NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Claudia Abdul Ahad

Trabalho por aplicativos cresce, mistura autonomia e dependência, e exige regulação legislativa clara, distinta para cada tipo de plataforma.

O trabalho mediado por aplicativos deixou de ser uma tendência para se tornar uma das principais formas de ocupação no Brasil. De acordo com a PNAD Contínua 2024, o trabalho por plataformas cresceu 25,4% entre 2022 e 2024, alcançando 1,7 milhão de ocupados, especialmente no Sudeste (53,7% do total).

Nesse universo, há um paradoxo muito claro. A maioria dos trabalhadores declara preferir a autonomia: escolher quando trabalhar, como organizar sua própria rotina e quanto se dedicar à atividade. Essa percepção reforça uma autoimagem empreendedora amplamente alimentada pelas plataformas.

Contudo, o outro lado da moeda revela uma dependência crescente de proteções trabalhistas e previdenciárias. Esses mesmos trabalhadores, que se veem como autônomos, também reivindicam segurança mínima, especialmente para enfrentar riscos inerentes à atividade, acidentes, doenças e bloqueios algorítmicos. Pesquisa do Ipea/UnB (2024) revela que 92% dos entregadores rejeitam CLT, porém 92% querem que as plataformas sejam obrigadas a fornecerem proteção, como seguro-acidente.

Essa ambiguidade de autonomia desejada versus proteção necessária é o ponto de tensão que impulsiona o debate público e jurídico. E é também o pano de fundo da pergunta central: como criar uma regulação capaz de reconhecer as especificidades do trabalho por aplicativos, sem precarizar quem trabalha e sem inviabilizar o modelo de negócios que sustenta todo o ecossistema digital?

Antes de decidir sobre vínculo, é preciso compreender que existem dois tipos de plataforma. Tratar todas da mesma forma é tecnicamente errado.

Há plataformas de alta intervenção algorítmica, a exemplo de Uber, 99, Rappi. Nessas empresas, o algoritmo define quase tudo: preço, distribuição de chamadas, rota, ordem de entregas e até a permanência do trabalhador na plataforma, por meio de avaliações, métricas e bloqueios automáticos. É gestão algorítmica, baseada em regras sem transparência. Essa dinâmica configura a chamada subordinação algorítmica, elemento que aproxima esse modelo dos requisitos clássicos do vínculo de emprego.

Por outro lado, há plataformas de baixa intervenção, a exemplo de Workana, 99Freelas, GetNinjas. Aqui, a atuação é radicalmente diferente. A plataforma funciona como um marketplace: o profissional define preço, prazo, condições e decide se aceita ou não o cliente. Não há controle de jornada, orientação de execução nem sanções automatizadas. Há autonomia típica. Por isso, impor a esse grupo as mesmas regras aplicáveis aos motoristas de aplicativos seria ignorar a realidade factual.

Agora em 2025, o STF estava prestes a decidir uma questão muito específica: se pode haver reconhecimento de vínculo de emprego entre motoristas e as empresas de aplicativos. A discussão é de enorme impacto econômico e social, mas é preciso enfatizar que a decisão do STF não cria legislação nem garante direitos. Legislar sobre modelos de trabalho continua sendo tarefa do Congresso, não do Judiciário.

O procurador-geral da República, Paulo Gonet, manifestou-se contra o reconhecimento do vínculo, argumentando que isso violaria a livre iniciativa e contrariaria entendimentos já consolidados no próprio STF. Já o presidente do TST adota posição intermediária: não vê elementos suficientes para um vínculo clássico de emprego, mas reconhece que deixar esses trabalhadores completamente desprotegidos é socialmente insustentável.

Esse cenário revela um risco importante. Ao decidir sobre temas tão amplos sem respaldo legislativo claro, o STF se aproxima de um terreno perigoso: o de legislar por decisão judicial, algo que ultrapassa sua função constitucional. A regulação desse novo mundo do trabalho não deve nascer de sentenças, mas de um debate legislativo democrático, técnico e transparente.

Ao analisar a possibilidade de vínculo, é essencial observar como os requisitos clássicos da CLT se manifestam em cada tipo de plataforma. A pessoalidade, por exemplo, é mais evidenciada em aplicativos como Uber, 99 e Rappi, onde o motorista não pode se fazer substituir, contudo por si só esse elemento não se traduz em vínculo de emprego tradicional; já nos marketplaces, essa característica se dilui, pois os profissionais podem atuar com auxiliares ou equipes. A onerosidade é universal; a habitualidade é mais marcada nos aplicativos de transporte, mas igualmente não é exigida, afinal, os motoristas podem escolher trabalhar de forma não contínua, só em horas vagas de outra atividade, ou nos horários que melhor se adequam à sua rotina.

O elemento central, contudo, é a subordinação. Nas plataformas de transporte, ela se expressa de forma digital, por meio da gestão algorítmica que controla preço, acesso às chamadas, desempenho e até a permanência do trabalhador na plataforma aproxima o modelo do vínculo. Já nos marketplaces, essa subordinação praticamente não existe, e o profissional tem plena autonomia para negociar condições da oferta de seu trabalho ao público.

Essa análise integrada mostra que os requisitos da CLT não se distribuem de maneira uniforme entre os modelos, reforçando que não é juridicamente adequado aplicar a mesma solução para todas as plataformas, sob pena de distorcer realidades muito distintas.

As plataformas sustentam que o trabalhador é livre para decidir quando e quanto trabalhar, mas essa liberdade é frequentemente condicionada por métricas, ranqueamentos, preços dinâmicos e riscos de bloqueio. A CLT, no entanto, foi construída para analisar relações baseadas em supervisão humana, não em gestão algorítmica, o que cria uma lacuna normativa evidente. Essa lacuna é tarefa do Legislativo, não do Judiciário.

O trabalho por aplicativos já faz parte da estrutura econômica do país e não vai desaparecer. Trabalhadores querem autonomia e proteção; plataformas precisam de regras claras. Esse cenário reforça que o STF não deve assumir o papel de criar regras sobre vínculo ou regime jurídico, pois isso significaria legislar sem legitimidade democrática.

Cabe ao Congresso construir uma regulação capaz de equilibrar interesses, garantindo proteção mínima, preservando a inovação, oferecendo segurança jurídica a todos os envolvidos e definindo critérios objetivos que distingam os diferentes tipos de plataforma, além de assegurar que a Justiça do Trabalho permaneça competente para julgar esses conflitos.

Se o Brasil quiser um futuro do trabalho moderno, justo e sustentável, precisa de uma legislação clara, contemporânea e democrática, e esse é um trabalho que deve ser desempenhado com cautela, e não pelo Judiciário, mas pelo Poder Legislativo.

Claudia Abdul Ahad
Sócia do escritório Securato Advogadas.

MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/depeso/445957/trabalhadores-em-aplicativos-stf-e-futuro-do-trabalho