Senso Incomum
1. Introduzindo o tema:
Há certas coisas que são difíceis de compreender.
O Código Eleitoral, em seu artigo 362, estabelece que caberá recurso das decisões proferidas em processos que apuram infrações no prazo de dez dias. O artigo 266 da mesma lei aduz, no capítulo relativo aos recursos contra despachos de juízes ou juntas eleitorais, que este independerá de termo.
Já o artigo 364, ainda, aponta que as disposições do Código de Processo Penal deverão ser aplicadas de forma subsidiária. Isso importa dizer, para os tribunais (como veremos logo adiante), que as razões recursais em face de sentenças do juiz eleitoral, em matéria penal, independerão de termo, impedindo, dessa forma, a aplicação analógica do artigo 600, parágrafo 4º, do Código de Processo Penal que possibilita que a parte apresente as razões diretamente no tribunal.
Sendo mais claro: no rito processual penal previsto no CPP, quando é prolatada uma sentença pelo juiz de primeiro grau, é facultada às partes a apresentação de razões de apelação diretamente no tribunal.
Dessa forma, apresenta-se o termo de apelação no prazo de cinco dias, momento em que a parte poderá optar por lançar as razões do apelo ao juiz de primeiro grau ou, após intimação do desembargador relator, apresentá-las em segundo grau. Mesmo prazo de oito dias.
Porém, no processo eleitoral essa regra, nem mesmo pelo filtro do artigo 364 do CE, poderá ser aplicada, uma vez que as razões devem vir acompanhadas do recurso, ainda em primeiro grau de jurisdição.
Sobre essa temática, o então ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, em decisão monocrática no HC nº 128.873/SP, considerou passível de conhecimento a apresentação “bipartida” das razões, não vislumbrando qualquer prejuízo ao andamento processual e reconhecendo a necessidade de a corte tomar uma decisão sobre a aplicabilidade do artigo 600, parágrafo 4º, aos processos eleitorais.
No entanto, anos depois, quando do julgamento do mérito, alterou seu posicionamento e filiou-se no sentido de que, em virtude da incidência do princípio da especialidade, o recurso de apelação – mesmo na seara penal eleitoral – não poderia ser conhecido, operando-se, dessa forma, a preclusão consumativa. A 1ª Turma, assim, denegou a ordem, ainda contando com as notas do ministro Alexandre de Moraes, alegando inexistir, em seu ver, lacuna.
A partir da fixação desse entendimento, pacificou-se no Tribunal Superior Eleitoral a compreensão de que não se conhece de recurso eleitoral cujas razões são interpostas diretamente no tribunal, mesmo quando o juízo eleitoral originário adotar o rito previsto no Código de Processo Penal, deferindo o processamento “bipartido”.
2. Algumas notas sobre o HC 128.873/SP e como o STF deve lidar com as garantias processuais penais em processos eleitorais após a decisão proferida no Inquérito 4.435/DF – o papel da hermenêutica
Desse preâmbulo, a primeira constatação que fazemos diz respeito à decisão da 1ª Turma do STF: o artigo 364 do Código Eleitoral permite a aplicação analógica da legislação processual penal. Nesse norte, o artigo 362 não diz que o recurso independerá de termo. Estamos falando de processo penal eleitoral, cujas penas conduzem indivíduos ao cárcere, notadamente a partir do decidido no Inquérito 4.435/DF, que determinou a prevalência da Justiça Especializada em relação às demais, fazendo com que esta ficasse incumbida de julgar casos complexos envolvendo crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa e afins. No mínimo deveria ocorrer uma atualização hermenêutica.
A bem da verdade, o dispositivo do Código Eleitoral que refere ser desnecessário o termo está contido no artigo 266 que diz o seguinte: “o recurso independerá de termo e será interposto por petição devidamente fundamentada, dirigida ao juiz eleitoral e acompanhada, se o entender o recorrente, de novos documentos”. Ok. A própria redação do artigo já demonstra que nada tem a ver com processo criminal. Isso deveria importar. Por vezes, a uma certa literalidade ajuda, ao menos para espantar os fantasmas das ficções jurídicas contra o réu. Juntada de novos documentos? Como assim?
O MPE pode anexar novas provas em sede de recurso ou mesmo a defesa? E a supressão de instância? Logo, em termos hermenêuticos, há uma segura pista que aponta para a não incidência em processo penal. Aqui deveria haver uma parada, para expungir as interpretações antitéticas ao devido processo legal.
Esses questionamentos acabam por ser explicados por um singelo motivo: o recurso mencionado está previsto no capítulo II do Código Eleitoral que disciplina os “recursos perante as juntas e juízos eleitorais”. O dispositivo antecessor, o 265, diz o seguinte: “dos atos, resoluções ou despachos dos juízes ou juntas eleitorais caberá recurso para o Tribunal Regional”. Tal capítulo diz respeito às decisões que se forjam em meio ao período eleitoral.
Ou seja, o 362 não tem nada, mas nada mesmo, a ver com isso. Cuida-se de um dispositivo que, sim, pode ter a sua aplicação analógica condicionada ao Código de Processo Penal, máxime porque prejuízo algum será derivado deste ato que, em verdade, expande o direito de defesa.
Quer dizer, uma revisão do entendimento do Supremo Tribunal Federal, nos dias de hoje, deve dialogar com a decisão que o próprio tribunal lançou no Inquérito 4.435/DF cerca de dois anos depois de firmar o entendimento sobre a apresentação “bipartida” de recurso em processos criminais eleitorais.
Fato relevante e que contingencia a história: a Justiça Eleitoral mudou! Ela não está mais restrita ao julgamento de meras falsidades ideológicas eleitorais, compra de votos e outras infrações menos graves. É preciso ter isso em mente.
A segunda constatação se refere ao próprio direito de defesa, tão massacrado nos dias de hoje pela jurisprudência defensiva. Uma leitura constitucional do Código Eleitoral conduziria, primeiro, à seguinte afirmação:
“Na medida em que o capítulo – relativo às infrações de ordem penal – em que consta o processamento dos recursos criminais eleitorais não é preciso quanto ao termo, logo admitir-se-á a interposição das razões diretamente no tribunal, desde que tal termo seja apresentado tempestivamente após a intimação pessoal do sentenciado (essa última parte é uma outra discussão pertinente, talvez para um momento futuro);
segundo, garantias constitucionais, como a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição, devem sempre ser lidos contra o Estado e em favor do réu. A nossa arqueologia constitucional não nos deixa mentir. Quanto mais grave o delito, mais garantias. Essa deve ser a lógica, justamente porque quanto mais grave, mais pesada será a punição (se houver).”
A terceira, e última, constatação é atinente à subversão da lógica do sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais que em vez de pro reo, inadvertidamente, tem se transformado em pro societate (como se fosse possível, mesmo com muita caridade hermenêutica, extrair esse conceito da constituição). E isso podemos afirmar a partir de outras observações: o artigo 10 do Código de Processo Penal estabelece um prazo máximo de 30 dias para término das investigações policiais. Já o 46 estabelece um prazo máximo de 15 dias, contados da conclusão do inquérito, para oferecimento de denúncia. O Código Eleitoral, que é o que estamos a analisar, dispõe um prazo de dez dias para o juiz sentenciar o caso após o protocolo dos últimos memoriais. Honestamente, esses prazos são considerados por esses atores? O que a sua não observância acarreta? Absolutamente nada.
Vamos além: os tribunais – e aqui nem é preciso citar leading cases porque em seis ou sete segundos de Google será possível localizar alguns – afirmam que não há nulidade sem prejuízo. Cuida-se de afirmação derivada de princípio não institucionalizado que se convencionou chamar de pás de nulitte sans grief. Mesmo casos de nulidade absoluta – por exemplo, ausência de defesa técnica, violação ao artigo 212 do CPP, etc. – dependem de demonstração de prejuízo. Mas, como assim? Não há como se presumir tal prejuízo, dizem eles.
Ora – e aqui a pergunta de um milhão de Códigos – será que nem mesmo a condenação à margem da lei é suficiente para que o prejuízo seja presumido? Alguém já se perguntou qual seria o prejuízo de apresentar razões de apelação em segundo grau de jurisdição nos casos de crimes eleitorais? De novo, o atual entendimento do STF, encampado no Inquérito 4.435/DF, intensificou o uso da Justiça Eleitoral para crimes reflexamente relacionados à Justiça Especializada (que de sua própria competência originária ficam normalmente adstritos a crimes menos graves, como o artigo 350 do CE, cuja pena não ultrapassa cinco anos de reclusão) que, hodiernamente, é responsável por casos que podem, inclusive, conduzir alguém ao cárcere pelo máximo de pena privativa de liberdade prevista em lei.
3. Afinal, a quem se destinam as garantias processuais penais?
Voltando à questão dos prazos, veja-se que, no processo eleitoral, o acusado tem a disposição o prazo de dez dias para responder à acusação (artigo 359, parágrafo único, CE). Isso a partir do momento em que toma ciência daquilo que foi produzido pela autoridade policial e pelo Ministério Público Eleitoral que, sendo muito caridoso, não é menor do que o respectivo a um ano de investigação.
Depois que se conclui toda a instrução processual, a defesa tem o prazo de míseros cinco dias para apresentar as suas alegações finais (artigo 360, CE). Finalmente, depois que o juiz eleitoral, muitas vezes morosamente, sentencia o caso (claro que não observando o seu prazo de dez dias), a defesa terá os mesmos dez dias para apresentar recurso com as razões inclusas, por vezes em face de decisões com cinquenta ou cem laudas que o juízo eleitoral tomou meses para fazer.
Eis que a defesa, para ganhar um fôlego, requisita a apresentação das razões em segunda instância, e padece com o risco quase que fatal de ver o seu recurso não ser conhecido.
Não há, nisso, uma subversão da lógica do sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais?
Veja-se que em uma perspectiva hermenêutico-constitucional é altamente descabido conferir mais direitos e garantias à acusação em detrimento do acusado. O artigo 600, parágrafo 4º, do Código de Processo Penal, para além da questão formal, é uma garantia do acusado em processo penal que, certamente, transcende a mera instrumentalidade e não enseja, sob nenhum ângulo, qualquer prejuízo às partes. É também uma questão de paridade de armas. Enquanto o Ministério Público Eleitoral, a Polícia Federal (que investiga o caso) e o juízo eleitoral não são minimamente sancionados por descumprir prazos fixados em lei, à defesa é impossibilitado o mínimo de apresentar razões em segunda instância, tal como a lei prevê.
Dito isto, analisando todo esse cenário processual, o que aparenta é que a parte hipossuficiente – aquela que fica sujeito ao Leviatã do Estado – é a acusação. É o juízo eleitoral. É a Polícia Federal. Claro que essa leitura não passa por um filtro hermenêutico-constitucional que assegura ao acusado em processo penal (inclusive na Justiça Eleitoral) a proteção contra o Estado-Acusador, conferindo-lhe diversos direitos e garantias fundamentais. Justamente por ser a parte hipossuficiente em relação ao poder estatal. Isso porque a essência de uma democracia constitucional é a de servir como um remédio contramajoritário que, no campo do processo penal – seja em qual juízo for –, deve ser vista como uma leitura da constituição sempre em favor do cidadão e contra o Estado.
E, inversamente do que ecoa da chamada “voz das ruas”, não há direitos em demasia ao réu. Ao contrário, como aqui demonstramos, a autoridade policial, o Ministério Público e o Poder Judiciário diuturnamente não observam prazos que lhe são atribuídos por lei, violando, também, o princípio da razoável duração do processo, que também serve ao acusado.
Ao fim e ao cabo, existem, de fato, certas coisas que são difíceis de compreender.