Leio em um jornal eletrônico, em grande destaque: “Lula sanciona leis que ampliam licença e salário maternidade” [1]; e de outro periódico extraio a notícia: “Ministro do Trabalho diz que governo apoia fim da escala 6 x 1” [2].
Aliás, em breve pesquisa na legislação vigente, verificam-se outros direitos trabalhistas bastante recentes e importantíssimos, como o contido na Lei nº 14.611, de 3 de julho de 2023, que dispõe sobre “a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens” e os da Lei 14.457, de 21 de setembro de 2022, que institui o “Programa Emprega + Mulheres”, com dispositivos destinados à inserção e à manutenção de mulheres no mercado de trabalho de modo digno, com olhar para a proteção da mulher e daqueles que dela dependem.
Tais direitos, infelizmente, podem virar história antes mesmo de serem promulgados ou efetivamente implementados, o que, não obstante, pode ocorrer com a maioria dos direitos trabalhistas vigentes desde os primórdios da Consolidação das Leis do Trabalho.
Valorização excessiva das relações jurídicas
Nos últimos tempos, tem-se aflorado certa tendência jurisprudencial, em especial modo nas cortes superiores, no sentido de valorizar, excessivamente no meu entender, o formalismo sobre o qual se pactuam as relações jurídicas, em detrimento dos fatos que se desenvolvem, efetivamente, no âmbito da realidade.
Essa compreensão das coisas no mundo do trabalho, com todo respeito, é de extrema gravidade e de extrema força derruidora para o próprio direito do trabalho.
Não é por acaso que o direito do trabalho tem no princípio da primazia da realidade uma de suas pilastras de sustentação. Alfredo J. Ruprecht, quando fala a respeito desse princípio, destaca que “o contrato de trabalho não é o que resulta de qualquer forma de acordo, mas o que surge da realização das tarefas” [3], o que, por óbvio, tem uma razão de ser: a disparidade econômica vigente em um contrato de trabalho, que torna o trabalhador um coato em termos econômicos e que, por isso, aceita submeter-se a formas contratuais fictícias e prejudiciais, em troca de sua fonte de subsistência.
Não acredito que alguém duvide disso.
Atos nulos com intenção de fraude
Aliás, um tal aspecto do direito do trabalho é tão importante que a CLT, retumbantemente ignorada nestes tempos de “empreendedorismo exacerbado”, no seu artigo 9º, vigente desde a sua promulgação, diz que “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.
Perceba-se, por outro lado, que o artigo 7º da Constituição prevê inúmeros direitos trabalhistas, cujo exercício fala de perto à própria cidadania da pessoa trabalhadora, e que somente se viabilizam por meio do contrato de trabalho.
Na visão de João Leal Amado, “para o Direito do Trabalho releva, sobretudo, o fonómeno do trabalho assalariado, subordinado, prestado por conta alheia. E o mecanismo jurídico através do qual se realiza o acesso a esse trabalho subordinado é o do contrato individual de trabalho”[5].
Materialização dos direitos sociais
Com efeito, há uma centralidade do contrato de trabalho como instrumento de materialização dos direitos sociais. A Constituição, dizem Lorena Vasconcelos Porto e Augusto Grieco Sant’Anna Meirinho, ostenta conformação humanística capaz de impedir retrocessos sociais trazidos por legislação inferior que com ela se atrite e, dizemos nós, até mesmo retrocessos provenientes da interpretação inadequada da lei.
Desconsiderar o princípio da primazia da realidade; desconsiderar a centralidade do contrato de trabalho como canalizador de direitos sociais; desconsiderar a regra de ordem pública contida no artigo 9º da CLT, é, em grande medida, afastar a aplicação da própria Constituição.
Comecei este pequeno artigo adotando, estrategicamente, como forma de chamar a atenção do leitor, um título forte, chamando direitos recém-criados ou ainda apenas cogitados de “direitos natimortos”.
Mas não há nisso nenhum exagero, infelizmente. Aliás, o que se perde com essa tempestade que se abate sobre o direito do trabalho é muito maior.
Funções do direito do trabalho
Alain Supiot, estudioso francês especialista em direito do trabalho e da segurança social, assevera que “na relação de trabalho, o trabalhador, ao contrário do empregador, não arrisca o património, arrisca a pele. E foi, desde logo, para salvar esta última que o direito do trabalho se constituiu”. [8]
A proteção que se pretende com o direito do trabalho vai muito além de proporcionar à pessoa do trabalhador o salário adequado e a jornada limitada.
O direito do trabalho fala de perto à dignidade da pessoa humana. É sua função contemplar a proteção física do obreiro, na eliminação de riscos acidentários; assim como é dele uma espécie de efeito futuro, no seu desdobramento em Direito Previdenciário, de forma a assegurar àquele que se vale de seu trabalho para o sustento próprio e de sua família, uma espécie de “mínimo existencial” em termos de aposentadoria; e a isso somem-se prerrogativas sindicais, o direito de o trabalhador, por seu sindicato, poder valer-se da “autonomia privada coletiva” para alcançar melhores condições de trabalho.
[3] RUPRECHT, Alfredo J.. Os Princípios do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr Editora, 1995, p. 81.
[4] RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Trad. GIGLIO, Wagner D. São Paulo: LTr Editora, 1993, p. 228.
[5] AMADO, João Leal. Contrato de Trabalho: noções básicas. Coimbra: Almedina, 2018, p. 47.
[6] MIESSA, Élisson; CARREIRA, Henrique, Org. A Reforma Trabalhista e seus Impactos. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 844.
[7] TOCQUEVILLE, Alexis. Da Democracia na América. Campinas: Vide Editorial, 2019, p. 331
[8] SUPIOT, Alain. Crítica do Direito do Trabalho. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 92-93.