A desigualdade social brasileira não é um acidente histórico, tampouco uma distorção de percurso: é o próprio projeto político. Em um país onde seis bilionários “concentram a mesma riqueza que a metade da população mais pobre” (Oxfam, 2017), discutir justiça tributária é muito mais que um tema técnico, é um confronto direto com os pilares de uma ordem social forjada pela exclusão.
Na superfície, o Brasil parece ser um país com alta capacidade de arrecadação. Afinal, com uma carga tributária que ronda os 33% do PIB (Receita Federal, 2023), seria plausível supor que o Estado dispõe de meios robustos para financiar políticas públicas e combater a desigualdade. No entanto, o que se observa é uma estrutura fiscal regressiva. Construída historicamente para preservar privilégios, concentrar renda e blindar os mais ricos, essa estrutura é a engrenagem essencial para a compreensão e persistência das profundas desigualdades brasileiras. A tributação brasileira, em vez de funcionar como mecanismo de justiça e redistribuição, atua para perpetuar as desigualdades sociais e econômicas.
Um sistema construído para manter privilégios
Ao contrário das democracias europeias, onde o Estado de bem-estar social se assentou sobre tributos progressivos, principalmente sobre herança, propriedade e renda, no Brasil se optou por um modelo regressivo, que penaliza o consumo e protege o capital. Mais da metade da arrecadação advém de impostos indiretos como ICMS, IPI e PIS/Cofins (IPEA, 2017), o que faz com que os mais pobres comprometam até um terço de sua renda com tributos, já que consomem todo ou quase todo o seu salário, enquanto os bilionários, graças às isenções e brechas legais, pagam proporcionalmente muito menos (Oxfam Brasil, 2017), pois conseguem poupar e aplicar grande parte de sua renda, não sentindo tanto o peso da tributação sobre o consumo.
Essa distorção se explica pela diferença entre dois modelos de tributação: a regressiva e a progressiva. Na tributação regressiva, todos pagam o mesmo valor ou a mesma alíquota, independentemente da renda, o que penaliza mais os pobres, que comprometem maior proporção de seus ganhos com impostos. Já na tributação progressiva, as alíquotas aumentam conforme a renda ou patrimônio, de forma a garantir maior contribuição dos que possuem mais recursos. O Brasil se estrutura majoritariamente com base no modelo regressivo, contribuindo para aprofundar as desigualdades sociais e blindar o grande capital o que acaba por impedir “a construção de políticas públicas robustas e universais” (ANFIP, 2020).
As raízes históricas da concentração de riqueza
O arranjo tributário brasileiro que vemos hoje não é um acaso, mas sim a face contemporânea de uma lógica histórica de concentração de poder e riqueza. Desde o período colonial, a terra foi utilizada como ferramenta para consolidar privilégios e impedir a ascensão social de grupos desfavorecidos, e o sistema tributário, em grande parte, perpetuou essa dinâmica.
Essa história começa com as Capitanias Hereditárias, vastas extensões de terra concedidas a poucos donatários, que exerciam poder quase absoluto sobre elas. Dentro dessas capitanias, as sesmarias, porções menores de terra, eram distribuídas pelos próprios donatários, solidificando ainda mais a posse de terras nas mãos de uma pequena elite.
O golpe final para impedir a democratização do acesso à terra veio com a Lei de Terras de 1850. Ao determinar que a terra só poderia ser adquirida mediante compra, essa lei impediu que negros libertos e imigrantes europeus sem recursos financeiros pudessem se tornar proprietários. Essa medida os forçou a trabalhar como assalariados nas grandes fazendas, especialmente nas de café, garantindo que apenas uma elite social com poder aquisitivo pudesse controlar a produção e a riqueza.
Com a Proclamação da República em 1889 e a subsequente ascensão da oligarquia agrária, chamada “República do Café com Leite”, a estrutura fundiária tornou-se ainda mais concentrada. Infelizmente, em nenhum momento da nossa história esse desajuste patrimonial foi efetivamente revisto, muito pelo contrário, o Estado brasileiro, por meio de sua política fiscal e de terras, continuou a atuar como um mecanismo de concentração de riqueza, em vez de promover uma distribuição mais equitativa.
A operacionalização desse mecanismo de concentração patrimonial permitiu que as elites agrárias e econômicas acumulassem riquezas não por mérito individual, mas por acesso privilegiado a políticas públicas que as favorecem. E o pior é que esse padrão se repete até hoje, sob outras roupagens.
A desigualdade de acesso ao crédito rural, por exemplo, é ilustrativa: enquanto os grandes produtores (menos de 1% dos estabelecimentos rurais) acessam cerca de 43% do crédito rural e produzem para atender aos interesses do mercado internacional, os pequenos produtores, responsáveis por mais de 70% dos alimentos consumidos no país, recebem entre 13% e 23% do total (Oxfam, 2016).
A blindagem fiscal dos super-ricos: o contraste social
A isenção sobre lucros e dividendos, vigente desde 1995, é um escândalo fiscal amplamente tolerado e politicamente blindado. Enquanto trabalhadores assalariados pagam até 27,5% de Imposto de Renda sobre seu salário, milionários que vivem exclusivamente de aplicações financeiras podem, legalmente, não pagar um centavo sobre sua renda (Centro de Estudos Tributários da Receita Federal, 2023). Poucos países no mundo mantêm essa brecha, porém, nenhum deles convive com níveis brutais de desigualdade quanto o Brasil (Oxfam Brasil, 2017). Isso porque o Brasil figura entre os dez países mais desiguais do mundo.
A tributação sobre patrimônio no Brasil revela uma clara resistência à democratização fiscal, sendo notoriamente subutilizada ou propositalmente enfraquecida. As distorções são visíveis na aplicação de impostos cruciais, como o ITCMD (Imposto sobre Doações e Heranças), cujas alíquotas são irrisórias quando comparadas às praticadas por países da OCDE, segundo a ANFIP (2020). É fundamental ressaltar que a própria Constituição de 1988 (art. 153, VII) prevê a tributação sobre grandes fortunas, mas essa lei jamais foi regulamentada. Essa lacuna legislativa demonstra um enfraquecimento deliberado da capacidade de tributar parcelas significativas do patrimônio no país, contribuindo para a concentração de riqueza.
Além disso, o ITR (Imposto sobre a Terra Rural) “tributa a propriedade rural com base em índices de produtividade de uma tabela desatualizada há cerca de 40 anos, descumprindo de forma clara a finalidade social da tributação e da propriedade” (Leão e Frias, 2016). Da mesma forma, o IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) incide sobre veículos, mas não alcança bens de luxo como jatinhos, helicópteros ou embarcações, evidenciando um tratamento desigual (Dowbor, 2017).
A persistência dessas distorções é reveladora de um pacto oligárquico que resiste à democratização fiscal do país (Rossi; Dweck; Oliveira, 2020). Ou seja, nosso sistema tributário está organizado para proteger bilionários em detrimento do bem-estar de toda a população brasileira.
A proposta de justiça fiscal e a reação dos privilegiados
A análise histórica das políticas públicas e do sistema de tributação criados pelo Estado brasileiro explicam como uma porcentagem tão pequena da população brasileira acumulou tantas terras e fortunas. Este acúmulo esteve intrinsicamente relacionado às benesses recebidas pela elite dos governos ao longo da história. As relações destes bilionários com o poder político subordinaram o poder público aos interesses destes poucos bilionários, impedindo o verdadeiro desenvolvimento econômico e social do país.
O financiamento de políticos e de grandes meios de comunicação pelos super-ricos continua sendo uma ferramenta eficiente de perpetuação de seus privilégios. Esse poder econômico converte-se em poder político, garantindo a defesa de interesses particulares no Congresso Nacional e a sistemática rejeição de propostas que promovam justiça social.
O discurso da “carga tributária alta”, alimentado pelos grandes meios de comunicação e entidades empresariais, serve, em grande parte, para deslegitimar qualquer proposta de reforma progressiva. A questão central, no entanto, não é quanto se arrecada, mas de quem se arrecada e para quê (Giambiagi; Além, 2011). Um país que arrecada pouco dos muito ricos e muito dos muito pobres reproduz, por meios legais e contábeis, a estrutura colonial de sua formação histórica (Furtado, 2007).
Embora o governo Lula defenda a justiça tributária e a tributação dos mais ricos, a recente reforma aprovada em 2023, via Emenda Constitucional nº 132/2023, deixou de fora a parte que endereça essa questão. O que se teve foram avanços na simplificação dos tributos sobre o consumo, que, no entanto, mantiveram intacto o coração regressivo do sistema. Isso porque a reforma não alterou a tributação sobre renda e patrimônio, perpetuando a tímida taxação que ignora grandes fortunas e continua tratando os dividendos como rendimentos intocáveis (Oxfam Brasil, 2017; Receita Federal, 2023).
O resultado é previsível: uma reorganização técnico-burocrática que preserva os privilégios fiscais das elites sob o pretexto de modernização institucional (Leite, 2019). Tal resultado foi consequência da atuação do Congresso Nacional na discussão e na aprovação do tema, que impediu qualquer possibilidade de justiça tributária.
Com relação à tributação dos super ricos, a proposta do governo Lula é uma medida que visa corrigir as distorções históricas e fiscais que beneficiam um grupo ultraminoritário da sociedade em detrimento do bem comum. O projeto de lei apresentado estabelece o pagamento de 10% sobre qualquer rendimento, o que visa enfrentar os privilégios de milionários que pagam, segundo o Ministério da Fazenda, apenas 2% ou 3% sobre seus lucros. Segundo o Ministério da Fazenda, são considerados super-ricos os indivíduos com rendimento mensal superior a R$ 1,7 milhão, o que representa menos de 0,1% da população brasileira. Em termos anuais, tratam-se de brasileiros com renda acima de R$ 20 milhões por ano, cuja maior parte dos rendimentos advém de aplicações financeiras, fundos exclusivos e lucros empresariais isentos de tributação.
Enquanto um professor da rede pública que recebe um salário bruto de R$ 5.000,00 contribui com até 27,5% de Imposto de Renda sobre sua folha salarial e ainda arca com a tributação sobre consumo (ICMS, PIS, Cofins) embutida em produtos e serviços, muitos super-ricos pagam efetivamente entre 2% e 5% sobre seus rendimentos totais. Essa disparidade acontece porque grande parte dos ganhos dos super-ricos advém de lucros e dividendos, isentos de tributação desde 1995. Além disso, eles se beneficiam de fundos de investimento exclusivos que operam sob regras fiscais mais brandas, favorecendo a postergação e a redução do pagamento de impostos (Receita Federal, 2023; Oxfam Brasil, 2025).
A proposta do governo visa justamente corrigir essa injustiça, aplicando uma tributação de até 22,5% sobre rendimentos financeiros atualmente isentos, como os de fundos exclusivos e offshore. Ao mesmo tempo, propõe isentar do Imposto de Renda trabalhadores que recebem até R$ 5.000 mensais, uma medida que beneficia diretamente a base da pirâmide social e corrige distorções históricas no tratamento tributário entre capital e trabalho. Ainda assim, mesmo com a nova alíquota, os super-ricos continuariam pagando, em média, menos impostos do que trabalhadores da educação, da saúde ou da segurança pública. Segundo, (Gavet, 2025) há bilionários brasileiros que chegam a pagar apenas 1,5% de imposto de renda sobre sua renda total, uma alíquota inferior à que incide sobre grande parte da classe média assalariada.
Tributar os super-ricos não é um ataque à prosperidade, mas uma afirmação de que a riqueza precisa contribuir proporcionalmente para o financiamento do bem comum. Trata-se de um passo necessário para romper com o pacto oligárquico que isenta quem tem mais e sobrecarrega quem pouco possui. Como já afirmava Celso Furtado (2007), a desigualdade no Brasil não é uma falha do sistema — ela é a engrenagem central do próprio sistema.
Outra estratégia do governo para um ajuste fiscal imediato é a tributação via IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), cujas alíquotas podem ser alteradas rapidamente por decreto presidencial. A proposta de elevar esse imposto visava, principalmente, compensar os custos da desoneração da folha de pagamentos para 17 setores da economia (como transporte, vestuário e calçados), que pagam uma alíquota menor sobre a folha de salários para reduzir custos trabalhistas e estimular a geração de empregos.
Porém, tanto a revisão do IOF quanto a maior tributação dos super-ricos foram recebidas com forte resistência. Tanto o Congresso Nacional quanto setores da imprensa criticaram as medidas, acusando o governo de promover a “luta de classes” por enfrentar injustiças tributárias históricas.
A resposta às medidas do governo foi rápida e brutal. Em uma manobra que não ocorria desde 1992, as presidências da Câmara e do Senado articularam a derrubada do decreto do IOF, mesmo sendo atribuição do Executivo fixar estas alíquotas. Além disso, as propostas do governo foram alvo de campanhas difamatórias que tratam qualquer medida redistributiva como populismo ou confisco [2].
Sem uma tributação justa, não há Estado de bem-estar possível. Sem redistribuição de riqueza, não há democracia substantiva e sem enfrentar os mecanismos estruturais da desigualdade, onde o sistema tributário é peça central dessa engrenagem, o Brasil seguirá refém de uma cidadania mutilada, na qual direitos sociais são sempre contingentes, e privilégios patrimoniais são intocáveis.
Assim sendo, mais do que uma agenda de governo, a reforma fiscal progressiva deve ser compreendida como um projeto civilizatório: o de refundar o pacto social brasileiro em bases equitativas, redistributivas e solidárias. Reformar a tributação é mais do que uma demanda contábil: é uma exigência ética. Ou enfrentamos os privilégios dos 0,1%, ou seguimos aceitando a democracia mutilada do 99%.
Notas
[1] https://www.camara.leg.br/noticias/1141174-governo-envia-projeto-sobre-aumento-da-isencao-de-imposto-de-renda-para-o-congresso-copia[2] Sobre a reação da Grande Mídias aos projetos de justiça tributária do governo ler: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/imprensa/o-nos-contra-eles-da-grande-midia-no-brasil/
Referências
ALÉM, Ana Cláudia; GIAMBIAGI, Fábio. Finanças públicas: teoria e prática no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
ANFIP. Justiça tributária: uma proposta para o Brasil. Brasília: ANFIP, 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 34. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GAVET , Sebastián Fernandez . As pessoas mais ricas do Brasil pagam apenas 1,5% de imposto de renda – menos que a classe média. Gizmodo. 4 de mai. de 2025. Disponível em: https://www.gizmodo.com.br/as-pessoas-mais-ricas-do-brasil-pagam-apenas-15-de-imposto-de-renda-menos-que-a-classe-media-13616
IPEA. Sistema Tributário Brasileiro: Avaliação e Propostas. Brasília: IPEA, 2017.
LEÃO, Celina Gontijo & FRIAS, Lincoln. As deficiências do Imposto Territorial Rural (ITR). Revista Debate Econômico. Revista Debate Econômico, v.4, n.2, jul-dez. 2016
OXFAM Brasil. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras. São Paulo: Oxfam, 2025.
OXFAM Brasil. Relatório anual de atividades Oxfam Brasil. São Paulo: Oxfam, 2017.
ROSSI, Pedro; DWECK, Esther; OLIVEIRA, Ana Luíza. Economia para Poucos. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
Receita Federal do Brasil. Carga Tributária no Brasil 2023. Brasília: RFB, 2023.
Mauricio Alfredo é mestre em Educação, Professor de Geografia, Geopolítica e Atualidades no Ensino Médio e Superior. Autor de material didático junto à Editora Companhia da Escola
Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo
DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/sistema-tributario-brasileiro-a-engrenagem-da-desigualdade-social/