O Supremo Tribunal Federal (STF) tem tratado de dois temas latentes para a sociedade brasileira: uberização e pejotização. O primeiro está na pauta do presidente da Corte, ministro Edson Fachin, que busca uma saída negociada para permitir mais garantias aos trabalhadores, mas sem impor a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Já o segundo deverá ser levado ao plenário pelo ministro Gilmar Mendes, que paralisou os julgamentos sobre o tema na Justiça do Trabalho.
Os dois assuntos refletem uma situação em comum: a necessidade de maior proteção dos trabalhadores e de consenso jurídico sobre reconhecimento de vínculo empregatício. No fundo, o que se busca é um entendimento sobre como o país enxerga este mundo do trabalho que corre em paralelo à carteira assinada.
É nesse sentido que o STF irá pautar sua atuação por meio de decisões de repercussão geral, ou seja, os casos analisados servirão como base jurídica para futuros processos.
Neste aspecto, o foco está no direito do trabalho ao passo que os juízes da área têm considerado que sua atuação tem sido esvaziada.
Assim, além de observar uma decisão equilibrada entre os direitos dos trabalhadores e a atuação das empresas, os ministros terão que uniformizar o entendimento da legislação para diminuir a insegurança jurídica criada com decisões conflitantes em diferentes instâncias judiciais. Para completar, os ajustes feitos ainda devem ser realizados no sentido de fortalecer a Justiça do Trabalho, para que os casos sejam solucionados nos próprios tribunais.
Uberização
Ao tomar posse da presidência do Supremo em 1º de outubro, Fachin elegeu como uma de suas prioridades o tratamento da uberização do trabalho.
É consenso na sociedade que é preciso debater as condições oferecidas pelas plataformas de transporte e de entrega, uma vez que os trabalhadores relatam, cada vez mais, jornadas exaustivas e ganhos menores. Também pesa a falta de direitos trabalhistas, já que não têm acesso a benefícios garantidos pela legislação.
Fachin tem um histórico de votações em prol dos trabalhadores, diferente da grande maioria de seus colegas. Dessa forma, tomou uma postura corajosa em colocar para o debate público um assunto que envolve toda a sociedade, pois agrega o sustento de milhares de famílias, envolve a perspectiva dos milhões de usuários desses aplicativos, bem como a visão econômica das plataformas, entre elas Uber, Ifood, Rappi e 99.
O julgamento — que tem base na Reclamação (RCL) 64018, da plataforma Rappi, e no Recurso Extraordinário (RE 1446336), da Uber —, já contou com audições das partes e do advogado-geral da União, Jorge Messias. No entanto, o presidente do STF suspendeu a audiência e informou que a votação deve acontecer em 30 dias.
Apesar de contar com o apoio e a atenção popular, a pressão contrária à oferta de mais direitos é grande. Em outros julgamentos que chegaram ao STF, a primeira turma da Casa derrubou decisões do TST (Tribunal Superior do Trabalho) que reconheciam vínculos trabalhistas.
Nesse sentido, tem se perpetuado a falácia das plataformas de dizer que somente conectam os trabalhadores aos clientes, se imiscuindo da oferta de qualquer benefício.
Com o peso das decisões de seus colegas a favor das demandas das empresas, o entendimento de quem convive no dia a dia do Supremo é que Fachin buscará uma saída negociada.
Isso significa a busca por um meio-termo em que o vínculo formal dos trabalhadores pela CLT não necessite ser reconhecido, mas, em contrapartida, as empresas ofereçam aos entregadores e motoristas melhores condições de trabalho, de suporte técnico e uma definição criteriosa sobre a remuneração, com base em valores mínimos por deslocamento.
Pejotização
Outro assunto similar que está no STF é o da pejotização do trabalho. A denominação se refere ao tipo de contratação que as empresas fazem via pessoa jurídica (PJ) para driblar a legislação trabalhista e reduzir custos.
Este artifício tem encontrado respaldo do Judiciário sob a justificativa da terceirização do trabalho, aprovada como lei, até mesmo para atividades-fim, em 2017.
Em ocasiões passadas, o Supremo proferiu decisões contra o TST e os trabalhadores que buscaram o reconhecimento de vínculo, pois cumpriam as características de um emprego celetista (continuidade no serviço, carga horária definida, subordinação, garantia de salário, entre outros).
O grande contingente de contestações nessa área, que eventualmente chegavam ao STF, fez com que o ministro Gilmar Mendes suspendesse todos os julgamentos da pejotização do país em abril desse ano, o que desagradou os magistrados da área do Trabalho.
No último dia 7 de outubro, ocorreu uma audiência pública no STF que contou com mais de 40 expositores. O tema debatido tem como base o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1532603, relatado por Mendes, que analisa a validade da contratação de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços, burlando a CLT.
Na oportunidade, o assessor jurídico da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Magnus Farkatt, fez duras críticas à terceirização e, consequentemente, à pejotização no Brasil, ao destacar que o país está na contramão do mundo ao diminuir o gasto com remuneração de pessoal em relação ao PIB (Produto Interno Bruto).
Ele também declarou que “todas as vezes em que um contrato de prestação de serviços for utilizado com o objetivo de mascarar a existência de um vínculo empregatício, ele deve ser declarado inconstitucional”. Farkatt relacionou o tema à uberização, ao explicar que a União Europeia recomenda que se reconheça como relação de emprego aquela estabelecida entre os trabalhadores de plataforma e as empresas que os contratam.
No final de setembro, o Senado também recebeu um debate sobre a precarização das relações de trabalho, oportunidade em que a pejotização foi amplamente criticada.
Segundo a coordenadora-Geral de Fiscalização e Promoção do Trabalho Decente do Ministério do Trabalho e Emprego, Dercylete Lisboa Loureiro, entre janeiro de 2022 e julho de 2025, 5,5 milhões de CPFs (Cadastro de Pessoa Física) tiveram os contratos de trabalho extintos e passaram a ser vinculados a um cadastro PJ, dado representado por 6 milhões de empresas vinculadas a essas pessoas – o número superior indica que muitos abriram até mesmo mais de uma empresa ou se tornaram sócios de outros negócios, para prestar diferentes serviços.
Desse total de 6 milhões de CNPJs (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) abertos, 4,7 milhões são de MEIs (microempreendedores individuais), 954 mil são optantes do Simples Nacional (microempresas ou empresas de pequeno porte) e 347 mil estão em outros tipos empresariais.
“Podemos afirmar que nesse período [janeiro de 2022 até julho de 2025] temos 8,3 milhões de MEIs criados. Desses mais de 8 milhões, 4,7 milhões são ex-empregados. Assim, nós temos 56,67% de MEIs que são ex-empregados. Ou seja, é um total desvirtuamento do MEI. Porque, se ele foi criado com o objetivo de trazer microempreendedores para ter uma proteção social, hoje, o MEI tornou-se um instrumento de informalidade”, criticou Loureiro.
Em vista desses apontamentos, as decisões do Supremo serão acompanhadas de perto, pois têm potencial até mesmo para redefinir o mercado de trabalho brasileiro nas próximas décadas. Portanto, a forma como os ministros consolidarem os entendimentos sobre a uberização e a pejotização representa um desafio de múltiplas camadas — mas também uma oportunidade de promover mais dignidade à vida dos trabalhadores.
VERMELHO