por NCSTPR | 13/10/25 | Ultimas Notícias
O aquecimento global tornou as altas temperaturas cada vez mais comuns. Além disso, as ondas de calor são cada vez mais intensas e frequentes [1].
O ano de 2024 foi o mais quente da história, desde que a Organização Mundial de Meteorologia começou a fazer suas medições, em 1850 [2]. A lista com os dez anos mais quentes é composta apenas por períodos compreendidos entre 2014 e 2024 [3]. Ademais, a temperatura ficou 1,55º C acima dos níveis pré-industriais [4].
Nesse sentido, mostra-se urgente repensar as normas e os procedimentos referentes ao trabalho a céu aberto. Afinal, o trabalhador que labora nessas condições está muito mais exposto aos efeitos do aquecimento global.
São inúmeras as atividades laborais realizadas a céu aberto: na construção civil, na agropecuária, em pedreiras, garis, carteiros, entregadores de panfletos, motoboys, bikeboys, atletas profissionais, etc.
E a proteção da vida e da incolumidade física dessas pessoas precisa ser repensada diante da nova realidade que se impõe.
Segundo os pesquisadores Kauê Augusto Oliveira Nascimento, Niro Higuchi e Fabiano Emmert [5], o conforto térmico laboral se encontra entre os 20º C e os 24º C.
Ocorre que temperaturas superiores a 24º C são extremamente comuns nas atividades a céu aberto.
Para se analisar o efeito da temperatura ambiente no ser humano é ainda preciso lembrar que o ser humano é um animal homeotérmico, ou seja, cuja temperatura corporal é constante, independentemente da temperatura ambiente. Assim, para regular sua temperatura, o ser humano precisa que a equação calor metabólico mais calor ambiental menos a perda de calor seja igual a 36,5º C.
Quando o ser humano necessita laborar, seu calor metabólico aumenta se comparado ao repouso. E quanto mais intensa a atividade, maior o calor metabólico gerado.
Desse modo, quanto mais intensa a atividade, mais baixa é a temperatura ambiente máxima que o trabalhador pode suportar.
Não é por outra razão que no Brasil, conforme dispõe o Anexo III da NR 9, o limite de exposição ocupacional ao calor é de 33,7º C para os trabalhos mais leves. Ou seja, aqueles que são realizados em repouso, na posição sentado. Isso porque essa atividade tem uma taxa metabólica de apenas 100 watts.
Contudo, para as tarefas mais pesadas, o limite de exposição ocupacional é de 24,7º C. É o caso do trabalho pesado com o corpo, na posição em pé. Essa atividade tem taxa metabólica de 630 watts.
Estresse térmico
Assim, quando a perda de calor por meio da pele, do suor e da respiração não se mostra suficiente, alcança-se o cenário de estresse térmico [6].
Matthew Lindsley e Maureen Cadorette expõem que o estresse térmico pode interferir não apenas no rendimento da produção, mas expõe o trabalhador ao risco de acidentes, doenças ocupacionais e morte [7].
A OIT informa que no mundo cerca de 2,41 bilhões de trabalhadores estão expostos por ano ao risco do calor excessivo, sendo que existem cerca de 22,85 milhões de infortúnios ocupacionais ao ano relacionados ao tema e aproximadamente 18.970 mortes por ano [8].
Trabalho a céu aberto
Diante desse cenário, no qual existe comprovação científica de que o trabalho intenso a céu aberto em temperaturas elevadas pode causar mortes e que as ondas de calor são cada vez mais frequentes e intensas, o direito precisa se atualizar.
Em alguns países árabes, já faz mais de uma década que o trabalho a céu aberto é vedado, especialmente na construção civil, durante os horários de maiores temperaturas no verão. No Bahrein, por exemplo, em 2014 foi vedado trabalhar nessas condições entre as 12h e 16h durante o período de 1º de julho e 31 agosto, conforme o artigo 1º da Resolução Ministerial nº 3 de 2013 daquele país [9]. No Qatar, a partir de 2021 estabeleceu-se a vedação no trabalho a céu aberto entre as 10h e as 15h30 durante o período de 1º de junho a 15 de setembro [10].
Em 2023, a Espanha passou a adotar norma similar em decorrência de alteração do Real Decreto 486/1997 pelo Real Decreto-ley 4/2023.
Agora, em 2025, foi a Itália que começou a editar normas semelhantes.
Diversas regiões italianas editaram nos últimos meses normas vedando o trabalho a céu aberto durante o horário das 12h30 às 16h no verão nos dias em que a autoridade em matéria de trabalho apontava como de alto risco em decorrência do calor.
Uma dessas normas, por exemplo, é a Ordinanza del Presidente della Giunta Regionale 150 de 30/06/2025 da Região da Emilia-Romagna, onde fica Bolonha. Ela vedou o trabalho durante o horário das 12h30 às 16h nas atividades físicas intensas a céu aberto dos setores da construção civil, logística e agricultura (incluindo o cultivo de flores) no período compreendido entre 02/07/2025 e 15/09/2025 nos dias em que a autoridade de trabalho (Inail — Istituto Nazionale per l’Assicurazione contro gli Infortuni sul Lavoro) indicasse até as 12h do mesmo dia no site específico como de alto risco. A norma prevê como exceções apenas as atividades de emergência e de utilidade pública.
Durante essas horas, os empregados não podem trabalhar, mas recebem seus salários normalmente, pois o risco do negócio deve ser suportado pelo empregador.
Situações climáticas no Brasil
Traçando paralelos com o Brasil, é preciso assinalar que já existem situações climáticas que interrompem o serviço e nas quais o salário do empregado é pago normalmente. Exemplificativamente, nos dias nos quais os ventos ultrapassam 72 km/h, o trabalho em gruas é proibido, conforme item 18.10.1.34 da NR 18. E não existe dúvida no Brasil de que o salário do operador de grua deve ser normalmente pago ainda que ele não labore em decorrência dessa condição climática.
Assim, se adotássemos norma semelhante à da Emilia-Romagna, resta evidente que o salário deveria ser normalmente pago nos dias em que o calor fosse tão intenso que impusesse a paralisação das atividades.
Aliás, resta interessante assinalar que o Brasil deixou de considerar, em 2019, o calor no trabalho a céu aberto como uma situação ensejadora de pagamento de adicional de insalubridade.
Em recente estudo [11], tivemos a oportunidade de externar nossa opinião sobre o tema. Acreditamos que o adicional não seja a melhor solução, pois o trabalho sequer deveria ser prestado nessas condições.
Assim, acreditamos muito mais salutar a edição de norma como a da Emilia-Romagna. Ora, não se deve laborar em situação de calor extremo, que pode causar a morte. Se a situação é tão insalubre, o trabalho deve ser evitado. Não se deve pagar um valor para colocar a vida de outrem em risco se isso não for extremamente necessário.
E o fato é que na esmagadora maioria das situações não existe a extrema necessidade. Essas atividades, via de regra, podem ser realizadas antes das 12h30 ou após as 16h. Poderá até haver em alguns casos atraso, mas, via de regra, não existe a extrema necessidade.
Obviamente, se ocorrer uma situação de extrema necessidade o trabalho poderá ser prestado, como a própria norma autoriza. Ex: existindo o risco de uma estrutura do prédio em construção cair sobre a casa vizinha, o trabalho poderá ser prestado.
Mas esses casos são excepcionais e não a regra.
País deficitário na proteção à vida
Assim, o modelo brasileiro que acabou com o adicional de insalubridade em decorrência do calor a céu aberto, mas não vedou expressamente o trabalho nessas condições, apresenta-se como deficitário na proteção da vida e da incolumidade física doa trabalhadores.
Por isso, mesmo que defendemos no referido estudo [12] que caso prestado o trabalho nessas condições seja paga uma indenização de valor não inferior ao do adicional de insalubridade.
Entregadores por aplicativo
Como se a matéria não fosse complexa dentro da relação de emprego, há de se pensar também em uma categoria muito específica, a dos motociclistas e ciclistas entregadores por aplicativo.
Inicialmente, cumpre assinalar que a condição térmica do ciclista entregador é muito mais grave do que a do motociclista. Afinal, o ato de pedalar gera um calor metabólico intenso.
Na Itália, assim como no Brasil, eles não são considerados, via de regra, como empregados. São pouquíssimos os entregadores registrados em ambos os países. Contudo, em algumas regiões, houve vedação ao trabalho em dias de calor inclusive a esses entregadores não empregados. É o caso do Piemonte, conforme Ordinanza del Presidente dela Giunta Regionale 2/2025. Na norma há previsão expressa de que no setor de logística no qual é vedado o trabalho estão abarcadas inclusive as atividades daqueles que entregam mercadorias por conta de outrem em áreas urbanas com o auxílio de bicicletas ou veículos motorizados de duas rodas.
Relativamente a essa situação, está havendo na Itália uma intensa discussão sobre a livre iniciativa, uma vez que esses entregadores seriam, em tese, autônomos. Outrossim, eles não recebem nas horas em que o trabalho é vedado.
Por isso mesmo, discute-se no parlamento italiano a possibilidade de se criar um fundo para financiar um benefício para os dias nos quais esses entregadores não pudessem trabalhar.
Seria algo semelhante ao seguro defeso brasileiro pago aos pescadores artesanais.
Exemplo na Itália
Já nas regiões onde o trabalho dos entregadores não foi proibido, gostaríamos de narrar um interessante caso. Uma das plataformas de entrega, a Glovo, passou a ofertar adicionais para os trabalhadores laborarem nos horários dos dias mais quentes. Isso porque, apesar de o trabalho não ser vedado nessas regiões, o fato é que a maioria dos entregadores prefere não trabalhar nesses horários em decorrência do próprio risco percebido na pele por esses trabalhadores. Ou seja, existe uma baixa quantidade de entregadores que se sujeita a trabalhar nos horários escaldantes durante o verão.
Assim, a Glovo ofertou um adicional de 2% quando a temperatura estivesse entre 32º C e 36º C, 4% quando estivesse acima de 36º C até 40º C, e 8% quando estivesse acima de 40ºC.
Contudo, essa oferta não foi muito bem recebida entre a opinião pública italiana. O “adicional do calor” foi logo rebatizado de “adicional da vergonha”. Dias depois, a companhia voltou atrás e cancelou o adicional.
Não é demais lembrar que o sindicalismo italiano da década de 1970 é o berço do movimento “a saúde não se vende” [13]. Assim, já está sedimentada por lá a ideia de que se a condição é extremamente prejudicial, o trabalho não deve ser prestado. Trata-se de algo moralmente reprovável oferecer mais dinheiro para alguém se submeter ao trabalho que de fato não deveria ser sequer prestado.
Embora a empresa tenha cancelado o adicional, o fato é que a questão já havia sido judicializada. Por tal razão, a Justiça de Milão, na região da Lombardia, declarou a ilegalidade do adicional e determinou que a plataforma fornecesse diversos itens aos trabalhadores para o enfrentamento da questão (chapéu com viseira, óculos de sol com filtro UV, protetor solar de alto fator, garrafa térmica para água e sais minerais hidrossolúveis). Por fim ordenou que a empresa iniciasse negociações com os entregadores para discutir a questão do calor levando em conta idade, sexo, estado de maternidade ou gravidez, origem geográfica e tipo de contrato [14].
Falta de proteção a trabalhadores
Diante do exposto, concordamos com aqueles [15] que pregam que os lobistas que conseguiram convencer o legislador brasileiro a acabar com o adicional de insalubridade em decorrência do calor no trabalho a céu aberto em 2019 se utilizaram do slogan “a saúde não se vende” de forma tendenciosa, pois o adicional foi extinto, mas nenhuma outra medida legislativa foi adotada para proteger os trabalhadores, tal como a vedação ao trabalho nos horários mais quentes [16].
Assim, a experiência italiana tem muito a nos ensinar sobre o risco do calor no trabalho a céu aberto.
Ademais, o aquecimento global impôs uma nova realidade de trabalho. Se há 10 anos apenas o Bahrein se preocupava com a situação, agora é a Europa que se volta ao tema.
Portanto, já está na hora de o Brasil enfrentar a questão.
Calor não é frescura. Aliás, é o seu oposto.
Paremos de tapar o sol com a peneira.
[1] KOVATS, R. Sari; HAJAT, Shakoor. Heat stress and public health: a critical review. Annual Review of Public Health, San Mateo, v. 29, n. 1, p. 41-55, 2008.
[2]. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU confirma 2024 como o ano mais quente já registrado, com cerca de 1,55ºC acima dos níveis pré-industriais. Disponível aqui..
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] NASCIMENTO, Kauê Augusto Oliveira; HIGUCHI, Niro; EMMERT, Fabiano. A exposição de trabalhadores florestais ao calor durante o fenômeno El Niño Godzilla na Amazônia. BIOFIX Scientific Journal, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 84-90, 2018.
[6] JACKLITSCH, Brenda; WILLIAMS, Jon; MUSOLIN, Kristin; COCA, Aitor; KIM, Jung-Hyun; TURNER, Nina. Occupational exposure to heat and hot environments: revised criteria 2016. Cincinnati: National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH), 2016.
[7] LINDSLEY, Matthew; CADORETTE, Maureen. Preventing heat-related illness in the workplace. Workplace Health & Safety, Thousand Oaks, v. 63, n. 4, p. 192-192, 2015.
[8] INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION (ILO). Ensuring safety and health at work in a changing climate. Genebra: ILO, 2024.
[9] INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION (ILO). Regional Office for Arab States. Labour Inspection in Arab States: progress and challenges. Beirute: ILO, 2014, p. 9.
[10] QATAR. Ministry of Labour. Heat stress legislation in Qatar: a guide for employers. Doha: Ministry of Labour, 2023. Disponível aqui.
[11] WAKAHARA, Roberto. O risco do calor no trabalho a céu aberto em face do aquecimento global e o Programa de Gerenciamento de Riscos. In: MANNRICH, Nelson. Direito na fronteira das transições digital, demográfica e climática. Leme: Mizuno, 2025.
[12] WAKAHARA, Roberto. Op. cit.
[13] LIBERATO, Leo Vinícius. Poder operário na Itália. Disponível aqui.
[14] DALL’ASÉN, Massimiliano Jattoni. Glovo, il tribunale di Milano condanna il ‘bonus caldo’ per i rider (e imponi più rimborsi e protezioni). Disponível aqui.
[15] LIBERATO, Leo Vinícius. Op. cit.
[16] BELUTTO, Renan Martins Lopes. A insalubridade nas atividades a céu aberto e a invalidade da Portaria SEPT nº 1.359/2019. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, v. 25, n. 2, p. 86-95, 2021.
por NCSTPR | 13/10/25 | Ultimas Notícias
Leio em um jornal eletrônico, em grande destaque: “Lula sanciona leis que ampliam licença e salário maternidade” [1]; e de outro periódico extraio a notícia: “Ministro do Trabalho diz que governo apoia fim da escala 6 x 1” [2].
Aliás, em breve pesquisa na legislação vigente, verificam-se outros direitos trabalhistas bastante recentes e importantíssimos, como o contido na Lei nº 14.611, de 3 de julho de 2023, que dispõe sobre “a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens” e os da Lei 14.457, de 21 de setembro de 2022, que institui o “Programa Emprega + Mulheres”, com dispositivos destinados à inserção e à manutenção de mulheres no mercado de trabalho de modo digno, com olhar para a proteção da mulher e daqueles que dela dependem.
Tais direitos, infelizmente, podem virar história antes mesmo de serem promulgados ou efetivamente implementados, o que, não obstante, pode ocorrer com a maioria dos direitos trabalhistas vigentes desde os primórdios da Consolidação das Leis do Trabalho.
Valorização excessiva das relações jurídicas
Nos últimos tempos, tem-se aflorado certa tendência jurisprudencial, em especial modo nas cortes superiores, no sentido de valorizar, excessivamente no meu entender, o formalismo sobre o qual se pactuam as relações jurídicas, em detrimento dos fatos que se desenvolvem, efetivamente, no âmbito da realidade.
Essa compreensão das coisas no mundo do trabalho, com todo respeito, é de extrema gravidade e de extrema força derruidora para o próprio direito do trabalho.
Não é por acaso que o direito do trabalho tem no princípio da primazia da realidade uma de suas pilastras de sustentação. Alfredo J. Ruprecht, quando fala a respeito desse princípio, destaca que “o contrato de trabalho não é o que resulta de qualquer forma de acordo, mas o que surge da realização das tarefas” [3], o que, por óbvio, tem uma razão de ser: a disparidade econômica vigente em um contrato de trabalho, que torna o trabalhador um coato em termos econômicos e que, por isso, aceita submeter-se a formas contratuais fictícias e prejudiciais, em troca de sua fonte de subsistência.
Segundo Américo Plá Rodriguez, essa é uma ideia universal no sentido de que “se somente se admitisse a realidade do contrato nos casos em que houvesse acordo escrito ou convenção verbal, se burlariam muitas das medidas de proteção adotadas pelo legislador.”
[4]
Não acredito que alguém duvide disso.
Atos nulos com intenção de fraude
Aliás, um tal aspecto do direito do trabalho é tão importante que a CLT, retumbantemente ignorada nestes tempos de “empreendedorismo exacerbado”, no seu artigo 9º, vigente desde a sua promulgação, diz que “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.
Perceba-se, por outro lado, que o artigo 7º da Constituição prevê inúmeros direitos trabalhistas, cujo exercício fala de perto à própria cidadania da pessoa trabalhadora, e que somente se viabilizam por meio do contrato de trabalho.
Dito de outra forma: os direitos sociais previstos no Capítulo II do Título II da Constituição, dedicado à proteção social, em grande parte somente poderão ser exercidos a partir de um contrato de trabalho juridicamente reconhecido.
Na visão de João Leal Amado, “para o Direito do Trabalho releva, sobretudo, o fonómeno do trabalho assalariado, subordinado, prestado por conta alheia. E o mecanismo jurídico através do qual se realiza o acesso a esse trabalho subordinado é o do contrato individual de trabalho”[5].
Materialização dos direitos sociais
Com efeito, há uma centralidade do contrato de trabalho como instrumento de materialização dos direitos sociais. A Constituição, dizem Lorena Vasconcelos Porto e Augusto Grieco Sant’Anna Meirinho, ostenta conformação humanística capaz de impedir retrocessos sociais trazidos por legislação inferior que com ela se atrite e, dizemos nós, até mesmo retrocessos provenientes da interpretação inadequada da lei.
Na visão desses autores, citando Eduardo Marques Vieira de Araújo, “a Constituição estabeleceu um extenso rol de direitos fundamentais, os quais operam como anteparo contramajoritário”
[6], ou seja, em tempos de exasperação liberalizante prevalece, como antídoto à “tirania da maioria”
[7], o que se convencionou em tempos constituintes.
Desconsiderar o princípio da primazia da realidade; desconsiderar a centralidade do contrato de trabalho como canalizador de direitos sociais; desconsiderar a regra de ordem pública contida no artigo 9º da CLT, é, em grande medida, afastar a aplicação da própria Constituição.
Comecei este pequeno artigo adotando, estrategicamente, como forma de chamar a atenção do leitor, um título forte, chamando direitos recém-criados ou ainda apenas cogitados de “direitos natimortos”.
Mas não há nisso nenhum exagero, infelizmente. Aliás, o que se perde com essa tempestade que se abate sobre o direito do trabalho é muito maior.
Funções do direito do trabalho
Alain Supiot, estudioso francês especialista em direito do trabalho e da segurança social, assevera que “na relação de trabalho, o trabalhador, ao contrário do empregador, não arrisca o património, arrisca a pele. E foi, desde logo, para salvar esta última que o direito do trabalho se constituiu”. [8]
A proteção que se pretende com o direito do trabalho vai muito além de proporcionar à pessoa do trabalhador o salário adequado e a jornada limitada.
O direito do trabalho fala de perto à dignidade da pessoa humana. É sua função contemplar a proteção física do obreiro, na eliminação de riscos acidentários; assim como é dele uma espécie de efeito futuro, no seu desdobramento em Direito Previdenciário, de forma a assegurar àquele que se vale de seu trabalho para o sustento próprio e de sua família, uma espécie de “mínimo existencial” em termos de aposentadoria; e a isso somem-se prerrogativas sindicais, o direito de o trabalhador, por seu sindicato, poder valer-se da “autonomia privada coletiva” para alcançar melhores condições de trabalho.
Ao se ignorar o princípio da primazia da realidade, ao se atribuir valor exagerado a papéis assinados sob coação econômica, em uma relação jurídica marcadamente desigual, desvirtua-se o direito do trabalho, desprotege-se o hipossuficiente, enfraquece-se o movimento sindical e implode-se o sistema previdenciário.
[1] Aqui
[2] Aqui
[3] RUPRECHT, Alfredo J.. Os Princípios do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr Editora, 1995, p. 81.
[4] RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Trad. GIGLIO, Wagner D. São Paulo: LTr Editora, 1993, p. 228.
[5] AMADO, João Leal. Contrato de Trabalho: noções básicas. Coimbra: Almedina, 2018, p. 47.
[6] MIESSA, Élisson; CARREIRA, Henrique, Org. A Reforma Trabalhista e seus Impactos. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 844.
[7] TOCQUEVILLE, Alexis. Da Democracia na América. Campinas: Vide Editorial, 2019, p. 331
[8] SUPIOT, Alain. Crítica do Direito do Trabalho. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 92-93.
por NCSTPR | 13/10/25 | Ultimas Notícias
Por unanimidade, a 3ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (interior de São Paulo) reformou sentença que havia reconhecido o direito ao adicional de insalubridade em grau máximo — 40% — a uma agente comunitária de saúde de Limeira (SP). Os desembargadores entenderam que a trabalhadora faz jus ao adicional de insalubridade em grau médio — 20% —, que já era pago pelo município.
A trabalhadora alegou que realizou visitas domiciliares e vistorias relacionadas à prevenção da dengue durante a epidemia de Covid-19, o que justificaria o pagamento do adicional em grau máximo, em razão da exposição de forma contínua a agentes biológicos.
Contudo, o relator do processo, juiz convocado Robson Adilson de Moraes, destacou que as atividades desempenhadas não caracterizaram o trabalho em “contato permanente com pacientes em isolamento por doenças infectocontagiosas”, exigência prevista no Anexo 14 da Norma Regulamentadora 15 do Ministério do Trabalho para a concessão do adicional em seu grau mais elevado.
Embora a agente tenha atuado em campanhas de saúde, realizado coletas em residências e, eventualmente, mantido contato com pessoas infectadas, o colegiado concluiu que tais situações foram esporádicas e não se equiparam ao trabalho realizado em ambientes hospitalares ou em unidades de saúde voltadas ao atendimento direto de pacientes em isolamento, conforme exigem a norma regulamentar e a Súmula 448, item I, do Tribunal Superior do Trabalho.
A decisão ressaltou, ainda, que o TST possui jurisprudência consolidada no sentido de que os agentes comunitários de saúde fazem jus ao adicional de insalubridade em grau médio — 20% —, e não em grau máximo, salvo em casos excepcionais devidamente comprovados, o que não ocorreu no processo. Com informações da assessoria de imprensa do TRT-15.
Processo 0011205-51.2024.5.15.0128
CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-out-11/trt-15-afasta-adicional-de-insalubridade-em-grau-maximo-para-agente-comunitaria-de-saude/
por NCSTPR | 13/10/25 | Ultimas Notícias
O direito do trabalho, em sua gênese, foi moldado pela realidade da Revolução Industrial. Seu conceito basilar, a subordinação jurídica, foi cunhado para descrever a relação de sujeição do operário ao poder diretivo do empregador no espaço confinado da fábrica. Este modelo, a que podemos denominar subordinação clássica ou disciplinar, tornou-se obsoleto diante das novas tecnologias.
Desde a promulgação da Lei 12.551/2011, contudo, já possui uma modalidade adicional de vínculo de emprego. A nova redação do artigo 6º da CLT é a porta de entrada para essa nova modalidade, alinhada a matrizes teóricas fundamentais: a noção de alienidade, a partir de uma análise aprofundada de seus formuladores espanhóis; a teoria da sociedade de controle, de Gilles Deleuze e o conceito de poder empregatício algorítmico.
Não houve a supressão da subordinação como conceito doutrinário e jurisprudencial a partir da não tão nova redação do artigo 6º da CLT. Apenas foi agregado, pelo Parlamento, um critério adicional para a configuração do vínculo de emprego.
Da sociedade disciplinar à insuficiência da subordinação clássica
Gilles Deleuze, em seu “Post-scriptum sobre as Sociedades de Controle“, descreve a sociedade disciplinar como aquela que opera por meio de ambientes de confinamento (a fábrica, a escola, a prisão). O poder atua moldando o indivíduo através de horários rígidos e vigilância hierárquica. A subordinação jurídica clássica é um produto exemplar dessa lógica. O esgotamento deste modelo tornou-se evidente com o surgimento de formas de trabalho nas quais o controle não se dava mais pela clausura e pela ordem direta.
Lei 12.551/2011: positivação da subordinação reticular
A alteração do artigo 6º da CLT em 2011 foi a resposta legislativa a essa crise. O caput equalizou o trabalho realizado no estabelecimento, no domicílio e a distância, mas foi seu parágrafo único que operou a verdadeira revolução conceitual:
“Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.”
Ao validar o controle tecnológico como sucedâneo do controle pessoal, a lei consolidou no direito positivo a tese da subordinação reticular. Esta nova modalidade de subordinação se caracteriza não pela sujeição a ordens diretas, mas pela integração do trabalhador na estrutura em rede, na dinâmica e na cultura organizacional da empresa.
Essa consolidação da subordinação reticular no Brasil encontra seu mais forte paralelo teórico na multifacetada doutrina da “ajenidad” do direito espanhol, construída por notáveis juristas ao longo do século 20.
Dimensões da ajenidad e seus formuladores na doutrina espanhola
A “ajenidad” (alienidade, na tradução de Pontes de Miranda) é uma construção teórica complexa, cujas diferentes facetas foram lapidadas por grandes laboralistas espanhóis.
- Ajenidad en los Riesgos (Alienidade nos Riscos): A primeira sistematização robusta do conceito focou na ideia de que o empregador assume os riscos e as venturas do negócio. O autor central dessa perspectiva é Gaspar Bayón Chacón, que, em seus estudos pioneiros, estabeleceu que a alienidade se caracteriza pelo fato de o trabalhador ter seu direito ao salário garantido, sendo alheio ao sucesso ou fracasso comercial da empresa.
- Ajenidad en los Frutos (Alienidade nos Frutos): O passo seguinte, e talvez o mais influente, foi dado por Manuel Alonso Olea. Para ele, a alienidade nos riscos era uma consequência de algo mais fundamental: a alienidade nos frutos. Segundo sua tese, o objeto do contrato de trabalho é a cessão da força de trabalho em si, e não o resultado final. Portanto, os frutos (o produto ou serviço) pertencem desde sua origem (ab initio) ao empregador. O trabalhador é alheio à titularidade do que produz.
- Ajenidad en el Mercado (Alienidade no Mercado): A perspectiva mais moderna e crucial para a análise do trabalho contemporâneo foi, como você corretamente apontou, formulada de maneira decisiva por Manuel Ramón Alarcón Caracuel. Embora a obra de Alfredo Montoya Melgar já desenvolvesse a noção de integração do trabalhador na “esfera organizativa” do empregador, foi Alarcón Caracuel, em seu seminal artigo de 1986, quem isolou, nomeou e aprofundou a “ajenidad en el mercado” como critério autônomo. Sua tese foca em quem se apresenta como empresário no mercado de bens e serviços. No contrato de trabalho, é o empregador, e não o trabalhador, quem assume essa posição, vendendo a obra ou o serviço ao cliente final. Esta perspectiva é a que mais diretamente se equipara à subordinação reticular brasileira.
- Ajenidad en la Utilidad Patrimonial (Alienidade na Utilidade Patrimonial): Esta dimensão é um corolário lógico das demais. Sendo alheio aos riscos e aos frutos, o trabalhador também o é em relação ao resultado econômico final (o lucro ou prejuízo). A apropriação do lucro pelo empregador, em contrapartida ao pagamento de um salário fixo, é a consequência natural tratada nas obras sintéticas de autores como Alonso Olea e Montoya Melgar.
‘Controle’: chave hermenêutica deleuziana para o data power
A escolha do vocábulo “controle” pelo legislador brasileiro é a senha para compreender a profundidade da mudança. Deleuze contrapõe a disciplina (que molda) ao controle (que modula). Na sociedade de controle, o poder é digital, contínuo e funciona como uma modulação em rede.
O “controle” telemático do artigo 6º da CLT é a própria encarnação da sociedade de controle no mundo do trabalho. O algoritmo não dá ordens diretas, mas gerencia, avalia e modula o comportamento do trabalhador de forma contínua, por meio de sistemas de reputação, preços dinâmicos e design de incentivos. A lei, ao equiparar esse controle informático ao comando pessoal, captou o zeitgeist que Deleuze profetizou no inicio dos anos 90.
A jornada do conceito de subordinação é a crônica de sua adaptação a uma sociedade em transformação. A alteração do artigo 6º da CLT em 2011 foi o reconhecimento jurídico de que o poder mudou de um modelo disciplinar para um paradigma de controle. Nesta nova realidade, a subordinação é mais bem compreendida como subordinação reticular, cuja essência é a alienidade.
A rica doutrina espanhola, com as contribuições de Bayón Chacón sobre os riscos, Alonso Olea sobre os frutos e, crucialmente, Alarcón Caracuel sobre o mercado, oferece o arcabouço teórico mais robusto para essa análise comparada.
No caso de aplicativos e plataformas de trabalho, especialmente a doutrina da alienidade de mercado, aplica-se a essas hipóteses, pois o trabalhador é obstado de acesso ao mercado reticular e não tem acesso à clientela que pertence à empresa e atua na forma de marketplace ou até de, paradoxalmente, de mercado cativo na chamada economia de livre mercado.
A interpretação do direito do trabalho contemporâneo, orientado a dados, exige, portanto, um olhar interdisciplinar, em que a filosofia de Deleuze e a dogmática do poder algorítmico em rede passam a ser ferramentas fundamentais para nomear e tutelar as novas formas de sujeição na sociedade de controle reticular. O Parlamento já cumpriu seu papel, com a edição da da Lei 12.551/2011. Agora é a oportunidade de o STF conectar-se a esse cenário do big data produtivo.
por NCSTPR | 13/10/25 | Ultimas Notícias
A nação aguarda ansiosamente o julgamento do Tema 1.389 pelo Supremo Tribunal Federal. Ao suspender nacionalmente as ações que discutem a fraude no contrato de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços, o ministro Gilmar Mendes justificou que “o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas”.
Mas será verdade que a Justiça Laboral tem driblado as conclusões da ADPF-324, ou a Suprema Corte tem utilizado uma espécie de hiperintegração do precedente
[1] para ampliar seu alcance?
Primeiro, como identificar a ratio decidendi
Não há consenso doutrinário sobre a identificação da ratio decidendi ou obiter dictum de uma decisão. No common law, o desafio dos advogados e juízes consiste justamente em classificar os argumentos como fundantes (holding) ou secundários (dictum).
No verbete Precedentes, o professor Lenio Streck demonstra o dissenso doutrinário anglo-saxão: para Arthur Goodhart, a ratio seria determinada a partir da verificação dos fatos tratados como fundamentais ou materiais pelo juiz, cuja visão, porém, é contestada por Rupert Cross, para quem aquela fórmula despreza a relação com casos passados.
Para Eugene Wambaugh, a ratio constitui “uma regra identificável a partir do elemento da decisão sem o qual o caso em questão deveria ter sido decidido de outra maneira”
[2].
Para Karl Llewellyn, jurista americano, existem pelo menos 64 técnicas para identificação do holding; além do “teste de Wambaugh” (acima descrito), a ratio pode ser identificada negativamente (excluindo-se o que ela não é); ou pelo “teste de Oliphant” (estímulo-resposta); ou pela “fórmula Scalia” (generalizando aos poucos os fundamentos determinantes até se chegar ao nível mais específico, em que um direito constitucional assegurado pode ser identificado) e assim por diante [3].
Qual a ratio decidendi da ADPF-324? Caso concreto
Das 278 laudas que compõem o acórdão, é possível identificar os principais argumentos dos votos prevalentes, sem os quais a decisão seria outra.
Em debate: a (i)licitude da terceirização da atividade-fim.
No voto condutor, o ministro Luiz Fux destacou os seguintes fundamentos, dentre outros, para admitir a terceirização irrestrita:
(1) o valor social do trabalho dialoga com a livre iniciativa;
(2) a restrição da terceirização colide com a liberdade jurídica e restringir uma liberdade exige do Estado elevado ônus justificativo;
(3) a divisão entre atividade meio e atividade fim é imprecisa, artificial é incompatível com a economia moderna, onde há especialização e divisão das tarefas, visando maior eficiência das empresas, a exemplo do iPhone (Apple), cujo hardware é fabricado pela empresa (Foxconn), que utiliza processadores de uma terceira (Intel), numa coordenação de agentes especializados para o melhor resultado;
(4) a cisão das atividades entre pessoas jurídicas diferentes é uma questão estratégica e não fraudulenta, pois visa proteger a empresa e manter o emprego dos trabalhadores;
(5) a terceirização não precariza, reifica ou prejudica os empregados, mas reduz desemprego, diminui o turnover, promove crescimento econômico e aumento de salários;
(6) há redução do desemprego, segundo pesquisa;
(7) a tomadora de serviços é responsável subsidiária em relação à prestadora pelos encargos trabalhistas da última, ou seja, a terceirização deve se compatibilizar “com as normas constitucionais de tutela do trabalhador, cabendo à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias.”
Após narrar a evolução dos modelos taylorista/fordista para o toyotismo, o ministro Barroso definiu a terceirização como transferência para outra empresa de parte da atividade produtiva, fenômeno inerente ao mundo globalizado, acrescendo fundamentos:
(1) “este não é um debate entre progressistas e reacionários, este é um debate e esta é uma discussão sobre qual é a forma mais progressista de se assegurarem empregos, direitos dos empregados e desenvolvimento econômico. Porque, se não houver desenvolvimento econômico ou sucesso empresarial das empresas, não haverá emprego, renda ou qualquer outro direito para os trabalhadores”;
(2) “deve-se atribuir à contratante a responsabilidade por fiscalizar os recolhimentos trabalhistas e previdenciários da empresa terceirizada”;
(3) “há, de fato, duas relações bilaterais: i) a primeira, de natureza civil, consubstanciada em um contrato de prestação de serviços, celebrado entre a contratante e a empresa terceirizada, denominada contratada;
4) a “segunda, de natureza trabalhista, caracterizada por uma relação de emprego, entre a contratada e o empregado. Assim, há, na última contratação, típica relação trabalhista bilateral, plenamente adequada à incidência do direito do trabalho”;
(5) “a atuação desvirtuada de algumas terceirizadas não deve ensejar o banimento do instituto da terceirização. Entretanto, a tentativa de utilizá-lo abusivamente, como mecanismo de burla de direitos assegurados aos trabalhadores, tem de ser coibida. Essa é a condição e o limite para que se possa efetivar qualquer contratação terceirizada. Os ganhos de eficiência proporcionados pela terceirização não podem decorrer do descumprimento de direitos ou da violação à dignidade do trabalhador. A contratante — sabedora da existência desse tipo de empresa — deve tomar todas as medidas necessárias a assegurar o respeito à integralidade dos direitos e dos deveres trabalhistas, previdenciários e de saúde e segurança no trabalho, que decorrem da relação de emprego entre a empresa terceirizada e seu empregado”.
O ministro Alexandre de Moraes fundamentou:
(1) “os casos ora tratados não têm por objeto a relativização de direitos sociais ou a desvalorização do trabalhador”;
(2) “em nenhum momento a opção da terceirização como modelo organizacional por determinada empresa permitirá, seja a empresa ‘tomadora’, seja a empresa ‘prestadora de serviços’, desrespeitar os direitos sociais, previdenciários ou a dignidade do trabalhador”;
(3) “da mesma maneira, caso a prática de ilícita intermediação de mão de obra, com afronta aos direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores, se esconda formalmente em uma fraudulenta terceirização, por meio de contrato de prestação serviços, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização, pois o Direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos”.
Os votos convergentes mantiveram os fundamentos essenciais e a ementa do acórdão preservou o vínculo empregatício, ao dispor: “Observância das regras trabalhistas por cada empresa em relação aos empregados que contratarem”. Na sequência, foi definida a seguinte “tese” — Tema 725/STF:
“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.”
Porém, a “tese” ganhou vida própria. Nos julgamentos posteriores, o Tema-725/STF passou a sofrer da chamada hiperintegração, irradiando seus tentáculos para outros casos, sem relação com a terceirização.
A “tese” passou a figurar como álibi argumentativo para validar toda sorte de “pejotizações” e outras formas de trabalho autônomo, desprezando as premissas (holding) que fundaram o julgamento.
Porém — e isso fica comprovado pela leitura do acórdão que gestou o Tema 725-STF, nenhuma linha do caso paradigma eliminou a relação de emprego; ao contrário, todos os votos dedicaram laudas para proteger os direitos sociais fundamentais.
Mas por que a terceirização irrestrita transformou-se em pejotização?
A pejotização não resiste à hermenêutica adequada. O professor Lenio Streck não se cansa de provar que, no Brasil, não existe um “sistema de precedentes”. Malograda será a tentativa de precedentalização do direito, por incompatibilidade e ausência de uma teoria de base.
Na forma como as teses se estabeleceram no Brasil — por meio de enunciados prêt-à-porter, esclarece o professor que “raramente a ementa citada vem acompanhada do contexto histórico temporal que cercou o processo originário. Não há a reconstrução da história institucional do ‘precedente’. Esse problema agravou-se com a aprovação do efeito vinculante das súmulas (embora o problema já existisse antes) e o surgimento daquilo que vem sendo denominado de ‘cultura de precedentes’. Ora, os fatos não cabem na ‘ementa’ ou no ‘precedente’, porque “a verdade não cabe no conceito”, de modo que a estrutura do raciocínio jurídico está baseada mais no argumento de autoridade do que na autoridade do argumento [4].
O professor André Coelho, no 7º Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito em 29/11/2024, sustentou que o “sistema de precedentes”, com sua verticalidade, soma o pior dos dois mundos: (1) cria uma norma (tese, súmula, texto) sem legitimidade democrática que se desprende do caso original (como se as cortes superiores julgassem “putativamente” todos os casos que tratem do mesmo tema; o juiz passa a ser a “boca” das Cortes de Vértice) e (2) busca promover um controle horizontal, pois quando um ou mais julgados fogem da lógica padronizada, recorre-se ao incidente de uniformização da jurisprudência (IUJ), o que leva à limitação da qualidade (e quantidade) dos argumentos racionais, conduzindo a uma simplificação do direito.
Há um fechamento hermenêutico forçado, porque é impossível desprezar as premissas fáticas do caso. Com Heidegger e sua hermenêutica da faticidade, não existe uma universalidade que contenha todos os sentidos, porque os sentidos se dão na concretude. A assertiva “não há lagartos em geral”, mas sempre um “dado tipo de lagarto” inspira-nos a pensar nas particularidades da espécie que caracterizam o ser, porque somente na concretude que se atribui o sentido (o é da coisa).
Portanto, não existem vínculos de emprego em geral, mas vínculos que se caracterizam na (e a partir da) faticidade, quando comprovados os pressupostos normativos.
Mesmo assim, o próprio STF é cambiante nas decisões sobre o tema relativo ao vínculo de emprego na “pejotização”: (1) ora compreende que há lagartos em geral, quando, forçosamente, adapta o caso ao precedente, desconsiderando as especificidades daquela relação jurídica; (2) ora compreende que as especificidades do lagarto lho afastam do precedente, porque as premissas do caso (subordinação) não se adaptam à permissão genérica da terceirização.
O positivismo fático tem essa característica: o tribunal põe o direito (diz que pode terceirizar); assim a doutrina descreve esse direito (tautologicamente: é possível terceirizar). Mas como o positivismo não se preocupa com a decisão judicial (o direito descrito não vincula), a (nova) decisão estará “livre” para pôr novo direito (pejotização). Consequentemente, entra-se num “looping” vicioso, que desautoriza a pretensão de segurança jurídica pretendida pelo “precedente”.
Por tudo isso, qual seria o telos dessa interpretação ilimitada promovida pelo STF? Erradicar o vínculo de emprego? Haverá espaço para a advocacia distinguir as particularidades do caso concreto em relação à terceirização, que nada tem a ver com pejotização? Ou o precedente é/será plenipotenciário e onipresente neste debate? Por que razão o Tema 725-STF foi distorcido — e transmutado — a ponto de se desprender dos fundamentos determinantes que lhe deram origem?
Reflexões finais
No livro Germinal, Emile Zolá mostrou o sofrimento dos trabalhadores nas minas de carvão, sem proteção à saúde e à segurança, o que provocou revolta dos operários, insurrectos com o sistema opressivo.
As assimetrias vêm de longe. E no Brasil, país de modernidade tardia, não foi diferente; a relação capital-trabalho é assimétrica na generalidade dos casos. Por isso, nossa Constituição compromissória garantiu direitos sociais mínimos (artigos 6º a 11), mas tudo isso pode ruir com a existência de um contrato formal entre pessoas jurídicas, ou, indo mais longe, até mesmo quando houver uma relação informal com alegada autonomia do trabalhador.
Da forma como as reclamações constitucionais estão sendo examinadas pelo STF, a pejotização irrestrita vai tornar “empresários”, do dia para noite, toda sorte de trabalhadores. Basta a existência de um contrato escrito para o caso “entrar na tese”. Ou pior: basta uma relação informal, alegadamente “autônoma”, para suspender a tramitação do processo (vide a Reclamação 79.504, pela qual o ministro Cristiano Zanin suspendeu a ação de um desafortunado servente de obras, que trabalhou menos de 03 meses, recebendo salário mensal de R$ 2 mil, sem CTPS anotada).
Imaginem o minerador descrito por Zolá reivindicando limites à jornada, uma folga semanal ou o salário mínimo. Se pejotizado, receberia um veredito prêt-à-porter: você decidiu ser empresário e não deve ser protegido. Pelo realismo jurídico e sua máxima (o direito é o que os tribunais dizem que é) afasta-se, com um simples piparote, as duras conquistas inscritas no artigo 7º da CF.
Liberdade e igualdade estão subjacentes às reflexões dessa natureza. Ao radicalizar a liberdade contratual em detrimento da igualdade, é preciso relembrar a frase de Isaiah Berlin: “a total liberdade do lobo é a morte dos cordeiros” [5].
[1] A “hiperintegração” do precedente significa a adoção da regra geral para casos que são distintos, enquanto a “desintegração”, noutro extremo, exagera na singularização do caso, de modo a negar-lhe aplicação a casos similares. (RAMIRES, Maurício – Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 104-105).
[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 351-352.
[3] RAMIRES, Maurício. Idem. p. 69.
[4] STRECK, Lenio Luiz – Ensino jurídico e(m) crise: ensaio contra a simplificação do direito. São Paulo: Editora Contracorrente, 2024, p. 90-95.
[5] Apud COUTINHO, João Pereira – As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 48.