NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

PRÁTICA TRABALHISTA

Por Ricardo Calcini e Leandro Bocchi de Moraes

Com o advento da Lei 13.467/2017 [1], mais conhecida como Lei da Reforma Trabalhista, foram introduzidos na Consolidação das Leis do Trabalho os artigos 223-A a 223-G que versam sobre o dano extrapatrimonial. E o seu conceito está descrito no artigo 223-B: “Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação”.

 

Observe-se, a partir da leitura da norma, que ao abordar a temática dos danos extrapatrimoniais o legislador destacou que as ofensas no âmbito moral e na esfera existencial podem ensejar direito à reparação.

 

Mas o que seria o dano existencial?

 

O dano existencial é um conceito jurídico oriundo do direito civil italiano e relativamente recente, que se apresenta como aprimoramento da teoria da responsabilidade civil, vislumbrando uma forma de proteção à pessoa que transcende os limites classicamente colocados para a noção de dano moral.

 

 

Nesse prumo, diante da insuficiência da classificação binária dano moral/dano existencial, a doutrina civilista italiana vislumbrou uma lacuna legal na proteção da pessoa contra danos que limitavam ou impediam definitivamente a prática das atividades humanas cotidianas. Como resposta a essa lacuna do direito, a doutrina italiana cunhou uma nova espécie de dano injusto causado à pessoa, chamado de “dano à vida de relações” [2].

 

No Brasil, a professora Flaviana Rampazzo Soares define o dano existencial, em seu aspecto objetivo, como a lesão ao complexo de relações que auxiliam no desenvolvimento normal da personalidade do sujeito, abrangendo tanto a ordem pessoal quanto a ordem social. Seria, portanto, uma afetação negativa de atividade ou conjunto de atividades que a vítima realizava em seu cotidiano e que, em razão do efeito lesivo, precisou modificar ou mesmo suprimir de sua rotina [3].

 

Visto do ponto de vista juslaboral, o dano existencial pode ser compreendido como aquele representativo das violações de direitos e limites inerentes ao contrato de trabalho que implicam, além de danos materiais ou porventura danos morais ao trabalhador, igualmente, danos ao seu projeto de vida ou à chamada “vida de relações”. Por isso é hoje o dano existencial entendido como uma espécie de dano extrapatrimonial e tem como principal característica a frustração do “projeto de vida” ou “da vida de relação do trabalhador”, impedindo a sua efetiva integração à sociedade e o seu pleno desenvolvimento enquanto ser humano, em decorrência de ato ilícito do empregador.

 

Neste contexto, um dos motivos que podem contribuir para o surgimento e configuração deste dano extrapatrimonial, dentre outros, é a jornada de trabalho excessiva, apta a ensejar um esgotamento físico e mental do trabalhador, com impactos na sua vida privada. Isso porque as rotinas de trabalho intensas e desprovidas de pausas implicam desrespeito às relações sociais e familiares do trabalhador, em prejuízo da “vida de relações” e dos projetos de futuro do profissional envolvido em relação de trabalho abusiva.

 

Se é verdade que o trabalhador ao ter a sua honra e imagem afetadas poderá pleitear uma indenização por dano moral, de igual modo poderá ele reivindicar uma reparação pelo dano existencial caso tenha a sua dignidade e os seus direitos sociais violados.

 

Oportunos aqui os ensinamentos do professor Homero Batista [4]:

 

“Indenização por danos patrimoniais possui um desenvolvimento científico recente no âmbito do Direito do Trabalho, sobretudo pela ausência de competência da Justiça do Trabalho para tais pretensões até 2004.(…) No âmbito trabalhista, viria a florescer, ainda, um possível quarto gênero, representado pela expressão dano existencial, assim entendido o estado de desalento e esgotamento físico e mental do trabalhador submetido a anos ou décadas de trabalhos em regime constante de horas extras, privação das pausas para refeição e descanso, encurtamento das pausas para o sono e, normalmente, supressão de férias. Dada a complexidade e extensão desse quadro, muitos advogam a necessidade de seu enquadramento em categoria própria, sob a denominação de dano existencial, a fim de não reduzir a um dano moral como ocorre com xingamentos, lesão à honra ou ofensas pessoais.”

 

Aliás, impende destacar que as longas jornadas de trabalho, além de ter o condão de ocasionar o dano existencial, ainda podem trazer diversos prejuízos à saúde do trabalhador.

 

Com efeito, de acordo com um levantamento realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), desde o ano 2000 houve um significativo aumento de trabalhadores mortos por doenças cardíacas e derrames ocasionados pelo excesso de trabalho.

 

De outro lado, um outro estudo concluiu que durante a pandemia a jornada de trabalho aumentou cerca de 6,7 o tempo médio comparado ao período pré-pandemia. Contudo, a jornada ainda permanece 3,9% maior do que a registrada em 2019 [5].

 

É certo que as longas e extenuantes jornadas de trabalho viabilizam a existência o dano existencial e contribuem para o adoecimento dos trabalhadores. Não por outra razão alguns estudos têm concluído que a sociedade já se encontra bastante enferma, e que tal fato possui relação com o estresse e o esgotamento emocional por conta do trabalho [6].

 

Do ponto de vista normativo brasileiro, a Constituição dispõe, em seu artigo 7, inciso XIII [7], que a jornada de trabalho não poderá ultrapassar oito horas diárias e quarenta e quatro semanais. Já a Consolidação das Leis do Trabalho também limita a jornada de trabalho em oito horas diárias, faculdade, segundo o artigo 59 [8] celetário, o acréscimo de horas extras, desde que não ultrapasse o limite de duas horas diárias.

 

Neste contexto, recentemente a 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região determinou o pagamento de uma indenização por dano existencial à trabalhadora que cumpria jornadas diárias de 13 horas de trabalho, de segunda a sábado [9]. O juízo de origem, contudo, tinha afastada a condenação por danos existenciais, ao entendimento de que a realização de jornadas extensas, por si só, não seria suficiente para a comprovação do dano alegado, decisão essa que foi revertida pelo tribunal. Para os desembargadores do TRT-RS, o dano existencial ficou caracterizado, afinal, as jornadas excessivas impediam a trabalhadora de se programar, minimamente, para o seu repouso semanal e convívio social.

 

Noutro giro, há pouco tempo o Tribunal Superior do Trabalho também foi provocado a emitir um juízo de valor sobre esta temática [10]. No caso julgado, o trabalhador relatou que esteve submetido a longas jornadas, em todos os dias semana, com a exceção de dois domingos por mês.

 

Entrementes, o pedido de indenização por danos foi indeferido, tanto no Juízo de Origem quanto no Tribunal Regional do Trabalho, sob o fundamento de não ter sido demonstrada pelo trabalhador prova cabal e contundente da lesão à honra e a dignidade. Contudo, para o ministro relator do Tribunal Superior do Trabalho, o dano existencial restou comprovado.

 

Em seu voto [11], o ministro relator Maurício Godinho Delgado ponderou o seguinte:

 

“Sucede que o excesso de jornada extraordinária, para muito além das duas horas previstas na Constituição e na CLT, cumprido de forma habitual e por longo período — atingindo, como no caso dos autos, uma exposição ao ambiente de trabalho de mais de 12 horas ao dia, durante todos os dias da semana, exceto dois domingos por mês (portanto, até 84 horas semanais em duas das semanas e 72 horas semanais nas duas semanas restantes) —, tudo isso tipifica, sim, o dano existencial, por configurar manifesto comprometimento do tempo útil de disponibilidade que todo indivíduo livre, inclusive o empregado, ostenta para usufruir de suas atividades pessoais, familiares e sociais”.

 

Portanto, é imprescindível um olhar cauteloso para esse assunto de extrema relevância, principalmente porque nos últimos tempos tem-se constatado um aumento expressivo da jornada de trabalho, sobretudo por conta das atuais inovações tecnológicas pós pandemia.

 

Em arremate, a limitação da jornada de trabalho constitui um direito social e fundamental de todos os trabalhadores (CF, artigo 7º, XIII). Está, portanto, intrinsecamente ligada à redução dos riscos inerentes ao trabalho (CF, artigo 7º, XXII), além do direito ao lazer e ao convívio familiar do trabalhador (CF, artigo 6º e 226). Tudo, enfim, em observância ao direito à desconexão, e, por conseguinte, ao respeito da cidadania e dos direitos sociais.


[1] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 4/10/2022.

[2] ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 6, nº 24, out./dez. 2005, p. 35.

[3] SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 44

[4] Direito do Trabalho Aplicado: Direito Individual do trabalho – Homero Batista Mateus da Silva – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021. – (Coleção Direito do Trabalho Aplicado; Volume 2) – página 509 e 510.

[5] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/saude/excesso-de-reunioes-on-line-e-mails-e-chats-pode-desencadear-burnout-diz-estudo/. Acesso em 4/10/2022.

[6] Disponível em https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2022/07/27/voce-se-sente-esgotado-mais-de-80percent-dos-trabalhadores-estao-assim-mostra-pesquisa.ghtml. Acesso em 4/10/2022.

[7] Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.

[8] Art. 59. A duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.

[9] Disponível em https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/520597. Acesso em 4/10/2022.

[10] Disponível em https://www.tst.jus.br/-/instalador-de-linha-telef%C3%B4nica-consegue-reconhecimento-de-dano-existencial-por-jornada-excessiva. Acesso em 4/10/2022.

[11] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=1945&digitoTst=33&anoTst=2014&orgaoTst=5&tribunalTst=09&varaTst=0009&submit=Consultar. Acesso em 4/10/2022.

 é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto “Prática Trabalhista” (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

 é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo “O Trabalho Além do Direito do Trabalho”, da USP.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-out-06/pratica-trabalhista-configuracao-dano-existencial-relacoes-trabalho