NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Avançando lentamente em meio ao trânsito paulistano da hora do rush em seu velho Chevrolet Corsa, Fernanda Giannasi brinca sobre a reputação negativa que adquiriu junto ao setor brasileiro de amianto: “Não tenho nome”, diz. “Sou chamada de ‘aquela mulher'”.

Lobby do amianto gasta US$ 100 milhões
Amianto pode matar mais de 1 milhão até 2030

Não admira. Giannasi, fiscal do Ministério do Trabalho, há um quarto de século vem tentando impedir que o setor opere. Ela diz que o amianto branco –minerado no Estado de Goiás, centro do país, transformado em cimento e outros produtos para o mercado interno, e exportado com cada vez mais frequência– custou número incontável de vidas e continuará a fazê-lo a menos que seu uso seja proibido em todo o Brasil. A ideia de que é possível usar o material de forma segura, alega, “é ficção”.

Felipe Lima
'Erin Bronckovich', brasileira combate amianto há 25 anos
‘Erin Bronckovich’, brasileira combate amianto há 25 anos

Giannasi, 52, conta com muitos admiradores na comunidade mundial da saúde pública. Um médico a define como “a Erin Brockovich brasileira”, em referência à ativista californiana que trabalhava em um escritório de advocacia e denunciou um caso de poluição de água pela Pacific Gas & Electric, episódio que inspirou um filme. Mas as pessoas que Giannasi verdadeiramente representa vivem em lugares como Osasco (Grande São Paulo), que abrigou por 54 anos a mais notória fábrica de cimento feito de amianto do Brasil.

A fábrica, controlada pela empresa Eternit, foi inaugurada em 1939 e, pela maior parte da sua existência, vivia repleta de fibras de amiantos, dizem antigos operários. Eliezer João de Souza, 68, trabalhou lá de 1968 a 1981 como cortador de folhas de amianto e telhas corrugadas, em diversos tamanhos. “A poeira estava em toda parte”, diz Souza. “Era visível à luz do sol”. Os operários não tinham proteção respiratória até 1977, quando receberam máscaras baratas de papel, diz Souza, que em 2000 teve pequenos tumores removidos de sua pleura, a membrana fina que recobre os pulmões e reveste a cavidade peitoral. Em dado momento, “eles convocaram os operários e tiraram radiografias de todos, mas nunca nos mostraram os resultados”, acrescenta. “Foi sempre um jogo de mentiras”.

João Batista Momi, 81, trabalhou na fábrica por 32 anos –“era suja o tempo todo”, diz–, e sofre de asbestose. Processou o antigo empregador em 1998 e venceu mas, devido a um recurso da empresa que continua à espera de julgamento no Supremo Tribunal Federal, ainda não recebeu qualquer indenização. José Antonio Domingues, 71, teve seu pulmão direito removido devido a um câncer em 2008, 17 anos depois que se demitiu da fábrica na qual havia trabalhado por 15 anos. “O pulmão estava todo preto por dentro”, diz. “Estou feliz por ainda estar vivo”.

Editoria de Arte/Folhapress

GRANDE EXPORTADOR

Os três homens pertencem à Abrea (Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto), um dos 70 grupos de vítimas formados em todo o mundo, em geral nas duas últimas décadas, à medida que o uso da fibra de amianto se expandiu aos países de rápido crescimento e seus perigos se tornaram mais conhecidos. No passado extensamente usado nos Estados Unidos e Europa, como material de construção e isolamento, o amianto agora está proibido na União Europeia e tem emprego limitado a apenas alguns produtos, como revestimentos de freios automobilísticos, nos Estados Unidos. Cinquenta e dois países proibiram ou restringiram severamente o uso desse mineral fibroso, por muito tempo apreciado devido à sua resistência ao calor e fogo.

Fomentado por uma agressiva campanha setorial, no entanto, o uso da fibra de amianto cresceu de maneira considerável nos países em desenvolvimento, especialmente na China, Índia e Brasil. Com a vida nova que o produto ganhou em mercados emergentes, o número total de mortes causadas pelo amianto pode atingir os 10 milhões de vítimas até 2030, dizem especialistas.

Grande número dessas mortes acontecerá no Brasil, hoje o terceiro maior produtor mundial de amianto. O Brasil é também o terceiro maior exportador mundial do mineral, e vende o produto principalmente na Ásia e a países como Colômbia e México. E se tornou o quinto maior usuário mundial de amianto, consumindo 94 mil toneladas em 2007, mais de 50 vezes o volume do material usado nos Estados Unidos naquele ano.

O setor brasileiro de amianto alega gerar R$ 2,5 bilhões para a economia do país a cada ano. As 11 empresas que mineram amianto e fabricam produtos que contém amianto no Brasil tem 3.500 mil empregados diretos mas dizem responder por 200 mil empregos, se considerados os postos de trabalho correlatos criados no setor de construção, vendas e outros.

O cerne do setor é o Instituto Brasileiro do Crisotila. “Crisotila” é o nome do amianto branco, a única forma usada hoje. Dados públicos demonstram que o instituto, sediado em Goiás, recebeu mais de US$ 8 milhões do setor desde 2006, e usou essa verba para promover o uso do amianto em todo o Brasil. Um promotor de Justiça daquele Estado está tentando fechar as portas do instituto, que se descreve como organização de interesse público e opera com isenção de impostos. Em petição judicial, o promotor acusa o instituto de funcionar como uma mal disfarçada ferramenta de vendas para o setor brasileiro de amianto, o qual responde por virtualmente todo o orçamento da organização. Por ter infligido “danos sociais derivados de suas práticas ilegais”, o instituto deveria pagar indenização de R$ 1 milhão, bem como uma multa diária de R$ 5.000 caso se mantenha em operação, alega o promotor em sua petição. Em declaração ao ICFJ, um porta-voz do instituto negou as alegações, afirmando que a organização “garante a saúde dos trabalhadores e usuários, a proteção do meio ambiente e [o fornecimento de] informações à sociedade”.

“BILL GATES DA SUÍÇA”

Quando a Abrea foi fundada, em 1995, tinha cerca de 470 membros, a maioria dos quais ex-trabalhadores da fábrica da Eternit em Osasco. “Pelo menos 30% deles morreram nos últimos 14 anos”, diz Souza, o presidente da organização. Pelo menos 10 dentre eles morreram de mesotelioma, uma forma rara de câncer que frequentemente surge na pleura e está sempre vinculada à exposição a fibra de amianto.

Furiosos quanto ao que acreditam ter sido um sério caso de conduta empresarial indevida, Souza e seus companheiros aposentados vêm acompanhando um julgamento criminal em Turim, Itália, no qual dois antigos acionistas da Eternit suíça –entre os quais Stephan Schmidheiny, ex-presidente do conselho do grupo e filantropo descrito como “o Bill Gates da Suíça” pela revista “Forbes”, devido ao bilhão de dólares em doações que fez para ajudar empresários de baixa renda na América Latina– respondem a acusações de terem causado um desastre ambiental.

As acusações se relacionam às condições em uma fábrica de cimento produzido com amianto na cidade italiana de Casale Monferrato; cerca de 2.000 pessoas que trabalharam na fábrica ou viviam em suas imediações morreram de doenças relacionadas ao amianto.

“Considerando que a exposição perigosa acontecida na Itália foi reproduzida em outros locais, deve haver centenas de milhares de pessoas que morreram por exposição aos produtos de amianto da empresa”, diz Laurie Kazan-Allen, coordenadora do International Ban Asbestos Secretariat, em Londres.

Em e-mail, o porta-voz Peter Schürmann escreveu que Schmidheiny “não consegue compreender por que deveria caber a ele, como acusado principal, a responsabilidade por todos os 80 anos de história da Eternit na Itália”. O grupo Eternit suíço foi o maior acionista da fábrica italiana apenas em seus 10 anos finais de operação, escreveu Schürmann, e implementou “medidas de segurança no trabalho que atendiam aos mais elevados padrões”.

De acordo com Schürmann, o grupo suíço vendeu suas ações na fábrica de Osasco mais de 25 anos atrás. Ele se recusou a comentar sobre as alegações dos ex-trabalhadores, mas acrescentou que “Stephan Schmidheiny trabalhou como trainee na Eternit brasileira, sob as mesmas condições de trabalho que os demais funcionários”.

Giannasi não tem muita simpatia para com Schmidheiny, que alega em seu site pessoal ter sido “perigosamente exposto a fibras de amianto durante meu período de treinamento no Brasil”. Sua reprovação quanto à maneira pela qual a fábrica de Osasco era dirigida a levou a co-fundar a Abrea. Ela continua a comparecer às reuniões mensais, e mantém os membros doentes da organização e seus familiares a par dos acontecimentos na guerra do amianto. Eles parecem apreciar suas histórias.

Giannasi reteve embarques de amianto em portos e rodovias, e realizou inspeções de surpresa em empresas suspeitas de vender ilegalmente produtos que contêm amianto. Recebeu ameaças de morte e foi processada pela indústria do amianto. Por algum tempo, se viu exilada a um pequeno escritório no Ministério do Trabalho, sem computador, telefone ou funções. Acostumou-se a desafiar seus superiores hierárquicos, que a consideram como provocadora e interessada apenas em manchetes; suas atividades de fiscalização foram restringidas apenas ao Estado de São Paulo, embora seja funcionária federal. “A cada dia há um novo problema”, diz Giannasi.

A indústria brasileira do amianto provou ser um oponente ferrenho. A Sama, que opera a mina de Cana Brava, em Goiás, e a Eternit S. A., que opera quatro fábricas que produzem telhas e outros produtos, de amianto ou não, juntas doaram mais de R$ 2 milhões a candidatos a cargos eletivos federais, estaduais e municipais, entre 2002 e 2008, de acordo com os registros públicos. “Eles têm muitos tentáculos, como um polvo”, diz Giannasi.

Apenas quatro dos 26 Estados brasileiros, entre os quais São Paulo, adotaram leis que proíbem o uso do amianto. Perguntado sobre a campanha de Giannasi, um dirigente da Sama falou apenas sobre o processo de produção da empresa, afirmando que o nível de fibras de amianto presente na mina é “20 vezes inferior ao que a lei requer” e que “os operários não têm contato físico com o mineral”. Uma porta-voz da Eternit S. A., que não tem conexão com a Eternit suíça, se recusou a comentar.

GIANNASI X INDÚSTRIA

Criada durante a ditadura militar de direita brasileira, nos anos 60, Giannasi recorda ouvir os gritos dos acusados de subversão que estavam sendo torturados em um quartel do exército próximo à casa de sua família, na região nordeste do Estado de São Paulo. A repressão que definiu a era e as inclinações progressistas de seus pais, ambos professores do ensino público, conduziram Giannasi ao papel que viria a assumir como defensora dos trabalhadores portadores de doenças relacionadas à fibra de amianto, que ela compara a vítimas de genocídio.

Giannasi fez sua primeira visita à fábrica da Eternit em Osasco em 1986, e considerou que a higiene do local era precária e os registros médicos dos funcionários, inadequados. Por volta de 1991, ela já havia inspecionado centenas de outras fábricas empoeiradas e concluído que o uso controlado do amianto era impossível. Foi transferida de São Paulo a Osasco –“um posto para criadores de casos”–, onde imediatamente criou caso com a Eternit, impedindo a demolição da fábrica da empresa, em 1995, até que houvesse um plano em vigor para a disposição dos resíduos deixados por décadas de trabalho com amianto.

Por volta de 1998, ela se havia tornado uma ativista conhecida em todo o país, e costumava se referir ao setor de amianto como “uma máfia”, acusando-o de “chantagear” os trabalhadores doentes ao lhes oferecer quantias modestas em acordos. A Eternit a processou por difamação, mas um juiz encerrou o caso.

Os anos posteriores foram marcados por choques esporádicos com o setor e com seus superiores no ministério, e por decepção com o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, antigo dirigente sindical. A produção de amianto caiu no Brasil no começo dos anos 90 e depois voltou a crescer gradualmente até 2002, o ano em que Lula foi eleito. Depois disso, o ritmo de produção se acelerou. Giannasi não hesitou em expressar sua insatisfação, e terminou suspensa de seus deveres de fiscalização por 45 dias. Sua autoridade só foi restaurada depois que ela foi à imprensa, diz. Giannasi parece próxima à exaustão, hoje, dado seu ritmo frenético, insustentável. O objetivo final de seu trabalho –a proibição federal ao uso de amianto– parece inatingível.

Ainda assim, “a situação seria muito pior se ela não estivesse trabalhando nisso”, diz Eduardo Algranti, diretor da divisão de medicina da Fundacentro, uma organização paulista de assistência a trabalhadores doentes. “Ela é muito rígida, muito coerente em suas ações. É absolutamente dedicada”.

BOMBA-RELÓGIO

O médico Ubiratan de Paula Santos, especialista em medicina pulmonar na Escola de Medicina da USP, diz que trata de cerca de 20 casos de mesotelioma ao ano, número que vem subindo lentamente. A maioria de seus pacientes, se bem que não todos, são trabalhadores do setor de amianto. Uma mulher desenvolveu um mesotelioma depois de lixar e pintar seu telhado, feito com amianto, a cada Natal, por um período de alguns anos. “Não importa o quanto a exposição seja intensa”, diz Paula Santos. “Algumas pessoas sofreram exposição por apenas um mês”. Em média, as vítimas sobrevivem por 12 a 16 meses depois do diagnóstico, sofrendo dor extrema e o terrível conhecimento de que sua doença é incurável. “Sabem que estão com o pescoço na guilhotina”, diz o médico.

É em nome dessas pessoas que Giannasi persiste. No final do ano passado, ela permitiu que um repórter do ICIJ acompanhasse sua inspeção de surpresa, em companhia do colega Antonio Carlos Rodrigues Pimentel, a duas lojas que supostamente estariam vendendo produtos contendo amianto em São Paulo, em violação das leis estaduais. Na primeira das lojas, na zona norte da cidade, ela e Pimentel foram recebidos por um homem barrigudo, de cara amarrada, que tentou impedir que entrassem. Giannasi exibiu seu distintivo governamental e exigiu que a porta fosse aberta. Assim que entraram, ela e Pimentel rapidamente encontraram gaxetas de amianto no estoque da loja. Inicialmente hostil, o proprietário da loja logo se tornou deferente quando Giannasi ameaçou fechar o estabelecimento a menos que todas as peças contendo o mineral tóxico fossem jogadas no lixo. O proprietário prometeu cumprir a instrução e ordenou aos seus funcionários que começassem a recolher os itens proibidos. “Todos seguem o mesmo roteiro, dizendo que não usam amianto, que jogaram o estoque fora”, diz Giannasi. “Mas sempre encontramos alguma coisa”.

Quatro dias antes, Giannasi e Pimentel, em companhia de Kazan-Allen, a ativista que combate o uso das fibras de amianto, haviam viajado extraoficialmente a Poços de Caldas (MG). A Alcoa, gigante norte-americana do alumínio que opera uma usina lá desde 1970, havia acabado de se tornar alvo do primeiro processo judicial por mesotelioma no Brasil, aberto por um antigo funcionário de 58 anos de idade. O caso causou certo escândalo na cidade, que depende fortemente da companhia, mas Giannasi o viu como oportunidade de levar sua mensagem a uma nova audiência em Minas Gerais, Estado no qual está proibida de exercer atividades como fiscal.

Depois de contatar a mídia local, ela foi à prefeitura e fez sua apresentação usual, com fervor evangélico, exibindo imagens de vítimas de câncer moribundas, distribuindo panfletos sobre os perigos do amianto e conduzindo uma entrevista coletiva improvisada, na saída. Kazan-Allen foi ao microfone e alertou que “o Brasil está no início de uma curva muito grande. Uma bomba-relógio cancerígena está a ponto de detonar”.

Na mesma noite, Giannasi visitou Dante Untura, o antigo funcionário da Alcoa, na casa dele.

Untura foi membro da equipe de manutenção da fábrica, que produz pó e lingotes de alumínio, e outros itens, de 1970 a 1987. Cortava e perfurava placas de Marinite, um produto de isolamento feito de amianto fabricado nos Estados Unidos pela Johns Manville. “Não usávamos máscaras”, diz Untura. Ele recebeu um diagnóstico de mesotelioma em agosto de 2009; depois disso, diz, “tudo mudou. Perdi a vida de vista. Não há mais cores. Tudo é cinzento”.

Naquela noite quente da metade de novembro, Untura não parecia especialmente doente e nem estar sofrendo dores. Sua mulher e sua filha adotiva serviram café e um bolo, e se esforçavam ao máximo para fingir que nada havia de errado. Untura só demonstrou emoção ao discutir sua família; foi por eles, afirmou, que processou a Alcoa no Brasil, e planejava fazer o mesmo em um tribunal norte-americano.

O processo norte-americano foi aberto em 20 de janeiro. Untura morreu 17 dias mais tarde. A Alcoa se recusou a comentar o caso.

Esta história é parte de uma investigação conjunta conduzida pelo International Consortium of Investigative Journalists e pela BBC News. Colaborou MARCELO SOARES, em São Paulo.