Trabalho remoto desafia a proteção da personalidade do trabalhador. Novos instrumentos são necessários para garantir o respeito aos seus direitos neste contexto tecnológico.
Seria a distância na prestação de serviços um agente que compromete a proteção da personalidade do trabalhador? Ou, dito de outra forma, quais os instrumentos adequados, no trabalho a distância, para que o empregador demonstre a efetividade do respeito aos direitos da personalidade do trabalhador?
A evolução tecnológica rompeu as esferas pessoais e profissionais que, usualmente, estavam isoladas em si mesmas e impôs certa permeabilidade entre estas duas esferas que estão a cada dia mais envolvidas, revelando uma interferência inevitável do empregador na vida pessoal do trabalhador e que pode implicar atos de abuso do empregador.
A proteção da personalidade se coloca como garantia de todo ser humano na sua relação em sociedade e que envolve todos os direitos concernentes ao indivíduo e que inclui seu corpo, sua imagem, seu nome e todos os demais atributos que possam caracterizar sua identidade. O direito da personalidade envolve direitos inatos, fundamentais e subjetivos oponíveis a todos e ao Estado.
O direito geral de personalidade foi construído ao longo dos séculos e, face à multiplicidade de fatos da vida real, tem ganho terreno para se ajustar às novas circunstâncias e à complexidade do comportamento humano e, neste momento, com a evolução tecnológica e dos meios de informação, merece atenção especial.
São direitos da personalidade aqueles previstos no Código Civil, Capítulo II, do art. 11 ao 21, e que são assegurados igualmente pela CF no art. 5º, inciso X, que destaca a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, ficando assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente da violação.
Os direitos da personalidade envolvem, portanto, a integridade física, considerando-se neste aspecto o corpo e todos os aspectos físicos da pessoa; integridade psíquica e que diz respeito ao campo do exercício da liberdade e da privacidade da pessoa; e, os direitos relativos à integridade moral, ou seja, a honra e a intimidade.
Quando se trata da vida em sociedade em que as pessoas se relacionam umas com as outras de forma livre e independente, os direitos da personalidade podem ser ofendidos, dentre outras situações, por um ato de discriminação pública ou ofensa à honra da pessoa. Todavia, na relação de dependência econômica, isto é, em que o prestador de serviços se vincula ao tomador por razões contratuais e econômicas, a depender das condições em que o trabalho for exigido, a violação dos direitos da personalidade, no campo trabalhista, fica mais sensível.
Transportados todos este aspectos para o regime de trabalho na modalidade de teletrabalho, o prestador de serviços nestas condições, empregado ou não, poderia, eventualmente, sofrer todos efeitos físicos ou psíquicos ao daquele que presta serviços de forma presencial. O trabalho à distância não excluiu a possibilidade de uma intervenção mais agressiva do tomador de serviços e que possa afetar de modo crítico a condição física ou psíquica do trabalhador.
Desta feita, aplicam-se ao trabalhador, no contrato de teletrabalho, as mesmas normas de proteção que devem ser observadas no trabalho presencial porquanto o objeto tutelado é o direito geral de personalidade e que envolve a compreensão de uma cláusula geral, isto é, a personalidade humana, que permite, consoante afirma Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Souza em Direito Geral de Personalidade (ed. Coimbra, 1995, p. 93), “maleabilidade e versatilidade de aplicação a situações novas e complexas”.
A reforma trabalhista da lei 13.467/17, inseriu o Título II-A na CLT, para tratar de dano extrapatrimonial e trouxe, no art. 223-C, como bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física.
São, portanto, atributos e direitos da pessoa e, desta feita, poderá um ato praticado pelo tomador de serviços no trabalho à distância, atingir o prestador de serviços em diferentes aspectos, ou seja, na comunicação escrita ofensiva à honra ou à intimidade do trabalhador; nas imposições de cumprimento de tarefas e entregas em tempo que possa restringir sua liberdade; nas manifestações de discriminação quanto ao gênero; na exigência de trabalho sem qualquer restrição de tempo impedindo o trabalhador do exercício do direito de desconexão, cerceando o direito ao lazer do trabalhador; e, no campo da integridade física nela compreendidas as agressões psicológicas, com tratamento desumano e degradante.
Portanto, no cenário brasileiro, a legislação fixa de modo claro regras de proteção do direito de personalidade que devem ser observadas tanto para o trabalhador que atua de forma presencial como para aquele que atua à distância.
A proteção da personalidade deve seguir regras gerais de proteção da pessoa nos seus aspectos essenciais da vida em sociedade e, o teletrabalho, deve ser considerado como uma forma de organização do trabalho pela qual um trabalho, que poderia ser executado nas dependências do empregador, é realizado fora do ambiente da empresa, utilizando as tecnologias da informação e da comunicação, podendo ser realizado em qualquer local e não necessariamente no domicílio do empregado.
Todavia, o fato de o local de trabalho funcionar como extensão do ambiente da empresa, não exclui a proteção do domicílio do empregado, pois não retira o caráter privado do domicílio e o empregador não pode nele penetrar sem prévia concordância do trabalhador, sob pena de sanções civis e penais.
Por outro lado, o empregador deve ser responsável pelas obrigações relativas à proteção da saúde e da segurança do trabalhador.
Igualmente, o fato de a vida profissional e vida pessoal estarem envolvidas, não exclui o empregador da obrigação de respeitar as regras que protegem a vida privada dos trabalhadores. Ou seja, o exercício do poder de direção do empregador, que permite o controle da atividade do empregado, encontra limites e deve observar, de modo justificado e proporcional, o respeito da vida privada do empregado.
Assim, por exemplo, proíbe-se a instalação de câmera ativada ou de chamadas repetidas e permanentes. Tais atos permitiriam que o empregado contra eles se rebelasse por considerar tal fiscalização excessiva ou desproporcional. Assim, neste contexto do teletrabalho, seria recomendável a elaboração de normas adaptadas e específicas de acordo com os interesses de cada empresa.
Sobre o direito à saúde, há, de forma inconteste, a obrigação de o empregador prevenir os riscos profissionais em relação aos seus empregados e tomar as medidas necessárias para garantir a segurança no trabalho e a integridade física e mental, considerando, em especial, o isolamento e a perda de convívio social decorrente do teletrabalho.
O exemplo do direito estrangeiro pode servir de parâmetro para destaque da importância do teletrabalho e a forma de tratamento.
Na Bélgica, por exemplo, que não admite o teletrabalho ocasional, a ocupação de trabalhadores em teletrabalho está organizada de modo regular pela Convenção Coletiva de trabalho 85 do “Conseil National du Travail” e pela lei de 3/7/78 e que se refere ao trabalho em domicílio.
Alguns cuidados são recomendados para a contratação de trabalho por meio de teletrabalho, por exemplo, a informação da frequência e, eventualmente, os dias e horas durante os quais o trabalho é executado ou os dias e horas de presença na empresa, quando for o caso; períodos e locais onde o trabalhador deve ser localizado e a forma de fazer o contato; custos decorrentes dos equipamentos necessários à execução do trabalho; situações em que o trabalhador possa chamar suporte técnico; o local ou os locais em que o trabalhador escolheu para a execução do trabalho.
Como se vê, a distância física da prestação de serviços não exclui a obrigação de regras claras de forma a privilegiar a proteção do direito da personalidade do empregado, permitindo que o trabalho não seja fator de exclusão social, cabendo ao empregador agir de forma a incluir o trabalhador nestas condições, para que ele se socialize com os demais empregados internos, com capacidade de exercer a cidadania pelo exercício do trabalho.
Paulo Sergio João
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Relações Coletivas do Trabalho e sócio fundador do escritório Paulo Sergio João Advogados. Professor dos cursos de Pós-Graduação da PUCSP
Magistrado destacou que o rol de hipóteses de uso do saldo do FGTS é exemplificativo, permitindo sua utilização em situações não previstas pela lei.
Da Redação
Trabalhador poderá utilizar FGTS para quitar dívidas processuais que comprometeram sua habitação. Sentença foi prolatada pelo juiz Federal Marcelo Guerra Martins, da 13ª vara Cível Federal de São Paulo/SP, que considerou o rol de hipóteses de uso do saldo, previsto em lei, como exemplificativo, não taxativo, permitindo a utilização do valor.
No caso, o trabalhador buscava utilizar o FGTS para quitar dívidas processuais que haviam levado à penhora do imóvel em que reside.
Para isso, impetrou mandado de segurança contra o gerente administrativo do FGTS da CEF – Caixa Econômica Federal em São Paulo/SP, requerendo a liberação do valor de R$ 220 mil. O trabalhador argumentou que o rol do art. 20 da lei 8.036/90, que estipula as hipóteses de uso do saldo, é exemplificativo, não taxativo.
Rol exemplificativo
Na análise do mérito, o magistrado destacou que a jurisprudência do STJ entende que o rol da mencionada lei é exemplificativo.
Assim, considerou que a utilização do FGTS pode ser permitida em situações não expressamente previstas pela lei, desde que visem à proteção de direitos fundamentais do trabalhador, como o direito à moradia. O juiz ressaltou que a CF garante tal direito e que a interpretação das normas deve visar à sua proteção efetiva, alinhada com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Ao final, determinou que a CEF libere os valores do FGTS para a quitação das dívidas. Além disso, a Caixa foi condenada a pagar uma multa de R$ 4 mil pelo atraso no cumprimento de liminar que havia autorizado o uso do saldo.
Os advogados Joberson Alexandre Paixão e Jaqueline Alves do Nascimento Paixão, do escritório Alves & Paixão Advogados, atuaram pelo trabalhador.
No final do ano de 2023, o Conselho Nacional de Justiça divulgou o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples [1], consistente na edição de medidas “com o objetivo de adotar linguagem simples, direta e compreensível a todas as pessoas na produção das decisões judiciais e na comunicação geral com a sociedade”, propondo, dentre outras coisas, o “fomento ao uso de linguagem simples e direta nos documentos judiciais, sem expressões técnicas desnecessárias” e “a criação de manuais e guias para orientar cidadãos e cidadãs sobre o significado das expressões técnicas indispensáveis nos textos jurídicos”.
Em texto publicado em 2020 [2], este subscritor já defendia a necessidade de uma revolução na redação jurídica tradicionalmente adotada no País, com a superação do ultrapassado juridiquês, compreendido como uma “expressão cunhada para ironizar a forma de expressão comumente adotada pelos profissionais do Direito para comunicarem-se em suas manifestações escritas ou orais, composta por formalismos ultrapassados, expressões difíceis, sinônimos incomuns, palavras em latim e termos até esdrúxulos”.
Sempre que o tema da simplificação da linguagem jurídica vem (ou volta) à tona, enfrenta algumas críticas, sobretudo do meio acadêmico, que atribuem a ele ideias ou propostas que nunca foram, no entanto, defendidas. É a típica falácia do espantalho [3].
Portanto, é preciso deixar claro que a defesa da simplificação da linguagem jurídica e do combate ao juridiquês não propõem:
a) o fim uso dos termos técnicos: eles existem em todas as áreas de conhecimento e devem ser empregados adequadamente. Sentença é o ato judicial que decide a questão levada a julgamento e não pode ser jamais ser chamada de despacho. O mandado de segurança é impetrado. O recurso interposto, após conhecido, poderá ser provido ou desprovido. Furto e roubo são coisas bem diferentes. Denúncia e queixa são atos processuais próprios, e não o registro de uma ocorrência na polícia. Portanto, o uso adequado dos termos técnicos é indispensável para a elaboração de um texto bom, claro e preciso.
O que se propõe é que eles sejam usados apenas quando necessários. Sem exibicionismo. E muito menos ainda substitui-los por expressões esdrúxulas e sem previsão legal. Se o termo técnico é petição inicial, por que escrever peça inaugural ou vestibular? Se é denúncia, por que se usar exordial acusatória ou peça incoativa? Teríamos vários exemplos para citar.
Associado a isso, estimula-se a divulgação de materiais, [4] explicando à pessoa leiga o sentido de tais termos técnicos, para que ela compreenda, por exemplo, que afirmar que o juiz é incompetente não é criticar a sua capacidade intelectual, mas apenas argumentar que, pelas regras processuais, seria outro juiz que deveria julgar o processo. Ainda, propõe-se, simultaneamente à edição da manifestação original, a elaboração de uma versão simplificada, para facilitar a compreensão pela sociedade em geral.
b) que se possa escrever errado ou de qualquer jeito: a observância da gramática e o uso correto das palavras são indispensáveis para um texto bem escrito, claro e objetivo. Curiosamente, o que se percebe no dia a dia é que, na tentativa de demonstrar-se culto, o jurista comete erros gramaticais básicos e dá a determinadas palavras sentidos diferentes do seu verdadeiro significado. Por exemplo, o uso incorreto de “mesmo” como substituto de pronome pessoal; da expressão “posto que” com o significado de “porque”, e não de oposição (apesar de que, embora, ainda que…); e da expressão “restou comprovado” com o significado de “ficou comprovado”.
c) a superficialidade na análise de fatos, provas e argumentos: desde pequeno, somos forçados a acreditar que precisamos escrever muito para demonstrar conhecimento. Nas escolas, as provas exigiam limite mínimo de linhas para desenvolvimento da resposta. Por que eu preciso escrever 20 linhas se entendo que 10 linhas são suficientes para responder a pergunta formulada? E essa visão é ainda mais estimulada após o ingresso no curso jurídico.
O certo, porém, é que a simplificação do formato da mensagem em nada interfere na qualidade do seu conteúdo. Na verdade, o que muito se vê é a inserção de palavras, frases, expressões, dispositivos legais, citações doutrinárias e decisões judiciais desnecessárias com a finalidade de demonstrar a suposta qualidade do conteúdo da manifestação jurídica.
Lanço um desafio ao leitor: examine a sua última peça processual (ou, caso não queira se torturar, examine a próxima peça processual que chegar às suas mãos) e conte quantos parágrafos iniciam-se por “trata-se”, “cuida-se”, “é importante destacar”, “é válido ressaltar”, “cumpre pontuar”, “é digno de nota” ou termos equivalentes. Se não todos, a grande maioria. Busque agora por expressões cafonas ou incomuns, que poderiam ser facilmente excluídas ou substituídas por palavras mais simples. Procure, por exemplo, por “noutro giro”, “lado outro”, “noutra banda”, “ademais”, “ulterior”, “com fulcro”, “com espeque”, “com supedâneo”, “com efeito”, “outrossim” etc.
Após, faça um esforço mental, excluindo todas elas e reescrevendo o texto. Ao final, reflita sobre se foi difícil retira-las e se isso alterou a essência da mensagem. Aposto que não. O resultado é que agora você tem a mesma mensagem, mas transmitida de forma simples, objetiva e direta.
É preciso, de uma vez por todas, superar a falsa relação entre escrever difícil e ser erudito. Não é razoável alguém se achar culto por substituir resumo dos fatos por breve escorço factual; referir-se ao código de processo civil como código de ritos; em vez de escrever autos, citar fólios ou pergaminho processual; chamar cadeia ou presídio de ergástulo público; trocar habeas corpus por remédio heroico ou writ; ou usar a expressão parquet ao se referir ao Ministério Público etc.
A mera ocorrência de assalto em um estabelecimento empresarial não configura acidente de trabalho automaticamente para todos os empregados, devendo haver comprovação da incapacidade laborativa ou da redução da capacidade.
Para o TST, ocorrência de acidente de trabalho não é automática em assalto
Esse entendimento é da 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho. A corte deu provimento ao recurso de um banco contra decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (interior de São Paulo) que determinou a emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) a todos os empregados da empresa que estavam presentes durante um assalto.
Segundo o TST, no entanto, a ocorrência de acidente de trabalho não deve ser automática, sendo necessária a comprovação de incapacidade laborativa ou que houve redução da capacidade de trabalhar.
“Não se desconhece que as agências bancárias frequentemente são alvos de ataques criminosos, e que os empregados de tais estabelecimentos, não raro, são vítimas da violência praticada por assaltantes. No entanto, tais atos, por si sós, não podem acarretar a presunção de que houve redução ou perda da capacidade laborativa”, disse em seu voto o ministro Breno Medeiros, relator do caso.
A corte também considerou incabível a condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, uma vez que a falta de emissão de CAT pelo banco não foi ato ilícito.
“A obrigação de comunicação deve dizer respeito tão somente aos casos em que demonstrada efetivamente a incapacidade do trabalhador, o que não impede que, futuramente, caso o empregado desenvolva um quadro de saúde, que guarde causalidade com o evento, possa ter reconhecida a lesão para encaminhamento ao INSS. Precedente de Turma desta Corte. Nesse contexto, é indevida a condenação à emissão da CAT, de forma automática”, concluiu o magistrado.
A Justiça do Trabalho testemunha, de tempos em tempos, ondas de novas temáticas e pedidos em petições iniciais nas ações de sua competência. Ao lado das eternas horas extras, o pleito de acúmulo de funções vem liderando a inovação criativa dos causídicos nos últimos anos, com potencial de aumentar exponencialmente o custo trabalhista no Brasil e, pior, de forma retroativa.
Funciona assim: o trabalhador é contratado para exercer determinada função, com o salário correspondente pactuado entre empregado e empregador, observadas as regras legais (salário mínimo, piso estadual, piso profissional ou salário normativo). Dentro da função pactuada, são estabelecidas as tarefas e as responsabilidades que o empregado vai desempenhar.
Aí começa o problema. Não há, em nosso ordenamento jurídico, norma cogente fixando quais tarefas podem ser desempenhadas para cada função, exceto para os casos em que a profissão é regulamentada como, por exemplo, a de advogados.
Costuma-se invocar a CBO, Classificação Brasileira de Ocupações, norma de caráter administrativo que basicamente utiliza metodologia capaz de agregar as atividades desenvolvidas por trabalhadores, empregados ou não, para fins de orientação de políticas públicas, como o próprio site do governo federal explica:
“A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) é um documento que retrata a realidade das profissões do mercado de trabalho brasileiro. Foi instituída com base legal na Portaria nº 397, de 10.10.2002.
Acompanhando o dinamismo das ocupações, a CBO tem por filosofia sua atualização constante de forma a expor, com a maior fidelidade possível, as diversas atividades profissionais existentes em todo o país, sem diferenciação entre as profissões regulamentadas e as de livre exercício profissional.
A CBO tem o reconhecimento no sentido classificatório da existência de determinada ocupação e não da sua regulamentação. A regulamentação da profissão diferentemente da CBO, é realizada por Lei cuja apreciação é feita pelo Congresso Nacional, por meio de seus Deputados e Senadores e submetida à sanção do Presidente da República. A CBO não tem poder de Regulamentar Profissões.
Seus dados alimentam as bases estatísticas de trabalho e servem de subsídio para a formulação de políticas públicas de emprego.
Os trabalhadores sentem-se amparados e valorizados ao terem acesso a um documento, elaborado pelo governo, que identifica e reconhece seu ofício. As inclusões das ocupações na CBO têm gerado, tanto para categorias profissionais quanto para os trabalhadores, uma maior visibilidade, um sentimento de valorização e de inclusão social. A atualização da CBO ocorre em geral, anualmente e tem como foco revisões de descrições com incorporação de ocupações e famílias ocupacionais que englobem todos os setores da atividade econômica e segmentos do mercado de trabalho, e não somente canalizados para algum setor específico.”
Examinando-se, a título exemplificativo, uma dessas ocupações listadas pela CBO, percebe-se a dificuldade de, a partir de tais dados, extrair quais tarefas e responsabilidades cabem a um empregado no exercício de suas funções. Para tanto, veja-se o que diz a CBO acerca do “auxiliar administrativo”:
“Executam serviços de apoio nas áreas de recursos humanos, administração, finanças e logística; atendem fornecedores e clientes, fornecendo e recebendo informações sobre produtos e serviços; tratam de documentos variados, cumprindo todo o procedimento necessário referente aos mesmos.”
Pois bem, coloque-se, agora, no lugar de um empregador que necessita contratar um auxiliar administrativo e com ele pactua um salário para execução de determinadas tarefas, como atuar na documentação do setor de finanças de uma empresa.
Passado algum tempo, e sendo público e notório que as atividades empresariais não são imutáveis e que o incremento de tecnologia altera as rotinas e a forma de se executar diversas atividades, tal empregado seja colocado para, também, cuidar da documentação relativa a questões administrativas. Existe acúmulo de funções?
É justamente este tipo de questão que incha as reclamações trabalhistas atualmente, já que a consequência da alegação de acúmulo é, por óbvio, a pretensão de aumento salarial a ser fixado pelo juiz, em patamares que chegam a 40% (e de forma retroativa, pois em regra o trabalhador já não labora mais na empresa).
São situações até curiosas, não fosse o potencial ofensivo para a economia. Já vi alegações de acúmulo de função de vendedor com motorista, porque a empresa forneceu, para seu empregado vendedor, um automóvel para que ele se deslocasse entre os clientes. Sim, o vendedor queria dobrar o salário por ser motorista de si mesmo.
Spacca
Há o caso recorrente dos empregados domésticos. Sob alegação de que a contratação se deu para limpeza e arrumação, vem o pleito de acúmulo porque o doméstico começou a fazer tarefas na cozinha.
Lembrando que não se cogita de excesso quantitativo de trabalho, a jornada originalmente contratada é regularmente cumprida. Trata-se, apenas, de pleito de majoração dos salários por aumento de tarefas supostamente de outra função.
A questão, banalizada como está, finda por gerar mais um caso em que a profecia atribuída a Pedro Malan se concretiza: “no Brasil até o passado é incerto”. Adaptada para o direito do trabalho, poderíamos dizer que “no Brasil o custo trabalhista é incerto”.
Para evitar a tese do acúmulo de funções
Para evitar os excessos no uso da tese do acúmulo de funções, creio que alguns parâmetros devem ser observados para, no mínimo, haver racionalidade no pleito. Abaixo apontarei três premissas para iniciar o debate sobre o tema e farei uma grave advertência.
Primeiro, há de se indicar qual é exatamente a função que se pretende seja reconhecida como acumulada, qual o valor do salário de referida função e o motivo justificador do patamar salarial (se é referente a um empregado paradigma, se provém de plano de cargos e salários, de piso normativo etc.). A providência é necessária, pois ao se postular um aumento de 30 ou 40% por acúmulo, obviamente não pode ocorrer do reclamante passar a receber salário superior ao que perceberia se estivesse integralmente na nova função, sob pena de se esvaziar ou ignorar o instituto da equiparação salarial (artigo 461 da CLT).
Lembre-se: se o reclamante não preenche os requisitos para equiparação salarial, seria absurdo que, por via do “acúmulo de funções”, passasse a ganhar igual ou mais que o paradigma.
Segundo, se a função supostamente acumulada possuir salário igual ou inferior à exercida pelo reclamante, não parece ter havido qualquer tipo de dano patrimonial ao trabalhador que pudesse ensejar o aumento salarial, pois a alteração qualitativa da sua atividade, se é que houve, não implicou prejuízo algum.
Em terceiro lugar, deve-se indicar qual o tempo em que o empregado permanece acumulando as novas tarefas da função que diz estar acumulando, pois, obviamente, ao se fixar o tal “plus” salarial, deve ser levado em consideração o princípio da proporcionalidade, já que acumular todos os dias por toda a jornada é diferente de acumular uma vez por semana durante uma hora por dia.
Com os três pilares acima, penso, a questão do acúmulo pode ter algum tipo de coerência, mas não se pode avançar no tema sem uma grave advertência: não gera acúmulo de funções a mera modificação ou assunção de novas tarefas inerentes à função originalmente estipulada, nem cabe aplicação do artigo 460 da CLT, pois houve pacto referente a salário no contrato de trabalho.
A bem da verdade, nosso ordenamento jurídico sequer prevê a hipótese de aumento de salário por acúmulo de funções, o que seria suficiente para o indeferimento de qualquer pleito neste sentido, sendo que o próprio artigo 456, parágrafo único da CLT, a rigor, impediria a tese do acúmulo, pois na dúvida deve-se considerar que o empregado está sujeito “a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal”.
O problema, como se sabe, é que lei não passa de um mero detalhe para o Poder Judiciário. Logo, que ao menos haja algum critério para nortear os aventureiros que resolvem empreender no Brasil.
A AGU e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços anunciaram no último dia 24 de junho uma cooperação para desenvolver o procedimento de legislação experimental. Você, pessoa desavisada e incrédula nas inovações que possam sinalizar alguma luz no ringue polarizado da crônica político-legislativa nacional saiba que ainda há vida republicana no Brasil. Ainda que, por enquanto, seja o Executivo a dar o passo enquanto o Legislativo assista a banda passar.
A legislação experimental como o próprio nome indica é um procedimento (com garantias à uma polifonia dos afetados) que encontra o seu espaço de atuação, exatamente onde a possibilidade de consenso sobre como regular uma matéria parece estar a anos luz de um desfecho no mundo terreno.
Para quem ainda acha que elaborar um ato normativo (seja ele de origem parlamentar/legal, ou regulamentar/legal) significa publicar e assistir a dinâmica da situação objeto da ação legislativa, há remédios para aqueles temas que ninguém quer e todo mundo fala.
A fala inclui até mesmo a alegação da inexistência do dever de legislar (cuja necessidade é fartamente documentada nas burocracias judiciais e administrativas), como se a afetação de recursos públicos para os legislativos federais, estaduais e municipais fosse coisa de pouca monta que não tivesse a contrapartida de poder-dever. Aliás, a defesa da legislação pelos legisladores (e legisladoras em menor número, mas isso é assunto para depois) é sempre invocada quando o Judiciário se lança no seu desejo secreto e explícito de legislar.
Afinal, há um imenso campo das omissões, moras e lacunas legislativas que povoam a vida cotidiana nacional. Exorbitância de competência, reserva legal, conflito entre poderes são parte dos mantras entoados pelo mesmo Legislativo (mandatários da atual legislatura) que ignora temas difíceis, controversos de olho nos likes, quer dizer, votos na próxima campanha.
A legislação experimental apresenta-se como técnica que atua sobre a duração (vigência) de uma legislação. Na prática, significa o reconhecimento estratégico do papel do tempo e sobre como modulá-lo de maneira eficiente para alcançar os objetivos justificadores da sua existência (ou deveria sê-lo). A modulação de efeitos da legislação não é algo estranho à crônica jurídica brasileira, haja vista o que ocorre com os efeitos das declarações de inconstitucionalidade, ou mesmo com os eventuais conflitos em caso de perda de eficácia das medidas provisórias (de novo, o tempo), ou mesmo no caso de legislações em tempos de calamidades e riscos.
Os outros campos de atuação da lei experimental têm a ver com o impacto da tecnologia em produtos, processos e na sociedade, ou mesmo quando há conflitos e visões divergentes sobre um tema cujos dados e evidências demonstrem problemas na efetividade de direitos fundamentais, por exemplo. O período de existência de uma legislação é controlado ( modulação do tempo de vigência) com o fim de verificação dos efeitos e também no modo como a sociedade, as instituições, o setor produtivo, os governos reagem ao conteúdo da decisão de legislar.
Insumos informacionais obtidos nessa etapa formam uma justificação poderosa ao aperfeiçoamento da legislação. Essa inovação na elaboração de legislações e regulações considera as contingências do nosso tempo e a necessidade de leis que façam sentido e que sua edição minimize a criação ou risco de efeitos perversos, desiguais, com ônus. Por fim, a legislação experimental lida com problemas públicos, problemas delimitados no arco de direitos e garantias da nossa Constituição, inclusive aqueles com impacto sobre a dignidade humana, a autonomia científico-tecnológica, o desenvolvimento nacional, a maior isonomia entre entes e pessoas e etc.
Legislação experimental exige planejamento
O planejamento passa, primeiramente, pela definição do tipo de problema a ser enfrentado. Falamos de questões do presente que necessitam serem redesenhadas para o futuro. Como o mundo deveria ser, pode passar por percepções religiosas, ideológicas, morais, mas elas não podem desconsiderar a ocorrência de efeitos aqui e agora.
Porém, o tempo, no procedimento legislativo ou regulatório tem o seu lado b que não tem nada de bom para a nossa República.Práticas legislativas malfazejas estão entre nós, mesmo com as inovações identificadas no Executivo e no Judiciário.
Uma das formas para obtenção de consensos autoritários e em franco desrespeito ao princípio constitucional do contraditório que permite a circulação de informações e sua dinâmica de verificação e contradita é o regime de urgência. Ele entra em rota de colisão com toda a proposta de inovação da legislação experimental pois cria uma barreira às condições para uma livre deliberação pública, com a devida crítica fundamentada quanto efeitos de um texto inicial de proposição legislativa.
Nosso segundo caso de péssimas práticas legislativas, tem a ver com o PL 914/2024 cujo objeto é a produção de veículos menos poluentes. A iniciativa, conforme os objetivos do desenvolvimento sustentável, tem toda a justificação de uma legislação intergeracional a marcar o campo legislativo brasileiro no setor, porém, trouxe consigo um oitavo passageiro.
A “taxa das blusinhas “,ou a taxação de compras internacionais até 50 dólares não poderia ser discutida, de forma, ampla, aberta e republicana. Ela tinha que ser aprovada a todo custo, ainda que seu preço fosse o desrespeito às regras do jogo, do devido processo legislativo (sim, de novo o artigo 7º da Lei Complementar nº 95/1998 que não por acaso regulamenta o art. 59 da Constituição) , minando as bases principiológicas do Regimento do Senado, frustrando de uma só vez a participação, o contraditório, a deliberação (artigo 412).
Bons argumentos não faltam para impedir a aquisição de importados de baixo custo (por boa parte da população que não viaja para o exterior) como a evasão fiscal, concorrência desleal da indústria têxtil internacional, ocorrência de trabalho escravo etc. Três bons assuntos diferentes, díspares, com regimes próprios a exigir tempo, dados, discussão, afinal o inferno anda cheio de boas intenções, inclusive as legislativas.
Inovações que coloquem o tempo da legislação e sua sabedoria a serviço de instituições mais legítimas (no caso, o Executivo) têm na legislação experimental uma boa prática. Porém, cabe aos legisladores, não ao decurso do tempo, a decisão de fazerem sentido para quem vota, respeitando as próprias regras que criam.
é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora e mestre em Direito pela UFMG e coordenadora do Observatório para qualidade da Lei e do Legislab.