Opinião
Não é difícil imaginar o quão árduo pode ser conseguir um motorista através do aplicativo de transporte em determinadas datas, horários do dia e localidades, onde a falta de motoristas e a demanda excessiva resultam em preços exorbitantes e longas esperas. Mas há algo além da necessidade financeira que faça com que esses trabalhadores tomem a decisão nada agradável de permanecer trabalhando, por exemplo, dirigindo na véspera do ano novo, ao invés de estarem com seus familiares e amigos?
Nos últimos anos, a gamificação – termo utilizado para designar a aplicação de sistemas de jogo (competição, recompensas, quantificação do comportamento do jogador/usuário) – ganhou destaque em organizações com intuito de estimular a produtividade, em domínios não relacionados a jogos. Todavia, a maior expressividade da gamificação ocorre em trabalho por plataforma digitais, com oferta de prêmios, recordes pessoais e metas diárias apresentados aos trabalhadores de forma lúdica para mobilizar a produtividade ou evocar comportamentos específicos [2].
A perspectiva do capitalismo de vigilância aliado à modificação de comportamento, vale-se de jogos (que envolvem comportamento com regras), recompensando algumas formas de agir e punindo outras, as empresas empregam a estrutura de jogos como meio de gerar mudança de comportamento nos jogadores. A dinâmica dos jogos envolve a motivação, emoções despertadas por competitividade e sensação de frustração, a criação da experiência de progresso rumo a um objetivo maior, ou relações que provoquem sentimentos como espírito de equipe ou agressividade, seguido de procedimentos que guiam a ação e constituem o engajamento [4].
A referida dinâmica atraiu atenção dos agentes que atuam na gig economy, expressão que designa o macroambiente de negócios caracterizado pelo predomínio de contratos de curta duração com trabalhadores independentes. A gig economy se desenvolve, principalmente, através do crowdwork e o work on-demand, sendo o primeiro o “trabalho em multidão”, valendo-se de plataformas virtuais de trabalho coletivo destinadas à captação de prestações laborais, em um universo virtualmente global de potenciais prestadores, para o cumprimento de uma série de tarefas adredemente ordenadas, e, o segundo, corresponde ao trabalho sob demanda via aplicativos. É uma forma de trabalho na qual a execução de atividades tradicionais como transporte e limpeza, por exemplo, é canalizada por aplicativos gerenciados por empresas que também intervêm na definição de padrões mínimos de qualidade de serviço e na seleção e gestão da força de trabalho [5].
Potencializando as relações sociais e jurídicas na Gig economy, o Gig leisure se consolida como forma de exploração por meio do tempo de lazer produtivo, para que o máximo de tempo do trabalhador esteja disponível para a exploração capitalista. Assim, os jogos, no modelo de produção pós-fordista, são incorporados tanto à ideologia da gig economy quanto às necessidades da produção. Por isso, empresas de mídia usam tecnologias móveis para monetizar momentos intermediários, convertendo o privado, o intermediário e o indivíduo em capital, diminuindo as barreiras que limitavam o tempo lucrativo para que os momentos privados sejam convertidos em trabalho lucrativo. Em outras palavras, assim como a produção econômica pós-fordista criou trabalho temporário, ela também criou o “lazer temporário” [6].
Não obstante algumas pesquisas científicas atestem possíveis benefícios da gamificação em algumas áreas, como na educação, gostaria de me concentrar nos efeitos do fenômeno nas relações de trabalho, especialmente como instrumento de controle, precarização do trabalho e desumanização do trabalhador, o que parece ser tanto mais nefasto quando se analisa através de lentes contendo marcadores sociais da diferença, sem esquecer, é claro, do contexto histórico e cultural de determinado território.
Alta satisfação
No tocante à forma, as empresas de plataformas digitais obtêm o comportamento desejado dos trabalhadores, direcionam tarefas de trabalho, supervisionam, avaliam o desempenho e organizam a disciplina e recompensas, cunhou-se a expressão gerenciamento algorítmico ou subordinação algorítmica para descrever a forma de controle do trabalho que funciona moldando um ambiente no qual há apenas alternativas programadas para a execução das tarefas de trabalho, onde o sistema pouca transparência e os trabalhadores não têm conhecimento do conjunto de regras que governam os algoritmos [9].
E ao que parece, a dinâmica da gamificação na Gig Economy tem dado o resultado idealizado por esses grandes agentes econômicos: em estudo recente, Martin Krzywdzinsk e Christine Gerber [11] relatam que pessoas trabalhando sob automação gamificada têm 2,49 vezes mais chances de relatar alta satisfação no trabalho do que trabalhadores na categoria de controle direto pelo cliente. As chances de descrever o trabalho de plataforma como algo que as pessoas querem buscar a longo prazo são 3,77 vezes maiores sob automação gamificada do que na categoria de controle direto pelo cliente. Mas o mesmo estudo indica os trabalhadores na automação gamificada têm 1,49 vezes mais chances de se sentirem apressados e sob pressão de tempo do que os trabalhadores no regime de controle direto do cliente e têm 2,14 vezes mais chances de pressão devido o monitoramento permanente de desempenho.
Considerando que, especulativamente, mais de quatro milhões de trabalhadores do serviço de entrega utilizam plataformas digitais como Uber, Rappi, 99 e iFood e que a maioria desses trabalhadores são homens, jovens adultos, pardos e pretos em jornadas de trabalho que passam das dez horas diárias, em ao menos seis dias na semana, com rendimentos variáveis entre R$ 130,00 e R$ 520,00 por semana [13], tudo converge para afirmar que a precarização do trabalho em plataformas digitais e por gamificação é fortemente influenciada por marcadores sociais da diferença e forma uma população de trabalhadores cada vez mais precária, com baixa proteção justrabalhista.
REFERÊNCIAS
MOHLMANN, Mareike; ZALMANSON, Lior. Hands on the Wheel: Navigating Algorithmic Management and Uber Drivers Autonomy. ICIS, Proceedings, 2017.
https://aisel.aisnet.org/icis2017/DigitalPlatforms/Presentations/3
NICHOLS, Randall. This is Gig Leisure: Games, Gamification, and Gig Labor. In: The Gig Economy: Workers and Media in the Age of Convergence. Routledge, 2021.
POPAN, Cosmin; ANAYA-BOIG, Esther. The intersectional precarity of platform cycle delivery workers, Center for Open Science, 2021.
SCHEIBER, Noam. How Uber uses psychological tricks to push its drivers’ buttons
The New York Times, April 3, 2017. Disponível em https://www.nytimes.com/interactive/2017/04/02/technology/uber-drivers-psychological-tricks.html
UCHÔA-DE-OLIVEIRA, Flávia Manuella; BASTOS, Juliano Almeida. Uberização: precarização do trabalho e ação política dos trabalhadores no Brasil de 2020. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, [S. l.], v. 25, p. e-180691, 2022. DOI: 10.11606/issn.1981-0490.cpst.2022.180691. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/180691.. Acesso em: 27 dez. 2024.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
[1] SCHEIBER, Noam. How Uber uses psychological tricks to push its drivers’ buttons
The New York Times, April 3, 2017. Disponível em https://www.nytimes.com/interactive/2017/04/02/technology/uber-drivers-psychological-tricks.html. Acesso em: 27 dec. 2024.
[2] OLIVEIRA, R. C. de. Gamification and uberized work in application companies. RAE – Revista de Administracao de Empresas , [S. l.], v. 61, n. 4, p. 1–10, 2021, p. 3 DOI: 10.1590/S0034-759020210407. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rae/article/view/84313. Acesso em: 22 dec. 2024.
[3] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. p. 15.
[5] FELICIANO, Guilherme Guimarães e PASQUALETO, Olívia de Quintana Figueiredo. (Re)descobrindo o direito do trabalho: Gig economy, uberização do trabalho e outras flexões. Jota. São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2019. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juizo-de-valor/redescobrindo-o-direito-do-trabalho-06052019. Acesso em: 27 dez. 2024.
[6] NICHOLS, Randall. This is Gig Leisure: Games, Gamification, and Gig Labor. In: The Gig Economy: Workers and Media in the Age of Convergence. Routledge, 2021, p. 179.
[7] OLIVEIRA, R. C. de. Gamification and uberized work in application companies. RAE – Revista de Administracao de Empresas , [S. l.], v. 61, n. 4, p. 1–10, 2021, p. 5 DOI: 10.1590/S0034-759020210407. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rae/article/view/84313. Acesso em: 22 dez 2024.
[8] POPAN, Cosmin; ANAYA-BOIG, Esther. The intersectional precarity of platform cycle delivery workers, Center for Open Science, 2021.
https://aisel.aisnet.org/icis2017/DigitalPlatforms/Presentations/3
[10] KRZYWDZINSKI, Martin; GERBER, Christine. Between automation and gamification: forms of labour control on crowdwork platforms. Work in the Global Economy, 202i, p. 174. Disponível em https://doi.org/10.1332/273241721X16295434739161. Acesso em 21 Dez. 2024.
[11] Op. Cit, p. 176.
[12] UCHÔA-DE-OLIVEIRA, Flávia Manuella; BASTOS, Juliano Almeida. Uberização: precarização do trabalho e ação política dos trabalhadores no Brasil de 2020. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, [S. l.], v. 25, 2022, p. 4. DOI: 10.11606/issn.1981-0490.cpst.2022.180691. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/180691.. Acesso em: 26 dez. 2024.
[13] Op. Cit, p. 6.