Dia da Luta Antimanicomial teve, como foco, a questão trabalhista. Não só devido à precarização nos CAPS e à demanda por ocupações para os usuários dos serviços: fim da escala 6×1 também se faz urgente para enfrentar crise de sofrimento psíquico no país
Guilherme Arruda e Denis Saffer
No Brasil, já há alguns anos, o mês de maio dá palco às manifestações e atividades culturais e políticas promovidas nas ruas das cidades e nos equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) por trabalhadores, usuários e familiares ligados aos serviços de saúde mental. As ações remetem ao 18 de maio, aclamado como Dia da Luta Antimanicomial pelo Encontro de Bauru (1987), um importante marco na trajetória da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Hoje em dia, por meio dessas mobilizações, “a gente continua se articulando e participando da cena política para fazer a política antimanicomial e da RAPS acontecer, assim como prevê a lei”, explica Israel Almeida de Oliveira, membro do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA) no Amapá. Por um lado, os atos mantêm um fio de continuidade de várias décadas de atuação política em defesa do cuidado em liberdade, em uma história que remonta aos anos 1970. Por outro, ao levantarem novas bandeiras ligadas às principais necessidades percebidas nos territórios, também atualizam as pautas do movimento, renovando seu enraizamento na sociedade.
Para além das demandas locais, ativistas de todo o país sentem a necessidade de levar a luta antimanicomial às ruas em um contexto geral de “retomada de um processo psiquiátrico muito intenso, avanço de uma ação farmacológica e sucateamento das políticas públicas” da saúde mental, como define Daniel Bermudes, psicólogo e membro do MNLA do Espírito Santo. Em meio ao aumento do sofrimento psíquico e do crescimento dos diagnósticos de depressão e ansiedade entre a população, um conjunto de bandeiras, distintas mas interconectadas, se destacou: aquelas ligadas ao trabalho.
“Quando a gente fala de trabalho e de trabalhadores, a gente não está falando só dos trabalhadores dos serviços de saúde mental. A gente também está falando dos usuários e dos familiares, e o tema se articula com o debate que vem acontecendo nacionalmente sobre o fim da escala 6×1, a redução da jornada de trabalho sem redução salarial, políticas de pleno emprego e, no específico, de políticas de geração de emprego para os usuários da saúde mental”, resumiu um membro do Núcleo Estadual do Movimento de Luta Antimanicomial no Rio de Janeiro. Na capital fluminense, o slogan escolhido para o ato de 18 de maio – “Ainda estamos aqui na luta: antimanicomiais contra a precarização do trabalho e da vida” – sintetizou essa visão.
Uma história de lutas
Até a década de 1980, o Brasil era um verdadeiro polo manicomial, com dezenas de milhares de leitos em hospitais psiquiátricos onde pessoas passavam por vezes suas vidas inteiras subjugadas em condições desumanas. Contrapondo-se a esse cenário, os movimentos de luta antimanicomial e seus apoiadores foram os principais protagonistas de uma grande pressão social que levou o Brasil a empreender uma grande transformação no modelo de cuidado em saúde mental – para muitos, até pela dimensão do país, uma das maiores do mundo. (Sobre o tema, Outra Saúde publicou no ano passado o dossiê Reforma e Contrarreforma Psiquiátrica no Brasil).
Através de décadas de luta, os movimentos tiveram conquistas fundamentais como a Lei nº 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que estabeleceu os direitos das pessoas com transtornos mentais no Brasil, priorizando o tratamento em liberdade, a inclusão social e a substituição progressiva das internações em hospitais psiquiátricos por cuidados em serviços comunitários.
A partir da lei, estabeleceu-se então uma institucionalização parcial de uma rede de atenção em saúde mental de base comunitária no país, a exemplo dos CAPS, de forma simultânea a uma redução expressiva da oferta de leitos em hospitais psiquiátricos. Entre 2002 e 2024 tivemos a abertura de 2.595 Centros de Atenção Psicossociais e o fechamento de 41.049 leitos em hospitais psiquiátricos no Sistema Único de Saúde (SUS), segundo o Ministério da Saúde.
No entanto, mais recentemente, os setores mobilizados da sociedade – articulados em movimentos e redes nacionais, a exemplo do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA) – identificam que, no campo do cuidado às pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, uma visão social higienista foi se estabelecendo no país, levando ao crescimento das Comunidades Terapêuticas, instituições de internação prolongada, muitas vezes de cunho religioso e que ressoam diversas práticas manicomiais.
Além disso, frente ao aumento vertiginoso do sofrimento psíquico na sociedade, acompanhado do crescimento dos diagnósticos de ansiedade e depressão, os movimentos apontam que as políticas públicas têm se movimentado de forma insuficiente para se estruturar frente a essa demanda, gerando casos de desassistência e medicalização. Nesse contexto, torna-se ainda mais urgente a luta por mais serviços comunitários de saúde mental no país, além da melhoria das condições daqueles já existentes – que enfrentam dificuldades de infraestrutura, interferências políticas e, crucialmente, forte precarização dos vínculos trabalhistas.
Essas e outras observações se explicitaram nas entrevistas concedidas a este boletim por representantes de diversos estados do país.
Precarização do trabalho
Em meio à multiplicidade de pautas que marca o Dia da Luta Antimanicomial, atento às demandas específicas dos territórios, nenhuma pauta foi tão unânime quanto a do trabalho.
Em parte, porque a fragilização dos vínculos trabalhistas dos funcionários dos CAPS e demais serviços – cada vez mais geridos por Organizações Sociais da Saúde e submetidos a lógicas privatistas contrárias ao projeto do SUS – ameaça a própria capacidade de mobilização do movimento. “No ano passado, o ato na cidade do Rio de Janeiro foi muito tenso porque houve muitas ameaças e muito assédio para que os profissionais da rede não comparecessem. A gestão dizia em reuniões de equipe que haveria consequências para os que fossem”, exemplifica o psicólogo carioca e membro do NEMLA, que preferiu não se identificar.
O temor se torna mais forte porque cada vez menos profissionais da saúde mental são servidores concursados, que podem enfrentar a interferência política com mais tranquilidade devido à estabilidade no emprego. Os próprios gestores de unidades, que já foram importantes aliados, recuam de qualquer abertura ao movimento. Em sua maioria, chegam ao posto por indicação – e também receiam perder seus empregos, como os demais funcionários.
Além disso, o processo fragiliza o próprio cuidado oferecido aos usuários dos serviços. “A falta de suporte e de atividades coletivas também precisa ser inserida num contexto de precarização do trabalho dos profissionais. Eles estão sobrecarregados e não recebem condições estruturais para fazer o trabalho de cuidado, para que aquele seja um espaço promotor de saúde, que produz acolhimento e laços. Aí é que isso se articula com o processo de privatização dentro do SUS. A gestão das OSS mudou o clima de trabalho nos CAPS”, reflete o trabalhador carioca.
Em síntese, “resistir, hoje, exige mais”, afinal, “É preciso enfrentar o desmonte silencioso que avança sob a lógica da terceirização, das OSS, da precarização do trabalho e da negação do vínculo”, define David dos Santos, membro do Fórum Popular de Saúde Mental da Zona Leste de São Paulo e do Fórum Kilomboleste.
A atenção às problemáticas do mundo do trabalho também se estendeu para além das portas dos CAPS, em tempos de mobilização na sociedade contra a exploração nas relações laborais. No ano passado, como destacou Outra Saúde, o Brasil registrou 400 mil afastamentos do trabalho por razões de saúde mental. Por isso, também estiveram presentes em diversos atos do Dia da Luta Antimanicomial ao redor do país alguns cartazes e bandeiras pelo fim da escala 6×1 – associada ao sofrimento psíquico dos trabalhadores, devido ao caráter extenuante das jornadas.
Palavras de ordem também destacaram a importância das políticas de geração de empregos e atividades ocupacionais para os usuários dos serviços de saúde mental, cada vez mais precarizadas pelo subfinanciamento da RAPS.
Na avaliação dos entrevistados, retomar a radicalidade e a ligação íntima com a mobilização dos trabalhadores que caracterizavam os primeiros dias da luta antimanicomial será essencial para atravessar o atual momento. “Em meio ao avanço das políticas neoliberais e a toda a instabilidade política que a gente vive no Brasil a nível da democracia e da participação social, fazer uma retomada histórica disso é muito fundamental, porque vai refletir diretamente na capacidade de mobilização social”, avalia Daniel Bermudes.
“Em alguns colegas, percebemos um certo entristecimento, um desânimo na continuidade desse trabalho por se acreditar que ele não faz mais sentido, como se fosse uma causa perdida. Relembrar que os avanços foram fruto de muita luta pode retomar o interesse em fazer um trabalho que pense um novo futuro para o cuidado em saúde mental. Não um futuro ideal, mas um horizonte muito possível”, ele completa.
O que corrói a Rede de Atenção Psicossocial
O problema do subfinanciamento, dizem os ativistas, vem se agravando no último período. Por isso, a demanda por investimento nos serviços de saúde mental também apareceu fortemente nos atos, conta Daniel: “A gente coloca como pauta o investimento na RAPS, principalmente a ampliação dos serviços CAPS e das equipes eMulti, mas também uma maior formação e capacitação das equipes de saúde mental. É preciso retomar os investimentos até em condições básicas de trabalho e de assistência que os usuários precisam, como alimentação, material para oficinas, transporte para poder fazer passeios, estrutura física para poder beber água, coisas simples”.
Como consequência do subfinanciamento dos serviços comunitários, “a rotatividade de profissionais, a ausência de educação continuada e a substituição da escuta pela meta corroem a Rede de Atenção Psicossocial. Em seu lugar, cresce o discurso da abstinência como única saída, o retorno de práticas higienistas e o silenciamento das pautas humanitárias”, explica David.
Por essa razão, as manifestações também denunciaram as parcerias de governos locais com comunidades terapêuticas e outros “novos manicômios” que se infiltram nas políticas voltadas para o cuidado com pessoas que fazem uso abusivo de álcool e drogas. No Espírito Santo, essa denúncia se concentrou na Rede Abraço, um programa do governo estadual que “está concentrando investimentos em detrimento da RAPS e que incentiva as internações e a abstinência, e não a redução de danos”, revela Daniel.
No ano passado, o ato do Dia da Luta Antimanicomial no Rio de Janeiro fez críticas similares ao programa Seguir em Frente, iniciativa para a população de rua implementada pela Prefeitura da capital que “vai na direção oposta do que deve ser a atenção psicossocial”, opina o psicólogo carioca ouvido por este boletim. Já neste ano, a manifestação em São Paulo desfraldou na avenida Paulista uma grande faixa com os dizeres “Não às comunidades terapêuticas”.
Na visão do psicólogo capixaba Daniel Bermudes, o momento também é de “ascensão de novos discursos sobre saúde mental” no país, muitos deles contrários aos princípios da Reforma Psiquiátrica. Por isso, os atos do dia 18 de maio também tiveram o papel de “divulgar informações sobre a luta antimanicomial e combater estigmas, como as piadinhas de CAPS que são a nova moda”, complementou Israel Almeida.
Para David, o trabalhador da RAPS paulista, “frases como ‘CAPS não é piada, é liberdade’ e ‘Loucura não se prende’ reafirmaram a centralidade dos CAPS como territórios de cuidado em liberdade, contrapondo o estigma que ainda ronda a saúde mental com a urgência de políticas que acolham sem punir”.
Guilherme Arruda é jornalista do site Outra Saúde.
Denis Saffer é militante antimanicomial e da reforma sanitária, gestor em saúde pública e psicólogo. Faz parte do Movimento pela Saúde dos Povos – Brasil.
DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/trabalho-digno-uma-exigencia-de-saude-mental/