Tribunal considerou mau comportamento da ex-empregada para reverter decisão que considerou inexistente justa causa.
Da Redação
Por unanimidade, a 15ª turma do TRT da 2ª Região acolheu recurso de uma empresa e reformou sentença para reconhecer justa causa na demissão de uma empregada que se envolveu em briga no vestiário feminino.
Segundo o colegiado, apesar da ausência de provas robustas sobre quem provocou o conflito, a mera participação da ex-funcionária no incidente, aliada ao histórico de mau comportamento na empresa, foram suficientes para a aplicação da justa causa.
No caso, a ex-funcionária foi demitida por justa causa após se envolver em uma discussão, no vestiário feminino, durante horário de trabalho, com outra empregada, resultando em agressões físicas e verbais. Ela alegou que não iniciou a altercação e que, na verdade, havia sido vítima das agressões.
A empresa sustentou que as envolvidas tinham histórico de desentendimentos e comportamentos inadequados no ambiente de trabalho, o que legitimaria a aplicação da justa causa.
Em 1ª instância, a juíza do Trabalho Elisa Villares, da 1ª vara do Trabalho de São Caetano do Sul/SP, entendeu pela inexistência da justa causa e determinou a conversão da demissão em imotivada, condenando a empresa ao pagamento das verbas rescisórias.
Para o tribunal trabalhista, disucussão entre funcionárias legitima justa causa considerando o histórico de mau comportamento das envolvidas no trabalho.(Imagem: Freepik)
Histórico de altercações
A empresa recorreu da decisão. O recurso foi relatado pela juíza do Trabalho convocada Claudia Mara Freitas Mundim, a qual destacou a ausência de provas robustas e inequívocas para sustentar a justa causa aplicada à empregada.
No entanto, a decisão foi revertida ao considerar-se o histórico de desentendimentos e a comprovação de comportamento inadequado por parte da reclamante.
O tribunal concluiu que a participação da empregada na altercação, somada aos episódios anteriores de desentendimento, caracterizou falta grave, conforme o art.482, j, da CLT. A relatora enfatizou a necessidade de proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção aplicada, considerando adequada a demissão por justa causa diante dos fatos apresentados.
Além disso, ressaltou que a prova documental e testemunhal apresentadas pela empresa, incluindo relatos de outros empregados, corroborou a versão dos fatos apresentada pela empresa, demonstrando que a ex-funcionária não só participou da discussão, mas contribuiu para a manutenção de um ambiente de trabalho hostil.
Assim, o colegiado, por unanimidade, excluiu da condenação o pagamento das parcelas rescisórias, honorários advocatícios e a obrigação de entregar as guias para saque do FGTS e habilitação no seguro-desemprego.
O escritório de advocacia Coelho & Morello Advogados Associados representou a empresa.
Caso envolvia apelidos ofensivos e piadas, resultando em abalo emocional.
Da Redação
TRT da 3ª região manteve decisão que determinou que uma empresa de telefonia pague uma indenização de R$ 2 mil por danos morais a um trabalhador que foi alvo de “memes” feitos por colegas. A 11ª turma, com base no conjunto probatório, concluiu que a empregadora não tomou nenhuma providência para coibir o comportamento impertinente
O trabalhador, atendente de telemarketing, afirmou que sofreu assédio moral no trabalho, mencionando, entre outras situações, os apelidos “colombiano” e “peruano” dados por seu gerente, que o desagradavam.
Testemunha confirmou a versão do trabalhador. Contou que: “vez ou outra aparecia um meme com a foto do trabalhador escrito colombiano, ou com uma montagem dele com uma flauta; que o profissional era chamado pelo apelido na frente de todos, inclusive na frente dos clientes”.
A empregadora argumentou “que ficou provado que o autor da ação não tinha sentimento negativo em relação aos apelidos colocados pelos colegas”. Afirmou ainda que a prova oral demonstrou que o trabalhador tinha bom relacionamento com a gerência.
Para o desembargador relator Antônio Gomes de Vasconcelos, é incontroverso que o autor foi alvo de apelidos, chacota e piadas, envolvendo a aparência dele. “Isso atingiu a honra, abalando-o moralmente”, ponderou.
Segundo o julgador, o dano moral nesse caso é presumível. “Sobretudo considerando que a empregadora não tomou nenhuma providência para coibir o comportamento impertinente dos empregados ofensores”, ressaltou.
No entendimento do desembargador, o fato de possuir bom relacionamento com os gerentes não afasta a obrigação da empresa de garantir um ambiente de trabalho saudável aos empregados e, particularmente, ao ofendido, como retratado nos autos.
“Portanto, presentes todos os elementos da responsabilidade civil subjetiva, a empresa tem o dever de reparar os danos morais sofridos pelo reclamante, nos termos do artigo 5º, inciso X, da CF.”
Ele concluiu que a sentença não comporta modificação e negou provimento ao recurso da empresa nesse aspecto, tendo sido acompanhado pelos demais julgadores de 2º grau.
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES) suspendeu decisão que isentava o supermercado Superprix, que tem estabelecimentos no estado do Rio de Janeiro, de divulgar relatório de transparência salarial conforme exigido Ministério do Trabalho e Emprego como parte de uma política de combate à desigualdade salarial entre mulheres e homens.
Normas determinam que homens e mulheres que exercem a mesma função devem ter salários semelhantes
O supermercado questionou na Justiça a obrigatoriedade de disponibilizar o relatório em seu site ou redes sociais, bem como de enviar dados de seus funcionários ao governo federal por meio do Portal Emprega Brasil e de contar com a participação dos sindicatos profissionais na elaboração de eventual plano de ação para a mitigação da desigualdade salarial.
A empresa obteve liminar para não ser obrigada a fornecer os documentos ao governo. A Advocacia-Geral da União recorreu, e o TRF-2 suspendeu a decisão.
O Superprix alegou que os dados pessoais dos funcionários estariam desprotegidos, o que seria inconstitucional. No entanto, a AGU explicou que as normas que dispõem sobre a forma pela qual a publicação dos relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas empresas com cem ou mais empregados deve ocorrer — Lei de Igualdade Salarial (Lei 14.611/2023), Decreto 11.795/2023 e Portaria MTE 3.714/2023 — observam as previsões da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Além disso, ressaltou a AGU, elas foram feitas para ampliar a publicidade de dados de interesse público como forma de fomentar a igualdade salarial entre homens e mulheres.
“Este é um tema muito caro e de acompanhamento estratégico por parte da AGU”, ressalta o advogado da União Carlos Rodrigues da Silva Filho, coordenador trabalhista da Procuradoria-Regional da União na 2ª Região.
“Monitoramos de perto as ações que questionam a Lei de Igualdade Salarial e, em especial, a obrigatoriedade de publicação do relatório de transparência salarial, para assegurar a defesa e implementação desta relevante política pública”, completa. Com informações da assessoria de imprensa da AGU.
As mudanças climáticas, cada vez mais alarmantes e evidentes, causam impactos multifacetados e impõem a adoção de medidas preventivas, precaucionais e estratégicas pelos departamentos jurídicos e de recursos humanos para o enfrentamento de crises desencadeadas pelos desastres.
Com as inundações ocorridas no mês de maio, no Rio Grande do Sul, muitas empresas tiveram suas sedes inundadas e documentos (físicos e digitais) da contratualidade de empregados, ex-empregados e empregados de empresas terceirizadas foram destruídos, avariados ou extraviados pela enchente.
Muitos desses documentos, armazenados nos arquivos físicos dos departamentos de RH, ou digitalizados em sistemas adotados pelas empresas, guardam dados pessoais de trabalhadores. A partir disso, os setores de compliance, proteção de dados, jurídico e recursos humanos têm unido esforços para a compreensão do cenário do incidente e das normas jurídicas que precisam ser observadas quanto ao tema.
A perda de documentos que contemplam dados pessoais é considerada incidente de segurança, regrado pelo artigo 48 da Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados). [1] Na recente Resolução do CD/ANPD nº 15 de 24 de abril de 2024, encontra-se o conceito de incidente de segurança como sendo: “qualquer evento adverso confirmado, relacionado à violação das propriedades de confidencialidade, integridade, disponibilidade e autenticidade da segurança de dados pessoais”. [2]
No âmbito europeu, a European Data Protection Board define que uma violação de dados pessoais pode causar efeitos adversos sobre as pessoas, ocasionando a afetação aos princípios da confidencialidade, integridade e disponibilidade de dados pessoais. A violação da integridade é conceituada como “uma alteração acidental ou não autorizada dos dados pessoais”.[3]
A enchente que destruiu documentos da contratualidade de trabalhadores é caracterizada, portanto, como um incidente de segurança que violou a integridade e a disponibilidade de dados pessoais, exigindo das organizações a avaliação sobre a necessidade, inclusive, de comunicação do incidente à ANPD e aos titulares dos dados pessoais.
Comunicação de ocorrência
O artigo 48, caput da LGPD refere que o controlador (neste caso, a empresa) deverá comunicar à ANPD e ao titular de dados pessoais (trabalhadores) a ocorrência de incidente de segurança que possa acarretar “risco ou dano relevante aos titulares”. No entanto, não há na LGPD um conceito preciso sobre o que seria risco ou dano relevante.
Tal esforço foi empreendido pelo artigo 5º e incisos da Resolução nº 15/2024 do CD/ANPD ao estabelecer que o incidente de segurança pode acarretar dano relevante aos titulares quando puder afetar, significativamente, interesses e direitos fundamentais dos titulares e, cumulativamente, envolver, pelo menos, um dos seguintes critérios:
dados pessoais sensíveis;
dados de crianças, de adolescentes ou de idosos;
dados financeiros;
dados de autenticação em sistemas;
dados protegidos por sigilo legal, judicial ou profissional; ou
dados em larga escala.
A título exemplificativo, se dentre os documentos violados estiverem informações relacionadas a dados pessoais sensíveis, protegidos por sigilo médico (como, por exemplo, dados relacionados à saúde do trabalhador, contidos em prontuários médicos), ou ainda, se a perda de documentos atingiu uma quantidade significativa de trabalhadores (dados em larga escala), a necessidade de comunicação do incidente à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e aos titulares deverá ser avaliada pela empresa, controladora de dados pessoais.
É importante ressaltar que o artigo 6º da Resolução nº 15/2024 do CD/ANPD dispõe que a comunicação do incidente de segurança deverá ser realizada no prazo de três dias úteis, contado do conhecimento pelo controlador de que o incidente afetou dados pessoais. [4]
O prazo é, evidentemente, bastante exíguo.
No entanto, deve-se considerar como o dia do começo do prazo apenas o momento em que for possível acessar o local atingido pela enchente e, sobretudo, quando se possa confirmar a ocorrência de incidente de segurança com dados pessoais que tenha o condão de acarretar risco ou dano relevante aos titulares, como predito.
Do ponto de vista jurídico-trabalhista, os tribunais já apreciaram casos envolvendo enchentes e documentos avariados. Os julgados referem a importância da comprovação do lapso temporal em que ocorreu o incidente para que se possa averiguar os fatos citados em matéria de defesa.
Sabe-se que, na grande maioria dos casos e matérias, mesmo que se compreenda pelo extravio de documentos por fato distante da vontade ou (in)ação do empregador, o ônus da prova segue sendo da empresa reclamada, impondo ao magistrado, no entanto, a valorização de outros meios de prova para a solução do caso em concreto, como a prova pericial, a prova testemunhal, bem como a utilização de prova emprestada. [5]
Certamente, nem todo incidente de segurança deverá ser comunicado à Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Aliás, a própria ANPD refere este posicionamento em seus documentos e publicações. Inobstante isso, é atribuição do controlador de dados avaliar riscos e impactos aos titulares de dados pessoais decorrentes do incidente para aferir a necessidade de comunicação ou não. [6]
E é justamente neste momento, para gerenciar o incidente e minimizar os diversos riscos envolvidos, que se espera do encarregado pela proteção de dados (DPO) a postura proativa necessária para o exercício de seu mister, inclusive para o registro de todas as informações pertinentes ao incidente, pois a decisão de comunicar o incidente de segurança à ANPD e aos titulares de dados pessoais deverá ser, tecnicamente, muito bem fundamentada. [7]
Ressalte-se que o artigo 8º da Resolução nº 15/2024 do CD/ANPD dispõe sobre a possibilidade de a ANPD, a qualquer tempo, solicitar informações adicionais referentes ao incidente de segurança, incluindo:
o registro das operações de tratamento dos dados pessoais afetados pelo incidente (ROPA);
o relatório de impacto à proteção de dados pessoais (RIPD)
o relatório de tratamento do incidente, estabelecendo prazo para o envio de informações.
A partir disso, vem à tona a implementação dos projetos de adequação à LGPD pelas organizações e a falsa sensação de que a elaboração de qualquer documento, sem contemplar a realidade fática organizacional, poderia auxiliar na gestão dos incidentes.
Backup não é suficiente
Na mesma senda, importante destacar que a mera existência de cópias digitais de segurança dos arquivos físicos (backup) não é suficiente para resguardar a confidencialidade, integridade e disponibilidade de dados pessoais, pois embora seja providência essencial para qualquer organização que invista em segurança da informação, sabe-se que há determinadas situações em que a existência do documento físico (original) será exigida. Portanto, no caso, estariam afetados os princípios da disponibilidade e da integridade dos dados e, assim, teriam sido violados dados pessoais.
Veja-se casos em que a apresentação de documentos originais é requerida pelo Judiciário para fins de perícia documental, por exemplo. E aqui reside a técnica: afinal, até que ponto a cópia digital (backup) de documentos físicos resguarda a sua integridade e disponibilidade? Se afetados os princípios da integridade e da disponibilidade, por consectário lógico, há incidente de segurança.
O direito é dinâmico e precisa ser forjado em debates plurais e policêntricos. São diversos os documentos, as políticas e os avisos de privacidade que compõem um sistema de proteção de dados e que podem auxiliar a gerência dos riscos envolvendo incidentes com dados pessoais de trabalhadores. Para elucidar, observe-se:
Mapeamento de Dados Pessoais: quando bem implementado, permite compreender o fluxo dos dados pessoais dos trabalhadores dentro da organização. Como é realizado o tratamento de dados, se há dados comuns ou sensíveis, com quem são compartilhados, se há armazenamento ou descarte;
Política de Privacidade e Proteção de Dados: impõe responsabilidades aos stakeholders envolvidos no tratamento de dados pessoais, orientando quais são as medidas técnicas e organizativas implementadas pela empresa e que devem ser seguidas por todos;
Política de Armazenamento e Descarte de Dados Pessoais: a partir de análise normativa, é possível delimitar o tempo de armazenamento e a possibilidade de descartar documentos da contratualidade de trabalho, conforme regras contidas na própria legislação trabalhista;
Acordo para Processamento de Dados Pessoais: documento a ser firmado entre controlador e operador de dados pessoais, com diversas regras a serem observadas, inclusive, em caso de eventual incidente de segurança. Empresas terceirizadas (operadoras de dados pessoais) devem assumir, contratualmente, o seu compromisso com a proteção dos dados pessoais;
Política de Comunicação e Gestão de Incidentes de Segurança: documento essencial para o enfrentamento da crise relacionada à perda de documentos em razão das enchentes no Rio Grande do Sul. Organização, metodologia e estratégia são fundamentais para o gerenciamento do incidente.
São diversos documentos contendo dados pessoais de trabalhadores, próprios ou terceirizados que percorrem os departamentos jurídico e de recursos humanos das empresas de forma cotidiana. Obviamente estes documentos portam dados de titulares pessoas físicas, ou seja, dados pessoais, que no Brasil foram erigidos à categoria de direitos fundamentais.
Episódios como as enchentes de maio no Rio Grande do Sul certamente desafiam gestores mas, sem muito esforço, é possível compreender que apenas a partir do diálogo entre a proteção de dados e o direito de trabalho se trilhará rumo à solução dos diversos casos complexos que se apresentarão, como decorrência das catástrofes climáticas (que lamentavelmente se tornarão cada dia mais frequentes).
É por isso que o direito não é uma simples ideia; mas sim, força viva. [8]
[4] Disponível em: RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 15, DE 24 DE ABRIL DE 2024 – RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 15, DE 24 DE ABRIL DE 2024 – DOU – Imprensa Nacional (in.gov.br)
[5] Veja-se o seguinte julgado, proferido pelo TRT da 3ª Região: “[…] E ainda que se entenda que, de fato, os cartões de ponto do reclamante foram extraviados, o ônus da prova continua a ser da empresa, que detém a responsabilidade pela guarda dos documentos. Nesse contexto, há que se analisar a prova oral. […]” (TRT-3 – ROT: 00108824820215030140, Relator: Lucilde D’Ajuda Lyra de Almeida, Sexta Turma).
[7] Art. 10. O controlador deverá manter o registro do incidente de segurança, inclusive daquele não comunicado à ANPD e aos titulares, pelo prazo mínimo de cinco anos, contado a partir da data do registro, exceto se constatadas obrigações adicionais que demandem maior prazo de manutenção. § 1º O registro do incidente deverá conter, no mínimo: I – a data de conhecimento do incidente; II – a descrição geral das circunstâncias em que o incidente ocorreu; III – a natureza e a categoria de dados afetados; IV – o número de titulares afetados; V – a avaliação do risco e os possíveis danos aos titulares; VI – as medidas de correção e mitigação dos efeitos do incidente, quando aplicável; VII – a forma e o conteúdo da comunicação, se o incidente tiver sido comunicado à ANPD e aos titulares; e VIII – os motivos da ausência de comunicação, quando for o caso. (Disponível em: RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 15, DE 24 DE ABRIL DE 2024 – RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 15, DE 24 DE ABRIL DE 2024 – DOU – Imprensa Nacional (in.gov.br)
[8] VON IHERING, Rudolf. A Luta pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2008.
é advogada, consultora, pós-doutora em Direito do Trabalho, professora pesquisadora no PPGD da PUCRS e sócia e diretora executiva do Escritório Denise Fincato Advogados.
é advogada, consultora, mestre em Direito pela PUCRS, especialista em Compliance pela Faculdade de Direito de Coimbra/Portugal, especialista convidada pelo GT nº 1 do Conselho Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e sócia e head de Compliance e Tecnologia no Escritório Denise Fincato Advogados.
Um dos desafios mais candentes de regulação dos sistemas de inteligência artificial (IA), atualmente em discussão no Senado (Projeto de Lei 2.338/2023), é integrar a proteção dos direitos autorais com este novo ambiente tecnológico. E as intensas paixões e rejeições que o assunto suscita, quando exacerbadas, inviabilizam a compreensão das dimensões necessárias à sua regulação adequada.
Desafios tecnológicos e regulatórios não são novidade para os direitos autorais. A proteção das expressões artísticas e culturais está diretamente ligada à inovação tecnológica, que tem possibilitado, ao longo dos tempos, diversas formas de expressar, difundir e utilizar criações, como mostra a história da fotografia, do cinema e da música, entre outros.
São justamente essas expressões humanas criativas, minimamente originais, e que traduzem a cultura de um tempo, que são protegidas pelos direitos autorais. A pessoa física autora ou artista e suas expressões são, por isso, a razão de ser desses direitos.
Obstáculos
O mais sensível problema da regulação desse tema é assegurar a continuidade da atividade cultural humana remunerada diante de uma tecnologia disruptiva como a IA, que produz textos, imagens e sons que emulam as criações artísticas. E o entrave principal é assegurar uma remuneração justa e equitativa para os efetivos autores e artistas, que enfrentam obstáculos de duas ordens: tecnológica e contratual.
O primeiro diz respeito aos impactos das IAs nas artes, principalmente a insegurança sobre a viabilidade econômica da atividade, o medo de substituição e concorrência direta com produtos de IA, e a insegurança de não saber, entender ou controlar os usos e efeitos sobre seu futuro profissional e pessoal. E o fato de não serem inéditos nem específicos das atividades criativas, em nada alivia a dor real que acompanha essa percepção. Inclusive, por exemplo, os tradutores, que são tão autores quanto os demais criadores, vivem hoje sob o impacto das traduções automatizadas na comunicação pessoal e profissional. Além disso, o surgimento de novos intermediários distancia ainda mais os criadores do público e da renda.
O segundo obstáculo diz respeito ao funcionamento da indústria cultural, e nada tem a ver com a tecnologia. Poucos titulares, geralmente empresas de grande porte, controlam a remuneração por direitos autorais de inúmeros artistas, que, por sua vez, não têm acesso aos recursos provenientes de suas obras. Neste contexto de dominação, as condições contratuais determinadas por estes agentes são particularmente desfavoráveis aos interesses e direitos dos criadores, artistas e dos produtores culturais independentes, sejam regionais ou locais.
Nova remuneração
E aqui o novo e o velho se encontram. Dentro da indústria cultural, o desequilíbrio contratual e a consequente baixa remuneração dos criadores são clássicos dos direitos autorais e anteriores às atuais IAs. A ascensão das empresas de tecnologia, como as plataformas, trouxe novos e poderosos intermediários que controlam os fluxos das obras e receitas no ambiente digital. E, neste cenário, os acordos e pagamentos ocorrem entre as matrizes dos grandes titulares de direitos autorais e empresas de tecnologia, invariavelmente situadas no Norte global.
Uma nova remuneração está proposta no PL 2.338/2023 sobre a disponibilização comercial de IAs que utilizem obras protegidas em seu treinamento. Contudo, problemas antigos são perpetuados sem garantias legais de que tal remuneração chegará aos criadores pessoas físicas.
As desigualdades na negociação dos contratos são obstáculos concretos, acentuadas pela concentração econômica nas mãos de pouquíssimos titulares e plataformas que detêm grandes bancos de dados com obras protegidas. E, neste cenário, os ganhos dos titulares de direitos autorais comumente não se revertem em remuneração para os autores e artistas. São barreiras praticamente intransponíveis, daí a importância de se estabelecer uma remuneração inafastável contratualmente e em benefício exclusivo dos autores e artistas, pessoas físicas, sob risco concreto de nada receberem.
O PL ainda pode e merece melhorias. É possível garantir uma remuneração obrigatória aos reais criadores, pelo menos no que tange aos usos de obras nas IAs, e assim evitar que os únicos beneficiados sejam os titulares de grandes catálogos e bancos de dados, controlados pela indústria cultural ou pelas plataformas, em prejuízo inclusive de eventuais novos concorrentes no mercado de IA, como já vimos acontecer com o streaming.
é presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais (IBDAutoral), professor e pesquisador da UFRJ/PPED e da UFRRJ/ITR, doutor em Direito Civil pela Uerj, consultor jurídico e advogado.
Comenta-se que técnicos que estão à frente da reforma tributária classificam os tributaristas entre aqueles do bem e do mal, sendo estes últimos os que estão alegadamente contra a reforma tributária. Se for verdadeiro, trata-se de um erro de perspectiva, pois, uma vez aprovada a EC 132, em dezembro de 2023, a trajetória se tornou definitiva e nos resta, a todos, aperfeiçoá-la.
Spacca
Este texto analisa o PLP 68, em trâmite na Câmara dos Deputados, com previsão de aprovação até 12 de junho de 2024, para que seja enviado ao Senado e concluída a fase legislativa ainda este ano. Trata-se de análise técnica, sem ser do bem ou do mal.
Constata-se existir uma espécie de bate-cabeças entre as diversas equipes governamentais que, de uma forma ou de outra, influem direta ou indiretamente nos aspectos tributários envolvidos, como será demonstrado.
A EC 132, em dezembro de 2023, criou no artigo 8º (cautela, pois se trata de norma não inserida no corpo da Constituição, constando apenas da referida EC) a Cesta Básica Nacional de Alimentos, que considerará a “diversidade regional e cultural da alimentação do País e garantirá a alimentação saudável e nutricionalmente adequada, em observância ao direito social à alimentação previsto no artigo 6º da Constituição Federal”, sendo a definição dos produtos que a comporão feita por lei complementar, com alíquotas de IBS e CBS reduzidas a zero.
Cesta básica
Em 5 de março deste ano, o presidente da República por meio do Decreto 11.932/24 (aqui) definiu cesta básica como o “conjunto de alimentos que busca garantir o direito humano à alimentação adequada e saudável, à saúde e ao bem-estar da população brasileira” (artigo 2º, I). Existe até mesmo um espaço federativo na norma para que Estados e Municípios possam orientar suas ações de acordo com as diretrizes fixadas (artigo 4º, §6º).
No dia posterior, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome editou a Portaria 966/24 (aqui), com uma relação, que denominou de “não exaustiva”, definindo os alimentos que deveriam compor tal Cesta Básica Nacional com dez grupos de alimentos: feijões (leguminosas); cereais; raízes e tubérculos; legumes e verduras; frutas; castanhas e nozes (oleaginosas); carnes e ovos; leites e queijos; açúcares, sal, óleo e gorduras; café, chá, mate e especiarias.
Ocorre que o PLP 68, em seu artigo 114 e Anexo I, traz uma lista esquelética para essa cesta básica, com apenas 15 alimentos, com forte dissonância em face daquela mencionada no Decreto 11.932, de março/24. Nela não consta, por exemplo, nenhuma carne ou ovos, e, de frutas, apenas cocos. De fato, os 10 grupos de alimentos previstos no Decreto ficaram reduzidos a apenas 15 produtos/alimentos no PLP 68.
Na justificativa oficial para essa escolha magérrima (Exposição de Motivos do PLP 68, itens 104 a 109) são apresentados 03 argumentos: (1) “priorização dos alimentos in natura ou minimamente processados e dos ingredientes culinários”; (2) “a priorização de alimentos majoritariamente consumidos pelos mais pobres”, e (3) “assegurar que os alimentos da atual Cesta Básica do PIS/Cofins tenham sua tributação reduzida, com exceção daqueles de consumo muito concentrado entre os mais ricos”. O texto resume o intuito oficial declarado: “distribuir o peso da carga tributária de maneira mais justa e, ao mesmo tempo, induzir boas práticas de alimentação saudável”.
Ora, se a ideia central é a de “induzir boas práticas de alimentação saudável”, a lista não deveria ser ampliada? Não conheço nada sobre nutrição, mas a ausência de proteínas essenciais, como carnes e ovos me parece estranha. E ter apenas cocos como frutas me parece insuficiente. Existe até mesmo um Ministério da Pesca e Aquicultura (aqui) no Brasil, e não consta nenhum peixe nessa relação fiscal favorecida. Parece ter prevalecido na lista tributária apenas os produtos que os “mais pobres” comem (argumento 2), e não o propósito de “induzir boas práticas de alimentação saudável” (resumo do argumento).
O ponto central é que há uma discrepância entre o Decreto 11.932/24 e o PLP 68, que deve ser revista, pois, tal como está, resta incongruente e incoerente.
Como solucionar esta questão?
No âmbito da política legislativa isso deve ser ajustado pelo Congresso durante o trâmite do PLP 68. Espera-se que os parlamentares não se intimidem com as ameaças de aumento da alíquota do CBS+IBS, pois, enquanto não for apresentada a memória de cálculo oficial pela qual se chegou ao alegado percentual de 27,5%, esse será apenas um chute oficial.
Posteriormente poderá ocorrer a discussão judicial perante o STF, pois não está sendo cumprida a previsão do artigo 8º da EC 132, de que a Cesta Básica Nacional de Alimentos considerará “a diversidade regional e cultural da alimentação do País”, o que simplesmente foi esquecido pelo PLP 68, configurando-se, prima facie, como uma flagrante inconstitucionalidade.
é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.