NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Representação da classe trabalhadora e os dilemas da observação externa

O filme Entre Dois Mundos, dirigido por Emmanuel Carrère e baseado no livro de Florence Aubenas, apresenta questões fundamentais sobre quem tem legitimidade para representar a experiência operária e como essa representação deve ser construída. A obra coloca em cena uma escritora burguesa que se infiltra no universo das faxineiras para produzir material literário, suscitando problemáticas sobre apropriação cultural de classe e os limites éticos da observação participante. Esta estratégia narrativa ecoa debates de longa duração sobre a capacidade das elites intelectuais compreenderem autenticamente as experiências das classes trabalhadoras.

A abordagem de Carrère, ao retratar uma protagonista que deliberadamente oculta sua identidade de classe, expõe contradições estruturais sobre como as experiências operárias são mediadas e comercializadas por uma intelectualidade que se mantém à distância segura de seus objetos de análise. Fortes e Negro (2016), em sua análise sobre o processo histórico de formação da classe trabalhadora, demonstram como a experiência vivida constitui elemento fundamental na construção da consciência de classe, alertando contra interpretações que reduzem os trabalhadores a meros objetos de forças econômicas abstratas. Esta perspectiva oferece instrumentos críticos valiosos para analisarmos as tensões apresentadas pelo filme, convidando-nos a questionar não apenas o conteúdo da representação, mas principalmente como ela é construída e a serviço de quais interesses.

As relações que Marianne desenvolve com Christèle e Marilou evidenciam como a proximidade física não elimina as distâncias sociais estruturais. Embora a protagonista experimente a dureza do trabalho manual, sua situação permanece fundamentalmente diferente: ela pode retornar ao conforto quando desejar. Esta diferença ontológica questiona tanto a legitimidade da investigação quanto a possibilidade de compreensão autêntica da experiência operária por parte de quem não partilha de suas determinações materiais. A própria estrutura do filme revela como o conhecimento sobre as estratégias de sobrevivência desenvolvidas pelos trabalhadores constitui um patrimônio cultural que frequentemente permanece invisível para observadores externos.

A dimensão de gênero assume centralidade na análise, particularmente pela escolha de retratar o trabalho de limpeza, historicamente feminilizado e socialmente desvalorizado. Hirata e Kergoat (2007), em seus estudos sobre as novas configurações da divisão sexual do trabalho, demonstram como as trabalhadoras desenvolvem formas específicas de solidariedade que respondem tanto às pressões laborais quanto às responsabilidades familiares acumuladas. O trabalho emocional investido pelas protagonistas em suas relações de amizade revela dimensões frequentemente negligenciadas nas análises do trabalho contemporâneo, constituindo uma “infraestrutura afetiva” sem a qual a própria reprodução da força de trabalho se tornaria impossível.

Experiência, consciência de classe e metodologias de pesquisa

A representação cinematográfica das redes de apoio mútuo entre as trabalhadoras exemplifica como a experiência compartilhada da precariedade gera formas específicas de sociabilidade e resistência. O filme captura aspectos daquilo que a tradição analítica denomina “economia moral” do trabalho precarizado: códigos não-escritos, estratégias de resistência cotidiana e solidariedades que transcendem as determinações puramente econômicas. Bruschini (2007), em seus estudos sobre trabalho e gênero no Brasil, identificava essas dimensões relacionais como componentes fundamentais para compreender as transformações no perfil das trabalhadoras contemporâneas, que se tornam “mais velhas, casadas e mães”, revelando uma nova identidade feminina voltada tanto para o trabalho quanto para a família.

O contraste entre a experiência temporária de Marianne e a situação estrutural de suas colegas ilumina questões centrais sobre mobilidade social e reprodução das desigualdades. Enquanto para a escritora, o trabalho manual constitui uma aventura intelectual limitada no tempo, para as demais trabalhadoras representa uma condição duradoura determinada por limitações que escapam ao controle individual. Hirata (2001), em sua análise sobre globalização e divisão sexual do trabalho, aponta como a proximidade física não garante automaticamente a compreensão das determinações estruturais que organizam essas experiências, particularmente quando se trata das consequências dos processos de mundialização sobre as condições de trabalho feminino.

A perspectiva adotada por Florence Aubenas insere-se em uma tradição jornalística de imersão direta no universo estudado, metodologia que produz insights valiosos, mas carrega problemáticas epistemológicas e éticas significativas. A revelação final da verdadeira identidade de Marianne funciona como momento de ruptura que expõe as contradições estruturais de todo o projeto, simbolizando traições mais amplas perpetradas por uma sociedade que explora sistematicamente o trabalho dessas mulheres enquanto as mantém invisíveis nos registros da representação cultural. O silêncio com que o filme encerra sugere a impossibilidade de reconciliação simples entre mundos estruturalmente desiguais.

Dilemas éticos e limites da representação no trabalho precarizado

A obra de Carrère coloca em evidência questões metodológicas fundamentais sobre como abordar experiências das classes trabalhadoras sem reproduzir as hierarquias sociais que pretende questionar. O dilema da protagonista espelha problemáticas enfrentadas por pesquisadores e intelectuais que estudam realidades sociais distantes de suas experiências de classe. A busca por “autenticidade” através do recurso a elenco não profissional sugere tentativa de escapar às mediações tradicionais da representação artística, mas expõe simultaneamente as limitações inerentes a qualquer projeto representacional, uma vez que a presença de câmeras e direção cinematográfica transforma inevitavelmente a experiência em performance.

As dimensões éticas transcendem o campo moral individual para atingir questões estruturais sobre distribuição de recursos e poder de representação. O sucesso comercial alcançado contrasta com a permanência das condições precárias enfrentadas pelas trabalhadoras reais que inspiraram a obra, levantando questões sobre benefícios derivados da representação da pobreza e responsabilidade social dos produtores culturais. A temporalidade específica do trabalho precarizado, marcada pela instabilidade e urgência cotidiana, contrasta com os tempos lentos da elaboração cultural burguesa, criando tensões irredutíveis entre os ritmos da representação e da experiência representada.

Quando observamos o filme através dessa perspectiva analítica, percebemos que sua principal contribuição reside não na resolução dos dilemas éticos apresentados, mas na capacidade de explicitá-los sem oferecer reconciliações artificiais. A obra funciona como espelho das contradições inerentes a qualquer tentativa de representação da alteridade de classe, forçando uma confrontação com as próprias posições no interior dessas relações de poder. O filme revela como as experiências contemporâneas de trabalho precarizado carregam ecos históricos de formas anteriores de exploração, mas se articulam através de mecanismos específicos caracterizados pela flexibilização das relações laborais e individualização dos riscos sociais.

A representação cinematográfica desse universo insere-se em um contexto mais amplo de estetização da pobreza que caracteriza parte significativa da produção cultural contemporânea. O sucesso alcançado por obras como Entre Dois Mundos aponta para uma demanda social por narrativas que abordem desigualdades crescentes, mas também levanta questões sobre os limites e possibilidades transformadoras dessas representações. A tensão entre impulsos genuinamente empáticos e constrangimentos estruturais permanece irresolvida, devendo ser vista não como defeito, mas como expressão fiel das contradições que permeiam tentativas de construção de pontes entre mundos sociais estruturalmente separados.

A força da obra reside paradoxalmente em sua recusa a oferecer resoluções reconfortantes. O filme termina em silêncio, sem reconciliação ou redenção, deixando o espectador confrontado com a persistência das divisões sociais e a necessidade de buscar formas mais radicais de abordar as desigualdades. É precisamente nesta recusa ao consolo fácil que encontramos sua maior contribuição crítica, mantendo vivas as tensões que tornam transformações estruturais necessárias.

O que emerge da análise é a compreensão de que a verdadeira solidariedade de classe não pode ser alcançada através de exercícios temporários de imersão, mas exige transformações que alterem fundamentalmente as relações de poder na sociedade. O filme cumpre a função importante de explicitar essas contradições sem romantizá-las, oferecendo um retrato honesto das limitações inerentes a projetos que buscam atravessar fronteiras de classe sem questionar as estruturas que as sustentam.

A obra também revela como as solidariedades desenvolvidas entre trabalhadoras emergem de necessidades concretas de sobrevivência, carregando contradições inerentes a essas condições. A fragilidade dessas solidariedades aponta para a precariedade estrutural das relações sociais no capitalismo contemporâneo, onde mesmo vínculos íntimos permanecem vulneráveis a pressões econômicas e manipulações instrumentais. Neste contexto, a representação cultural assume papel ambíguo, podendo tanto denunciar quanto reproduzir as mesmas lógicas de exploração que pretende criticar.

Referências

ALPENDRE, Sérgio. Entre Dois Mundos. Folha de S.Paulo, 1 jun. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/06/juliette-binoche-se-despe-da-aura-de-estrela-em-entre-dois-mundos.shtml

BRUSCHINI, Cristina. Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 537-572, 2007.

CAETANO, Maria do Rosário. “Entre Dois Mundos”, protagonizado por Juliette Binoche, revela o talento do escritor Emmanuel Carrère também como cineasta. Revista de Cinema, 27 maio 2025.

CASTRO, Jéssica. Do privilégio à exaustão. Entre Dois Mundos, 8 maio 2025. Disponível em: https://www.olanterninha.com/post/entre-dois-mundos

FORTES, Alexandre; NEGRO, Antonio Luigi. O processo histórico de formação da classe trabalhadora: algumas considerações. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 29, n. 59, p. 587-606, 2016.

HIRATA, Helena. Globalização e divisão sexual do trabalho. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17-18, p. 139-156, 2001.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, 2007.

SCHILD, Susana. ‘Entre dois mundos’: Juliette Binoche tem atuação soberba como escritora que finge ser faxineira. Rio Show/Cinema, Rio de Janeiro, 29 maio 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rioshow/cinema/guia/entre-dois-mundos-juliette-binoche-tem-atuacao-soberba-como-escritora-que-finge-ser-faxineira.ghtml

Erik Chiconelli Gomes é pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Doutor e Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho pela USP. Bacharel e Licenciado em História (USP). Licenciado em Geografia (UnB). Bacharel em Ciências Sociais (USP) e em Direito (USP). Atualmente, é Coordenador Acadêmico e do Centro de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).

DM TEM DEBATE

https://www.dmtemdebate.com.br/reflexoes-sobre-representacao-experiencia-e-etica-na-era-da-precarizacao/