feriados à prévia negociação coletiva, a Portaria 3.665 imprime as notas da temporariedade, da revisão periódica e da consensualidade coletiva ao respectivo arranjo laboral, nos termos do art. 7º, XIII, XV e XXVI, da CRFB, além de atender ao disposto pelo art. 6º-A da Lei nº 10.101/2000, na redação da Lei 11.603/2007: “É permitido o trabalho em feriados nas atividades do comércio em geral, desde que autorizado em convenção coletiva de trabalho e observada a legislação municipal, nos termos do art. 30, inciso I, da Constituição” (g.n.); como se vê, “portarias” ou “atos administrativos” não estão mencionados.
Por fim, voltando à questão do trabalho (e do descanso) e em linha de arremate, merecem reflexão as palavras do saudoso Jorge Bergoglio, o papa Francisco, ao ensejo da Laudato Si: a tradição bíblica, não à toa, “estabelece claramente que esta reabilitação [dos homens] implica a redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na natureza pela mão do Criador. Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo dia, Deus descansou de todas as suas obras. […] O desenvolvimento desta legislação procurou assegurar o equilíbrio e a equidade nas relações do ser humano com os outros e com a terra onde vivia e trabalhava”.
E, em linha similar, o filósofo francês Michel Foucault reconhecia e denunciava, ao tratar do biopoder nas relações de trabalho, os mecanismos pelos quais o trabalhador obriga-se a alienar uma parte da sua vida e do seu tempo para o empregador. Um cristão, outro ateu; e, de ambos, a mesma mensagem: é preciso limitar convictamente a apropriação econômica do tempo de vida do outro.
Esses são, afinal, os luminosos nortes — de valorização da pessoa humana em face da máquina do consumo e da reabilitação da pessoa trabalhadora com a sua própria natureza biológica — para os quais caminha a Portaria 3.665/2023. Não é perfeita. Mas é o melhor para o momento.
Guilherme Guimarães Feliciano é juiz do Trabalho e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2017-2019
DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/por-um-direito-fundamental-a-desconexao-do-trabalho-em-feriados/