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Foi divulgada a primeira decisão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal sobre o trabalho para plataformas digitais. Na linha de seus congêneres da Espanha e da França, e muito ao contrário dos posicionamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) na matéria, como veremos logo a seguir, o tribunal entendeu pela existência da relação de emprego entre entregador (estafeta, em Portugal) e a plataforma de entregas Glovo. Uma comparação com as decisões do STF sobre a matéria nos deixa incrédulos e envergonhados.

A ação foi ajuizada pelo Ministério Público, a partir de uma “ação especial de reconhecimento da existência de contrato de emprego” oriunda da atuação administrativa da Inspeção do Trabalho, lá chamada de Autoridade das Condições de Trabalho (ACT).

Após a constatação pela fiscalização da existência de simulação de contrato autônomo, o caso é encaminhado para o Ministério Público, que então ajuizou diversas ações para a tutela de direitos individuais dos trabalhadores. Uma dessas centenas de ações ajuizadas pelo parquet foi a que chegou agora ao Supremo Tribunal. Essa ação, especificamente, tinha tido os pedidos julgados improcedentes na primeira instância e no grau de apelação.

A partir da análise do acórdão do Supremo português, o que imediatamente salta aos olhos é o diálogo da corte com o Direito do Trabalho, baseado na lei e na doutrina trabalhista do país e europeia. Foram citados na decisão sete renomados autores portugueses e um francês.

Talvez em razão de estarmos muito mal acostumados, e com certeza devido a esse diálogo com a doutrina citado acima, chega a impressionar a profundidade e a consistência jurídica da análise do caso pela corte europeia.

O Supremo português inicia com abordagem dos elementos da presunção de laboralidade, destacando os indícios de subordinação, entre eles a direção, supervisão e controle, “essenciais da relação laboral”. Apresenta, logo após, que há de ser considerada a “forte inserção do estafeta na organização algorítmica” da empresa.

Também entendeu de especial relevo que a plataforma digital e o aplicativo, este último como instrumento de trabalho do entregador, são geridas e exploradas pela empresa e que toda a atividade laboral está condicionada pela efetiva ligação e conexão a essas ferramentas digitais de propriedade e controle da empresa. Afirmaram os julgadores que “há também a considerar o facto de o estafeta não ter qualquer obrigação de resultado para com a contraparte, bem como a circunstância de ele não assumir algum risco financeiro ou económico”.

Aponta, de forma correta com a doutrina trabalhista mundial, que o fato do trabalhador escolher a área em que trabalha, poder recusar serviços e conectar-se ou desconectar-se sempre que entenda, sem cumprir horário predefinido e sem limite de tempo mínimo de disponibilidade não assume relevo decisivo pois, “independentemente da margem de liberdade reconhecida ao estafeta no exercício da sua atividade, é indiscutível que esta é desenvolvida num quadro de regras específicas definidas pela empresa, a qual – nos termos que tem por adequados e consentâneos com a prossecução do seu modelo de negócio – também controla e supervisiona a atuação da contraparte, tal como tem a possibilidade de exercer o poder disciplinar, mediante a suspensão ou desativação da respetiva conta”.

Corretamente indicou que a não fixação de horário de trabalho não é elemento essencial da relação de emprego, indicando a existência da dependência econômica e do trabalho regular, apontando que a remuneração por peça é uma forma de cálculo modificada do salário por tempo, como há décadas a doutrina afirma e há mais de 150 anos demonstrou Karl Marx.

Os magistrados supremos portugueses disseram ainda que as plataformas digitais controlam e supervisionam o trabalho, e ainda detêm poder punitivo aos trabalhadores, o que denota a completa inserção do trabalhador na organização algorítmica da empresa.

O Supremo luso entendeu que, apesar de o pagamento de taxas pelo trabalhador pela utilização da plataforma poderia indicar a existência de um contrato autônomo, “o recurso a cláusulas contratuais com características de autonomia se encontra com frequência associado ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às relações de trabalho encobertas, o que chamou expressamente, um flagelo que as legislações europeias estão tentando combater, reconhecendo o vínculo empregatício, por não ter a empresa ilidido a presunção de laboralidade.

A nossa perplexidade pela qualidade da decisão nos leva a fazermos uma comparação com o tribunal homônimo brasileiro. Tomemos, para isso, um acórdão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal como exemplo, em julgamento de Agravo Regimental aviado pela Procuradoria Geral da República (PGR) em reclamação que cassou decisão da Justiça do Trabalho que reconhecia o vínculo empregatício de entregador com a empresa Rappi.

Bem ao contrário da decisão portuguesa, não há no acórdão brasileiro a citação de nenhum doutrinador, de qualquer área do Direito que seja, muito menos do Direito do Trabalho. Só há citações de julgados anteriores da própria corte. Ou seja, é uma decisão puramente autorreferenciada.

Já a decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que derrubou não só analisou detidamente os requisitos da relação de emprego, e apontou os dispositivos legais, inclusive que expressamente falam da subordinação algorítmica (artigo 6º, parágrafo único, CLT), como apontava elementos da OIT e da ONU, além do diálogo com a doutrina trabalhista brasileira.

A decisão do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, baseou-se puramente no Tema 725, pelo qual foi afirmada a constitucionalidade da terceirização de atividade fim e “de qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas”.

Afirmou que “no caso em análise, ao reconhecer o vínculo de emprego, a Justiça do Trabalho desconsiderou os aspectos jurídicos relacionados à questão, em especial os precedentes do Supremo Tribunal Federal que consagram a liberdade econômica, de organização das atividades produtivas e admitem outras formas de contratação de prestação de serviços”.

Pasme-se: essa é toda a fundamentação existente no acórdão. São dois parágrafos curtos, que derrubaram uma decisão da Justiça do Trabalho que só a ementa tinha nove páginas.

Assim, enquanto a decisão europeia analisa toda a complexidade da situação, com decisão robusta e resguardada por fontes doutrinárias e legais de peso,  a brasileira trata o caso com a profundidade de um pires, uma ausência completa de diálogo com o mundo exterior, jurídico ou não, além de demonstrar uma falta de compreensão impressionante das consequências de sua decisão.

A decisão portuguesa está de acordo com a lei e a doutrina trabalhista de Portugal e do mundo, além de estar antenada com as transformações do trabalho no século 21 e a proteção de direitos humanos e fundamentais dos trabalhadores. O Supremo dos trópicos, por sua vez, demonstra estar na vanguarda do atraso.

A Suprema Corte brasileira parece sonhar com um retorno ao século 19, com relações de trabalho reguladas pelo Código Comercial, como muitas vezes os julgadores chegam a expressar. Até quando teremos uma Suprema Corte que não consegue perceber que já não somos colônia e que temos uma Constituição cujo projeto é justamente que deixemos nossa condição periférica? Será que um dia não teremos mais que invejar e admirar decisões europeias e nos envergonhar das decisões da nossa corte suprema?

Rodrigo de Lacerda Carelli é procurador do Trabalho no Rio de Janeiro, professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP

DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/stf-vs-supremo-de-portugal-comparando-decisoes-sobre-entregadores-de-plataformas/