NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Em O processo, Franz Kafka retratou a aflição de um homem diante de um sistema jurídico incompreensível. Na conversa entre K e o pintor Titorelli, este último revela a lógica perversa que, no seu entender, governa o tribunal kafkiano: “Não se pode tirar os olhos do processo; é necessário ir regularmente ter com o juiz que nos interessa e, acima de tudo, procurar mantê-lo, por todos os meios, bem-disposto conosco. Se não se conhecer pessoalmente o juiz, torna-se necessário procurar juízes conhecidos para exercerem sobre ele a sua influência”.[1]

Esta descrição de um sistema onde a justiça depende de manobras estratégicas encontra ecos perturbadores no Brasil contemporâneo, em que Termo de Ajustamento de Conduta celebrado pelo Ministério do Trabalho e Emprego revela como a criação de competências paralelas pode subverter o sistema constitucional de especialização jurisdicional, permitindo que violadores de direitos humanos escapem da apreciação de órgãos tecnicamente qualificados e constitucionalmente legitimados.

A situação tem origem em fatos gravíssimos ocorridos em 2021, quando a fiscalização trabalhista constatou a submissão de cinco trabalhadores a condições degradantes em Novo Repartimento (PA).

O Ministério Público do Trabalho celebrou, dentro dos contornos de suas prerrogativas legais, ainda em 2021, um Termo de Ajuste de Conduta com a empresa flagrada, que estabeleceu obrigações reparatórias para os trabalhadores e para a coletividade, a correção das irregularidades identificadas e compromissos para evitar a reincidência da conduta violadora.

O panorama jurídico se alterou substancialmente em maio de 2025, quando a mesma empresa, fundamentando-se na Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR 18/2024, que contém inúmeros vícios, celebrou novo Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério do Trabalho e Emprego. Este segundo instrumento versa sobre os mesmos fatos, as mesmas violações e os mesmos trabalhadores já contemplados no acordo anterior firmado com o MPT, criando uma rota de fuga da competência especializada.

A estratégia revela-se particularmente engenhosa em desviar a competência fixada constitucionalmente. Enquanto o TAC celebrado com o MPT respeita as atribuições definidas por lei e mantém naturalmente a competência da Justiça do Trabalho, especializada em matéria laboral e dotada de expertise consolidada em casos de trabalho escravo, o TAC firmado com o MTE, além de colocá-lo simultaneamente como órgão fiscalizador, julgador e arrecadador, estabelece expressamente que “fica eleito o Foro/Seção Judiciária de Brasília-DF, para todos e quaisquer procedimentos judiciais e extrajudiciais oriundos deste TAC“.

Esta cláusula representa muito mais que uma simples escolha de foro: constitui tentativa deliberada de afastar a competência da Justiça Especializada e do MPT como órgão legitimado para tutela de direitos transindividuais.

Outra questão crítica foi a transferência da competência do local dos fatos, em Novo Repartimento, para Brasília, o que representa obstáculo concreto ao acesso à justiça dos trabalhadores lesados. A Vara do Trabalho de Tucuruí, que possui jurisdição sobre a região onde ocorreram as violações, está naturalmente mais próxima dos trabalhadores e melhor posicionada para compreender o contexto social e econômico em que se deram os fatos.

A questão transcende aspectos meramente procedimentais e alcança o núcleo da especialização jurisdicional brasileira. A Constituição de 1988, ao criar a Justiça do Trabalho como ramo especializado do Poder Judiciário, reconheceu que matérias trabalhistas demandam conhecimento técnico específico e sensibilidade particular às peculiaridades das relações laborais. Esta especialização não constitui mero capricho organizacional, mas resposta institucional à complexidade e relevância social dos conflitos trabalhistas.

O caso do TAC do MTE materializa uma estratégia de forum shopping que permite às empresas não apenas escolherem o órgão de solução do conflito social, mas ainda afastar a intervenção do Ministério Público do Trabalho e apreciação do acordo pela Justiça do Trabalho.

Esta possibilidade de escolha rompe com o Estado de Direito, viola regras constitucionais e legais, bem como a isonomia no tratamento de violações aos direitos humanos. Além disso, cria incentivos perversos para que infratores busquem sempre a via menos especializada e potencialmente menos rigorosa, na medida em que órgãos do Executivo estão eventualmente sujeitos a diretrizes governamentais e pressões políticas.

A sistemática criada possibilita ainda que empresas flagradas em violações aos direitos humanos escapem da atuação imparcial do Ministério Público do Trabalho, instituição dotada de autonomia funcional e especialização técnica em matéria trabalhista. O MPT, por sua natureza institucional, possui independência para atuar contra interesses econômicos ou políticos, característica essencial quando se trata de proteger direitos fundamentais de trabalhadores em situação de vulnerabilidade.

Esta possibilidade oferece às empresas uma alternativa potencialmente mais flexível, já que este órgão, como parte da estrutura do Poder Executivo, pode estar sujeito a considerações de política econômica ou pressões setoriais que não influenciam a atuação ministerial.

É uma diferença de posicionamento institucional que não é acidental, mas reflete a própria concepção constitucional que reservou ao Ministério Público a defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis. Logo, essa nova dinâmica criada pela Portaria, além de ilegal, inaugura uma insegurança jurídica nos conflitos sociais que tratam de uma das mais graves violações de direitos humanos.

O fenômeno observado representa, em essência, uma tentativa de exclusão da justiça trabalhista. Ao permitir que empresas escolham entre diferentes órgãos e diferentes competências jurisdicionais, o sistema criado pela Portaria 18/2024 subordina a aplicação da justiça às preferências dos próprios infratores, invertendo a lógica do Estado de Direito.

A preservação da competência da Justiça Especializada para casos de trabalho escravo não representa defesa de interesses institucionais, mas constitui garantia fundamental para os trabalhadores brasileiros. A especialização jurisdicional existe precisamente para assegurar que violações complexas aos direitos humanos sejam apreciadas por órgãos dotados do conhecimento técnico e da sensibilidade social necessários para compreender adequadamente suas implicações.

O caso do TAC firmado pelo Ministério do Trabalho e Emprego representa uma ruptura no Estado de Direito e serve como alerta sobre os riscos de permitir que a gravidade de violações aos direitos humanos seja diluída através de mecanismos que afastam a competência de órgãos especializados. A luta contra o trabalho escravo, construída ao longo de décadas, não pode ser comprometida por interpretações que privilegiem a conveniência dos infratores sobre a proteção efetiva dos direitos fundamentais dos trabalhadores.


[1] KAFKA, Franz. O Processo. Trad. André Piattino. Monte Cristo Editora. Edição Digital. p. 214.

Luciano Aragão Santos é procurador do Trabalho e coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho

Tatiana Leal Bivar Simonetti é procuradora do Trabalho e vice-coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho

DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/trabalho-escravo-e-a-exclusao-da-competencia-da-justica-do-trabalho-pelo-mte/