Há crescente presença de capital estrangeiro em setores estratégicos da economia brasileira. A seguir, apresento uma visão abrangente sobre a desnacionalização em diversos setores industriais e de serviços de concessões públicas, bem como a integração do Brasil à divisão internacional do trabalho.
Além das indústrias automobilística e farmacêutica, outros setores industriais no Brasil, bem como serviços de utilidade pública, apresentam grande participação estrangeira:
- Indústria de Pneus: empresas multinacionais dominam o setor, com marcas como Michelin, Pirelli, Bridgestone e Goodyear operando fábricas no país;
- Indústria Química e Petroquímica: grandes empresas estrangeiras, como a alemã BASF e a norte-americana Dow Chemical, possuem operações dominantes no Brasil;
- Indústria de Máquinas e Equipamentos: empresas como Siemens (Alemanha) e General Electric (EUA) estão presentes no setor, fornecendo equipamentos industriais e soluções tecnológicas;
- Indústria de Eletrodomésticos e Eletrônicos: multinacionais como Whirlpool, LG, Samsung e Electrolux têm fábricas no Brasil, produzindo para o mercado interno e exportação;
- Energia e Saneamento: empresas estrangeiras têm participação em serviços de utilidade pública como a canadense Brookfield detentora da BRK Ambiental, uma das maiores empresas privadas de saneamento do Brasil, além de ativos em energia renovável;
- Telecomunicações: o setor passou por mudanças regulatórias para facilitar a entrada de capital estrangeiro como na Claro, Telefônica, Vivo etc. Por exemplo, a Hispamar é uma empresa de comunicações via satélite, fundada em 2002 pelo grupo espanhol Hispasat e a operadora brasileira Oi. Em 2021, a Oi vendeu sua participação e a Hispamar passou a ser controlada integralmente pela Hispasat.
O Brasil está plenamente integrado à divisão internacional do trabalho, caracterizando-se destacadamente por exportação de commodities. O país é um dos maiores exportadores mundiais de produtos agrícolas (soja, milho, carne) e minerais (minério de ferro, petróleo), com empresas como JBS, Marfrig, Vale e Petrobras desempenhando papéis centrais.
É dependente da importação de bens de capital e tecnologia. Apesar de possuir um parque industrial diversificado, o Brasil depende da importação de máquinas, equipamentos e tecnologias avançadas, evidenciando uma inserção periférica na cadeia global de valor.
É notável a presença de multinacionais. Muitas empresas estrangeiras utilizam o Brasil como base de produção para atender ao mercado interno e à exportação para a vizinhança latino-americana. Reforça a dependência de decisões estratégicas tomadas fora do país.
A desnacionalização de setores industriais e de serviços públicos no Brasil reflete uma estratégia neoliberal, baseada na privatização e atração de investimento estrangeiro. Embora isso tenha contribuído para a modernização de infraestruturas e aumento da produtividade, também levanta preocupações sobre a soberania econômica porque a dependência de decisões tomadas por matrizes estrangeiras limita a autonomia nacional em setores estratégicos.
A remessa de lucros para o exterior impacta negativamente o balanço de transações correntes e reduz a capacidade de reinvestimento interno. A presença de multinacionais sem condicionantes não se traduz em transferência de tecnologia ou fortalecimento de cadeias produtivas locais.
Para equilibrar os benefícios da integração global com a possibilidade de desenvolvimento relativamente autônomo, é questionável se ainda é viável implementar políticas industriais de modo a promover a inovação local, fortalecer empresas nacionais e assegurar a soberania em setores-chave.
Para compreender o posicionamento do Brasil nas cadeias globais de valor, o exemplo da indústria automobilística é o mais visível. Nas ruas, dá para observar todas as montadoras serem estrangeiras.
O Brasil não possui nenhuma montadora de capital nacional. As empresas dominantes o setor são todas estrangeiras, como Volkswagen (Alemanha), General Motors (Chevrolet) (EUA), Stellantis (Itália-França-EUA: reúne Fiat, Peugeot, Citroën, Jeep), Toyota, Honda, Nissan (Japão), Hyundai, Kia (Coreia do Sul), Renault (França), BMW, Mercedes-Benz (segmento premium, Alemanha), BYD, GWM (China).
No passado, houve tentativas de criação de montadoras nacionais como a Gurgel, nos anos 1980. Não prosperaram em um ambiente de concorrência acirrada, escassez de financiamento e dependência tecnológica.
A produção no Brasil é feita majoritariamente por montagem (CKD, SKD e variantes). Há conteúdo local, especialmente, em veículos voltados ao mercado interno.
Há duas situações distintas:
- modelos voltados ao mercado doméstico: possuem maior conteúdo nacional (média de 60% a 80% de componentes locais, dependendo do modelo e da política de incentivo vigente);
- modelos de alto valor agregado ou voltados à exportação: costumam ter maior dependência de peças importadas.
A indústria de autopeças no Brasil é um setor ainda forte, embora altamente integrado a multinacionais. Existem subsidiárias de grandes sistemistas globais, como Bosch, Magneti Marelli, ZF, Delphi, Denso. Mas ainda há empresas nacionais relevantes, como Romi, Sabó, Randon, Fras-le, Marcopolo, especialmente em segmentos como carrocerias, freios, suspensão, peças estruturais.
A indústria brasileira de autopeças chegou a exportar componentes em grande volume, especialmente para América Latina e EUA, mas perdeu competitividade nos anos recentes com a valorização cambial e concorrência asiática.
A indústria automotiva brasileira faz parte de uma cadeia global de produção. Essa é uma das suas principais características desde a década de 1990.
Após a abertura comercial e a internacionalização da economia, o Brasil passou a ser plataforma regional de produção, especialmente para o Mercosul. As montadoras padronizaram plataformas globais, exigente de alinhamento com fornecedores internacionais.
A cadeia automotiva brasileira tornou-se parcialmente integrada à cadeia global, mas com função subordinada, com menor autonomia em P&D, design e estratégia de produto. Essa integração é assimétrica porque o Brasil é elo industrial intermediário, com foco na montagem e fornecimento regional, mas com pouca inserção nos elos superiores da cadeia, isto é, na pré-produção em projeto, engenharia e inovação.
A indústria automobilística no Brasil opera como um subsistema periférico de montagem e fornecimento regional ou continental, com montadoras estrangeiras dominantes. A indústria de autopeças é mista (multinacionais e empresas nacionais). Tem inserção subordinada nas cadeias globais de valor, com conteúdo local relevante, mas dependência tecnológica e decisória.
Em contraste, a atividade bancária e a indústria de construção civil ficaram sob controle nacional por causa de antiga reserva de mercado e nível tecnológico acessível aos empreendedores brasileiros. A predominância de capital nacional na atividade bancária e na indústria da construção civil no Brasil é explicada, historicamente, por uma combinação de reserva de mercado institucional e regulatória. Ambos contaram com apoio estatal e financeirização nacional.
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/desindustrializacao-ou-desnacionalizacao-da-industria-brasileira/