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Pacheco devolve parte da MP da Compensação ao governo Lula

Pacheco devolve parte da MP da Compensação ao governo Lula

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), devolveu parte da MP da Compensação ao governo Lula (PT) nesta terça-feira (11). Os trechos devolvidos, segundo Pacheco, são inconstitucionais.

A decisão veio depois de pressão do setor produtivo e dos próprios deputados e senadores. Como presidente do Congresso, Pacheco tem a prerrogativa de devolver uma MP ou parte dela caso julgue que os trechos vão contra a Constituição. Pacheco já havia indicado a Lula que poderia tomar essa decisão.

“Com absoluto respeito a prerrogativa do Poder Executivo, de sua excelência o presidente da República na edição de medidas provisórias, o que se observe em relação a essa medida provisória no que toca a parte das compensações de ressarcimento de regras relativas a isso é o descumprimento […] da Constituição Federal, o que impõe a esta presidência do Congresso Nacional impugnar esta matéria com a devolução desses dispositivos a presidência da República”, disse Pacheco durante a sessão do Senado desta terça-feira (11).

MP 1.227 de 2024 foi editada pelo governo Lula na semana passada como uma forma de gerar receita para pagar a desoneração da folha de 17 setores da economia e de municípios, medida defendida pelo Congresso. Pacheco indicou que o diálogo com o governo petista e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para uma solução para a desoneração continua.

Entre as formas que poderiam ser utilizadas para compensar os gastos do Poder Público com a desoneração, líderes citam a repatriação de ativos, um projeto que está parado na Câmara desde 2023. As possibilidades, no entanto, ainda estão sendo estudadas.

A MP 1227 limitava o uso de crédito do PIS e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) derivados do pagamento desses tributos por empresas. Com a medida, o governo espera arrecadar até R$ 29,2 bilhões, o que pagaria os . A desoneração da folha custará R$ 26,3 bilhões em 2024, sendo R$ 15,8 bilhões em relação às empresas e R$ 10,5 bilhões em relação aos municípios.

Alvo de críticas de parlamentares durante a última semana, a MP se mantém somente com as outras partes, sem incluir todos os trechos relacionados ao PIS/Cofins. A decisão de Pacheco foi comemorada por parlamentares, principalmente os ligados ao agronegócio e os que fazem parte da oposição.

AUTORIA

Gabriella Soares

GABRIELLA SOARES Jornalista formada pela Unesp, com experiência na cobertura de política e economia desde 2019. Já passou pelas áreas de edição e reportagem. Trabalhou no Poder360 e foi trainee da Folha de S.Paulo.

Pacheco devolve parte da MP da Compensação ao governo Lula

Deputado associa nordestinos a galinhas que vivem de “migalhas” e vira alvo do Conselho de Ética

O deputado Túlio Gadêlha (Rede-PE) e a Rede Sustentabilidade ingressaram nesta terça-feira (11), no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, com pedido de cassação do mandato do deputado Gustavo Gayer (PL-GO) por ato de xenofobia. De acordo com a representação, Gayer quebrou o decoro parlamentar ao associar o povo nordestino a “galinhas” ao dizer que se alimentam de “migalhas” do governo.

A declaração viralizou no domingo (9), mas ocorreu em 24 de maio durante um evento sobre os reflexos do projeto de lei complementar que institui o Sistema Nacional de Educação (SNE). “Essa intolerância e ódio não condizem com a postura de um parlamentar, que mais uma vez ataca um povo trabalhador, essencial para a independência do Brasil e manutenção da democracia. Ações assim não podem ser toleradas pelo Congresso Nacional”, ressaltou Gadêlha. Também assinam a representação os porta-vozes da Rede Sustentabilidade, Heloísa Helena e Wesley Diógenes.

Na palestra de 24 de maio, Gayer narra uma parábola difundida em perfis conservadores e de direita atribuída ao líder comunista Josef Stalin na União Soviética. Segundo a parábola, Stalin depena uma galinha e, mesmo assim, ela o segue depois que o comunista lhe oferece farelos. O deputado afirma que esquerdistas “fizeram com o Nordeste o que Stalin fez com a galinha”, se referindo a programas de transferência de renda.

“Essa história representa o que a esquerda faz com o Brasil, e principalmente o que a esquerda faz com o Nordeste. Nordeste é a terra mais linda do Brasil. É o povo mais generoso, trabalhador, maravilhoso, não é à toa que todo mundo adora vir pra cá. Como que eles conseguiram colocar essa população maravilhosa nesse calabouço ideológico? É só para olhar o Ideb da Bahia, é só olhar o Ideb do Nordeste, o nível de alfabetização daqui, do Maranhão, dos estados do Nordeste. Eles fizeram para o Nordeste o que Stalin fez com a galinha. “Ah, ele me dá cesta básica”, “ele me deu R$ 200, o governo me deu R$ 300″. Estão dando migalhas para uma população cada vez mais depenada!”, afirmou.

Esta é a segunda vez que a Rede aciona o Conselho de Ética contra Gayer por declarações dele relacionadas a nordestinos. No ano passado, Gayer disse que “nordestinos perderam a capacidade pensar”. O partido da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, pediu a cassação do mandato do parlamentar por ataque aos nordestinos. A declaração de Gayer foi feita durante um podcast, o Comérciocast, em que o parlamentar também classificou a população do Nordeste como “sem instrução e sem educação”.

Ainda no ano passado, ele virou alvo da Procuradoria-Geral da República por afirmar que democracias não prosperam na África por conta da “capacidade cognitiva” da população. “Democracia não prospera na África porque, para você ter uma democracia, você precisa ter um mínimo de capacidade cognitiva de entender entre o bom e o ruim, o certo e o errado”, disse.“Tentaram fazer democracia na África várias vezes. O que acontece? Um ditador toma tudo, toma conta de tudo, e o povo [aplaude].

CONGRESSO EM FOCO

Pacheco devolve parte da MP da Compensação ao governo Lula

Reflexão sobre o desempenho do governo Lula 3 no Congresso

Comparar o desempenho do governo Lula 3 no Congresso Nacional com seus 2 mandatos anteriores, sem considerar o contexto político, tem sido o esporte preferido de alguns analistas políticos, de setores da mídia comercial e do mercado. Essas comparações permitem avaliação negativa do governo sem expor o viés de oposição e torcida contra da maioria desses atores.

Antônio Augusto de Queiroz*

As políticas econômicas, regulatórias e, sobretudo, sociais do governo, que requerem recursos orçamentários para custeá-las, incomodam profundamente o establishment do País. Como resultado, muitos preferem jogar lenha na fogueira dos fundamentalistas e da extrema-direita antidemocrática do que fazer crítica contextualizada ao governo.

A maioria das avaliações sobre derrotas do governo no Congresso Nacional desconsidera que essas ocorrem no campo dos costumes, da religião e do desmame de privilégios a setores do mercado e do Parlamento. Em relação aos temas de costume, como direitos reprodutivos, educação sexual e diversidade de gênero, a predominância conservadora no Congresso tem se mostrado desafio constante. No entanto, o governo tem conseguido evitar retrocessos significativos e, em alguns casos, avançar em políticas inclusivas e progressistas.

Diversos setores da sociedade, por razões distintas, são contrários a alguns pontos do programa de governo, incluindo setores de mercado. Esses setores, por meio do populismo digital, criam bolhas para disseminar fake news com o propósito de dominar corações e mentes, especialmente de pessoas com baixa cognitividade, que são facilmente manipuláveis com falsas acusações de que o governo é contra a liberdade, a propriedade e a família, espalhando o medo entre os incautos.

Ignoram que os 2 governos anteriores ao de Lula, para sobreviver politicamente, adotaram as agendas do mercado e entregaram o Orçamento Público às forças conservadoras do Parlamento, que passaram a constituir sua base de apoio, e que o presidente Lula também teve que conviver com aliados do governo anterior e defensores da agenda bolsonarista em postos-chave no Poder Executivo, como o Banco Central do Brasil e agências reguladoras, todos com mandato. Alguns desses aliados boicotaram claramente as políticas governamentais, evitando que a economia voltasse a crescer e gerar emprego e renda em velocidade maior.

Poucos reconhecem que, apesar da correlação de forças desfavorável no Parlamento, não houve derrotas em políticas públicas estruturais na economia e nas questões fiscais. O PIB, o emprego e a renda cresceram, enquanto a inflação e os juros caíram nestes 18 meses do governo Lula.

Esquecem, propositadamente, que o presidente Lula foi eleito numa eleição polarizada contra candidato que disputou no exercício do mandato, usando fake news e abusando dos recursos e da máquina pública. O então presidente perdeu a eleição por pequena margem de votos, mas a máquina bolsonarista, os recursos do chamado “orçamento secreto” e seu discurso radical, apoiado no populismo digital, elegeram grandes bancadas conservadoras no Congresso, inclusive em partidos como o PP, Republicanos, União Brasil e PSD.

É evidente que a composição do atual Congresso é majoritariamente conservadora e contrária à agenda prioritária do governo e da esquerda. Há presença esmagadora dessa visão de mundo em muitos partidos, inclusive alguns com ministérios no governo Lula, como o PP, Republicanos e União Brasil

Num cenário, em que a sociedade é polarizada e fragmentada, e o Congresso Nacional possui mais de uma centena de parlamentares focados em luta política, espalhando fake news em tempo integral e apontando problemas sem apresentar soluções, não há coordenação política capaz de obter vitórias nesses temas mencionados, mesmo que se entregasse todos os ministérios e recursos do Orçamento aos partidos conservadores.

O governo reservou para seu partido todos os cargos do centro de governo — Casa Civil, Secretaria de Relações Institucionais e Secretaria de Comunicação — e todas as lideranças nas casas do Congresso Nacional. Ceder espaço para outros partidos aliados, como feito em outros mandatos, não seria prudente, especialmente colocando aliados de conveniência e potenciais adversários em postos-chave no governo.

O presidente Lula está certo em não ceder às pressões da mídia e do mercado por mais concessões a esses partidos em troca de apoio nesses temas. Mesmo cedendo tudo, não mudaria o pensamento e a visão de mundo da maioria dos parlamentares desses partidos. Se houver necessidade de mudanças, que sejam após a eleição municipal e a sucessão nas casas do Legislativo, para acomodar lideranças políticas que realmente exerçam influência no Congresso, como os futuros ex-presidentes das casas, desde que ajam em harmonia com o governo durante o processo sucessório.

Em 2026, se os indicadores econômicos — inflação, juros, emprego, renda, PIB, etc. —, continuarem positivos para o governo, a tendência é que faça grandes bancadas entre os partidos aliados programáticos, como fez o bolsonarismo na eleição de 2022.

Portanto, não ceder às pressões da mídia e do mercado por mudanças neste momento parece prudente, pois o objetivo real dessas pressões é colocar adversários da agenda governamental no centro do governo.

(*) Jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap. É membro do Cdess (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável) da Presidência da República – Conselhão. Publicado orginalmente na revista eletrônica Teoria&Debate.

DIAP

https://diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/91855-reflexao-sobre-o-desempenho-do-governo-lula-3-no-congresso

Pacheco devolve parte da MP da Compensação ao governo Lula

Manipulação, truculência e populismo: táticas de sobrevivência da extrema-direita

A extrema-direita brasileira, para sobreviver politicamente, precisa de álibi que disfarce a verdadeira agenda e os interesses que representa. Esse álibi é construído mediante estratégia que consiste em acusar a esquerda e os setores progressistas de serem os responsáveis pelas mazelas que afetam a população.

Antônio Augusto De Queiroz*

A partir dessa premissa, utilizam o populismo digital, disseminando fake news e ameaças, inclusive físicas, para deslegitimar os agentes políticos progressistas, além de questionar a legitimidade do sistema político e suas instituições. Essa abordagem visa ganhar a simpatia de pessoas com menor acesso à educação e a informações críticas, muitas vezes apelando para sentimentos e emoções ao invés de fatos.

A estratégia da extrema-direita não se limita à manipulação da opinião pública entre os menos informados. Essa também se apoia em segmentos da classe média e do mercado, que, por razões distintas, encontram motivos para se aliar a essa corrente política.

A classe média, muitas vezes guiada por valores moralistas e conservadores, vê na agenda progressista ameaça aos seus princípios e modo de vida. Já os setores do mercado se opõem à esquerda e aos governos progressistas por razões econômicas.

Estes setores, nos governos ditos “liberais” e os de extrema-direita, frequentemente se beneficiam de privilégios como a ausência de fiscalização trabalhista, ambiental e tributária, além de renúncias e incentivos fiscais desnecessários, que são questionados e combatidos por governos de orientação progressista.

Assim, a extrema-direita brasileira se fortalece ao formar coalizão que inclui tanto pessoas de baixa cognição, influenciadas pelo populismo digital e fake news, quanto segmentos da classe média e do mercado, movidos por razões moralistas e econômicas. Juntos, esses grupos criam frente unificada contra os governos progressistas, dificultando a implementação de políticas que visem reduzir desigualdades e promover justiça social.

Essa dinâmica é sustentada por constante campanha de desinformação, em que a verdade é frequentemente distorcida para servir aos interesses da extrema-direita. Embora destinada a trazer benefícios aos líderes desses movimentos, a narrativa criada busca pintar a esquerda e os progressistas como inimigos do povo, desviando a atenção das verdadeiras causas das mazelas sociais e econômicas do País.

Em ambiente político polarizado e marcado pela desconfiança nas instituições, essa tática se mostra eficaz para manter a base de apoio da extrema-direita mobilizada e engajada, perpetuando um ciclo de desinformação e resistência às mudanças progressistas.

A mistura de política e religião tem sido utilizada pela extrema-direita no mundo ocidental para evitar políticas públicas em favor das minorias sociais e dos menos favorecidos. Eles criam ambiente favorável à sucessão desse tipo de pensamento, sempre em nome da liberdade, da família, da propriedade e da moralidade e dos chamados bons costumes. Esse álibi apela aos instintos primitivos em lugar de valorizar avaliações baseadas em evidências e, portanto, em racionalidade.

Esse uso instrumental da religião fortalece a narrativa de que os inimigos são os progressistas, que são pintados como ameaças à ordem moral e aos valores tradicionais. É estratégia que, se não for contida, pode levar a erosão contínua das bases democráticas e ao fortalecimento de regimes autoritários.

Além disso, o engajamento da extrema-direita também proporciona lucro para seus operadores. Os principais influenciadores e líderes desse tipo pregação são financiados e monetizam seus sites com anúncios, publicidade direta, solicitam doações — quem não se lembra dos PIX de Bolsonaro? —, recebem por “likes” e vendem produtos e serviços destinados a reforçar a defesa do ideário da extrema-direita. Virou grande negócio.

Foi esse tipo de estratégia que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Esse mesmo modus operandi está em curso no terceiro governo Lula. Ou setores da classe média, o mercado e a mídia agem racionalmente, ou essas forças voltam ao governo e desta vez conseguem implementar a ditadura que Bolsonaro não conseguiu estabelecer devido a erros que não irão repetir, instaurando ditadura duradoura, com repressão das liberdades, inclusive de imprensa e de mercado, além de massacre dos mais pobres, das minorias sociais e sufocamento da classe média.

A polarização política e a desinformação constante amplificam o risco, e promovem cenário, em que o radicalismo ganha terreno. É imperativo que a sociedade civil se una em defesa dos princípios democráticos, garantindo ambiente de diálogo e resistência às ameaças autoritárias.

Por fim, a selvageria dessa gente pode ser medida pela tentativa de golpe de Estado, em 8 de janeiro de 2023, pelas agressões verbais nas redes sociais e pela falta de decoro no exercício de mandato no Parlamento, onde promovem gritaria e tumultuam o funcionamento das comissões e ameaçam de agressão física os adversários, inclusive autoridades do Poder Executivo e do Judiciário.

Ou põem um freio nisso ou aqueles que indiretamente apoiam essas ações acabarão por legitimar um cenário de autoritarismo e repressão.

Diante desse cenário alarmante, é crucial que a sociedade brasileira se conscientize dos mecanismos de manipulação e desinformação utilizados pela extrema-direita. A valorização da educação crítica, o fortalecimento das instituições democráticas e a promoção de diálogo baseado em fatos são essenciais para combater a polarização e o ressurgimento de ideologias autoritárias.

Só por meio de esforço coletivo, que inclui todos os setores da sociedade, será possível construir futuro mais justo e equitativo, em que a desinformação e o ressentimento não sejam as forças motrizes da política nacional.

E o primeiro passo seria a regulamentação do uso das redes sociais, com punição severa à produção e disseminação de fake news, assim como estabelecer regras de convívio civilizado nos ambientes coletivos onde essa gente tem presença institucional.

(*) Jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo (FGV). Ex-diretor de documentação do Diap, idealizador e coordenador da publicação “Cabeças” do Congresso. É autor dos livros Por dentro do processo decisório – como se fazem as leis e Por dentro do governo – como funciona a máquina pública.

DIAP

https://diap.org.br/index.php/noticias/artigos/91858-manipulacao-truculencia-e-populismo-tatica-de-sobrevivencia-da-extrema-direita

Pacheco devolve parte da MP da Compensação ao governo Lula

“A Argentina vai se tornar o laboratório social do futuro”. Entrevista com Robert Boyer

As ramificações da economia, o poder de Wall Street, a ideia de financeirização e o estado da economia argentina são alguns dos temas abordados pelo economista francês (1943), nascido em Nice. Pensador e economista global, é também um conhecedor do cenário argentino.

Robert Boyer Pesquisador associado do Institut des Amériques, foi diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica e de estudos da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, sendo um dos fundadores da chamada escola da regulação, cuja abordagem teve grande influência em todo o mundo, dentro das tradições que se opõem às visões ortodoxas da economia.

Entre outros, é autor dos livros A teoria da regulação: uma análise crítica, Os modelos produtivos (com Michel Freyssenet) e A antropologia econômica de Pierre Bourdieu.

A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 07-06-2024. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Estamos vivendo um momento especial na economia mundial? Como este momento pode ser chamado ou caracterizado?

Estamos vendo a fragmentação da economia mundial e se corre o risco de sua reorganização em três zonas geográficas: América, Ásia e, no meio, a Europa com a África como continente associado. Não estamos vendo apenas a globalização, mas a formação de entidades regionais. A prova está nos acordos de livre comércio assinados pela Oceania e a China, que se tornaram o principal bloco de livre comércio, além da Europa. Sendo assim, a grande mudança não é tanto o colapso das relações internacionais, o grande perigo é a fragmentação completa.

O projeto chinês consiste em organizar as atividades financeiras dentro da zona do Pacífico. Consequentemente, mudaria completamente o papel do dólar. A segunda consequência é a crise das organizações multinacionais: a Organização Mundial do Comércio não funciona, a ONU é incapaz de deter o conflito entre Israel e a Palestina… vivemos o declínio dos tratados. Em alguns casos, sofremos de egoísmo nacional, o problema é que se converte em egoísmo regional. É um período de grandes mudanças.

Qual é a dimensão atual da “financeirização”, esse seu conceito que se refere ao poder estruturador que o capital financeiro – bancos, instituições de crédito, fundos de investimento, entre outros – adquiriu nas economias ocidentais?

É muito desigual. Nos Estados Unidos, o crescimento provém do aumento da riqueza financeira dos lares. A financeirização é o fenômeno em que o meu padrão de vida e o meu consumo dependem da minha riqueza. Podemos mostrar que quando o mercado de ações está crescendo bem, para países como a Argentina o resultado final é a dependência da afluência de capital.

Sendo assim, por um lado, existe a dimensão virtuosa das finanças, em que todos os países, todos os ricos do mundo, querem investir os seus dólares estadunidenses, e há o outro lado, que como resultado – os países dependentes, como os da América Latina – são forçados a depender de entradas de capital que, finalmente, desestabilizam seus modelos. Se acontece uma crise nos Estados Unidos, desestabiliza as atuais entradas em massa de capital. Tudo depende da saúde dos Estados Unidos. Então, está claro que a financeirização criou um grande problema.

Que outras consequências isso traz?

As desigualdades entre os indivíduos. Thomas Piketty argumenta que as desigualdades surgem quando a renda de alguns cresce junto com o mercado de ações, enquanto um empregado recebe muito pouco salário. O segundo fator são as profundas desigualdades dentro da sociedade, que se manifestam em todas as sociedades. É um fenômeno em massa, mas muito assimétrico. As desigualdades financeiras nos Estados Unidos têm significados absolutamente distintos. A diferença é que nos Estados Unidos podem financiar os seus enormes déficits porque todo o capital está relacionado com esse país.

Qual é a dimensão do poder de Wall Street para além dos Estados Unidos?

Defende o benefício da extraterritorialização de qualquer companhia no mundo. Wall Street capitaliza o fato de os Estados Unidos intervirem em quase todas as transações que sejam feitas com dólares em todo o mundo. Isto explica a tentativa da China e da Rússia em criar um sistema totalmente oposto, independente, para evitar esta dependência. Wall Street continua tendo um poder enorme e a longo prazo.

E que lugar a Argentina ocupa neste mapa?

As finanças são muito poderosas. Comparativamente, a Argentina é um país novo. A China está a cerca de trinta séculos de distância. Tenho a impressão de que o argentino, em cada crise, pergunta-se: sou italiano, sou espanhol? Impressiona-me muito que em crises como a de 2001 crescem as filas em torno das embaixadas italiana e espanhola para retornar à Europa. E depois o segundo elemento: as poupanças dos argentinos que estão no exterior…

Último ponto: há muito pouco crédito. É fácil imaginar que quando existem empresários dinâmicos, precisam de crédito. Contudo, há tão pouca confiança na estabilidade monetária que as empresas que investem são muito poucas e há poucos mecanismos que dão crédito para acumular capital: há uma crise monumental.

Como avalia as medidas econômicas tomadas nos últimos meses, na Argentina?

O padrão de vida médio argentino, comparado ao dos estadunidenses, tem um declínio no consumo. O corte de 35% na renda dos aposentados e a explosão no preço do transporte público são uma grande pressão sobre o nível de vida.

A segunda originalidade deste ajuste brutal é que a escola austríaca propõe um estado minimalista pró-capitalismo e os impostos que penalizam a acumulação são destruídos. Macron e outros líderes também fizeram um ajuste, mas quando se antecipa a violência como parte da terapia, sabe-se que isto não vai funcionar.

Lamento dizer que a Argentina se tornará o laboratório social dos próximos anos. Enquanto isso, retorna o estado na Europa, fala-se de política, portanto, a volta do estado é um momento em que todos se tornam protecionistas, precisamos de infraestruturas, escolas, estabilização.

O estado está voltando na Europa?

Para Milei, existe socialismo nos Estados Unidos, algo que vem da sua adesão à visão austríaca e isso é estranho porque, hoje, há muito poucos economistas conservadores. É como um dinossauro que ressuscitou. Na Europa, há economistas conservadores, mas não da escola austríaca, o que também é uma grande novidade. Sem um banco central, este sistema não passará, é um pouco arrogante pensar assim.

Parece-me uma extraordinária demonstração de autoconfiança dar lições de capitalismo aos principais empresários do mundo em Davos. Vejo isto como algo muito engraçado. Você precisa de uma participação pública. Primeiro, produz-se acumulação, depois, o estado tem que tentar redistribuir. Por fim, vem a escolaridade gratuita obrigatória, os investimentos em ferrovias, as infraestruturas que, por exemplo, contêm as nuvens na Internet, por exemplo. Até mesmo as empresas muito grandes não dispõem de recursos para realizar a pesquisa fundamental.

Portanto, há toda uma série de razões pelas quais o estado está gradualmente construindo o capital. Na Dinamarca, o estado realiza um controle diário nos municípios sobre a qualidade dos serviços, a educação, as creches para as crianças, a saúde gratuita e assim por diante. Há também o partido-Estado na China, totalmente dirigido pelo Partido Comunista.

Lá, os empresários e intelectuais mais talentosos formam a elite, é um estado de desenvolvimento estatista como nunca houve antes. Na China tudo está ligado, mais uma vez, para acumular riqueza e poder. Ao contrário dos estadunidenses, esta forma de estado é relativamente eficiente. A industrialização da China acontece três vezes mais rápido do que a da Inglaterra em seu momento.

Hoje, qual é o papel do FMI? Qual é a sua legitimidade e peso?

Quando o FMI deu 44 bilhões de dólares da última vez à Argentina, eu disse a mim mesmo que não se importa que a Argentina não possa pagá-lo, então, deu um pouco mais de dinheiro para que o reembolsasse. Deu-lhes mais por razões geopolíticas, acredito. Tenho a impressão de que já não têm o poder que costumam ter, estão um pouco perdidos porque não querem criar uma crise financeira global. Contudo, como um soldado, o FMI tem de restaurar a estabilidade financeira. Tanto a Organização Mundial do Comércio como o Fundo Monetário Internacional estão sofrendo uma espécie de decadência interna.

A China está no processo de tentar criar suas próprias instituições a nível regional. Os preços são fixados em dólares e o volume comercial é vinculado ao dinamismo mundial. Paradoxalmente, a dependência da Argentina em relação ao resto do mundo aumentará. O melhor teria sido reconstituir uma base nacional de consumo antiga e sustentável, uma pequena base industrial que permitisse, em caso de crise mundial, compensar a perda de exploração devido ao dinamismo interno e com a abertura da indústria, os produtores entenderam que não vão mais produzir leite e vão ter acesso a ele no Uruguai.

Considera que hoje a economia volta a ser mais importante do que a política?

É muito mais importante olhar para a política. Nos Estados Unidos, defendem-se politicamente, defendem a sociedade. A Europa antepôs a economia à política. Hoje, todo o esforço está concentrado na defesa individual, na política industrial comum, em impulsionar a economia. Então, esta é a fragilidade da Europa: antepôs a economia à política.

Aprendemos que todo o esforço está concentrado na defesa individual da política industrial. Esta é a fragilidade da Europa: antepôs a economia à política. Na minha opinião, é um grande retorno à geopolítica, como se defender em um mundo que está em processo de divisão, e a economia se converte, então, no serviço da geopolítica.

Quantos governos “pensam verde”? Que países estão realmente lutando contra a mudança climática em sua abordagem econômica?

Na França, por exemplo, queriam impor um imposto sobre a gasolina, o que aumentou brutalmente os preços marginais, o que significa que os pequenos artesãos, as famílias etc. caíram abaixo do limiar de subsistência. A grande dificuldade é que triunfar sobre a ecologia significa que temos de arbitrar o público e alcançar a estabilização do clima em nível mundial.

A grande dificuldade é a luta contra o bem público, a habitabilidade da terra, isso significa que temos que arbitrar contra a consciência positiva nos países ricos. É factível nos Países Baixos, mas não em todas as partes. Então, vamos lutar racionalmente contra a mudança climática em um momento bastante dramático.

IHU-UNISINOS

https://www.ihu.unisinos.br/640145-a-argentina-vai-se-tornar-o-laboratorio-social-do-futuro-entrevista-com-robert-boyer

Pacheco devolve parte da MP da Compensação ao governo Lula

Esquerda além da resistência: não basta enfrentar ameaças fascistas; é preciso voltar a se orientar para o futuro. Entrevista especial com Rodrigo Santaella

“A agência coletiva parece relegada ao segundo plano em nome de prognósticos e diagnósticos acerca do desenvolvimento tecnológico propriamente dito”, constata o cientista político

Se, por um lado, o aceleracionismo de esquerda tem riscos e limites ao depositar sua confiança no desenvolvimento tecnológico para garantir avanços e transformações sociais, por outro, esta corrente teórico-política tem o “mérito” de “chacoalhar” a esquerda tradicional, “resignada, acomodada, ordeira, ou seja, uma esquerda que se adequou à ordem e desistiu de qualquer tipo de imaginação política e, no limite, concebeu a ideia de que a sua única tarefa possível é administrar o capitalismo”, resume Rodrigo Santaella na apresentação das principais ideias que marcam o pensamento conhecido como aceleracionismo de esquerda.

Na videoconferência intitulada O problema do aceleracionismo de esquerda, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o pesquisador comenta os desafios da esquerda no campo da imaginação política. “Uma das palavras mais fortes no campo da esquerda é ‘resistência’ e dificilmente conseguimos passar da resistência a algum outro tipo de produção de novidade e de alternativa. Para enfrentar as ameaças fascistas, não basta defender as instituições e os modos de vida liberal. Para enfrentar o fascismo, é preciso oferecer um projeto alternativo diferente, imaginar um futuro diferente e oferecer essa imaginação como projeto. Ou seja, voltar a se orientar para o futuro e trazer isso de forma firme para o debate público e político”, enfatiza.

Segundo ele, por um lado, a esquerda tradicional padece da não compreensão do desenvolvimento capitalista tecnológico e, por outro, os aceleracionistas são reféns do determinismo tecnológico. “O determinismo tecnológico, que é sintoma de uma visão equivocada sobre tecnologia, é o principal problema do aceleracionismo de esquerda e de qualquer aceleracionismo. O que parece faltar aí é uma reflexão mais detida sobre a relação entre tecnologia e sociedade. O elemento básico dessa discussão, que não traz nenhuma novidade, é o contrário: as tecnologias não são neutras”. A evidência disso, pontua, é que “o desenvolvimento tecnológico que tivemos até aqui foi orientado pelo e para o capitalismo”.

A seguir, publicamos a conferência de Rodrigo Santaella no formato de entrevista.

Rodrigo Santaella (Foto: Reprodução Jangada Online)

Rodrigo Santaella é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (Universidade Federal do Ceará). Realizou, entre 2007 e 2008, estudos durante um ano na Universidad Nacional de La Plata, Argentina, focados principalmente em história social e política da América Latina. Atualmente, realiza pesquisa pós-doutoral na LUT University, em Lappeenranta, Finlândia, com projetos relacionados à planificação econômica, tecnologia e transição digital verde. É membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas das Universidade Estadual do Ceará.

Confira a entrevista.

IHU – O que é o aceleracionismo de esquerda?

Rodrigo Santaella – O aceleracionismo de esquerda é uma corrente de pensamento e intervenção política que compreende que, em vez de frear ou resistir aos avanços tecnológicos do capitalismo, é necessário, ao contrário, acelerá-los. O aceleracionismo de esquerda defende a libertação das forças construtivas tecnológicas geradas pelo capitalismo do próprio capital, como se o capital estivesse impedindo-as de atingir seu ápice, de colocá-las a serviço do bem-estar das pessoas. É como se o capital estivesse produzindo condições tecnológicas para que todos vivessem outro tipo de vida, mas a própria dinâmica do capital proporciona amarras que seguram essas condições. Os aceleracionistas de esquerda querem acelerar ao máximo o desenvolvimento tecnológico para que ele atravesse o próprio capitalismo por dentro, chegando a outro tipo de sociedade.

IHU – Quais são as origens deste pensamento?

Rodrigo Santaella – As origens filosóficas e teóricas do aceleracionismo estão em maio de 68, no pós-estruturalismo francês que, a partir do espírito do tempo contra a burocratização, estava muito preocupado com a liberdade, a libido e o desejo. Isto é, em construir um sujeito desejante, que não fosse preso a amarras. Era uma esquerda libertária, desejante, contestadora do formato rígido dos partidos, dos sindicatos estabelecidos e crítica do que estava se tornando a União Soviética.

DeleuzeGuattari e Lyotard estavam discutindo, em 1974, que o problema do capitalismo não é que ele desterritorialize. Ao contrário, é que ele não faz isso de modo suficiente. É preciso desteritorializar ainda mais, ou seja, atravessar o capitalismo e produzir ainda mais desejo e potência. A ideia de acelerar está presente no pensamento do estruturalismo francês e pode ser considerada a primeira onda do que é o aceleracionismo de esquerda. De certa forma, isso tem a ver com uma herança marxista ou com uma heresia marxista. Marx pensa o capitalismo como produzindo condições materiais melhores do que os modos de produção anteriores e criando, com isso, condições para sua própria superação. Mas ele é mais complexo e nuançado do que isso em relação às tendências da tecnologia.

Os aceleracionistas de esquerda querem acelerar ao máximo o desenvolvimento tecnológico para que ele atravesse o próprio capitalismo por dentro, chegando a outro tipo de sociedade – Rodrigo Santaella

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Podemos pensar em três linhas de pensamento diferentes do Marx relacionadas à maquinaria e à tecnologia. A primeira e a mais importante é a ideia de que as máquinas vão sendo cada vez mais importantes no processo produtivo e o trabalho humano vai perdendo importância. Isso faz com que haja uma crise na produção de valor na medida em que só o trabalho humano produz valor. Então a maquinaria contribui para a crise do valor e para a acentuação das contradições do capitalismo.

As duas outras linhas menores têm como pressuposto que as máquinas podem se transformar, sendo autônomas dos trabalhadores. De um lado, está a ideia de que o capital se desenvolve tanto que passa a funcionar de forma quase automatizada e os trabalhadores vão se tornando supérfluos. Essa situação parece uma vitória do capital em relação ao trabalho, mas, ao mesmo tempo, é uma “vitória de Pirro” porque, quando o capital se desfaz do trabalho, ele não consegue mais produzir valor. A automação subverteria o capital, abolindo o trabalho e o valor e isso geraria uma crise terminal do capitalismo. Os aceleracionistas usam desta vertente do Marx.

Por outro lado, Marx tem uma reflexão em que as máquinas também se tornam autônomas dos trabalhadores, mas isso gera uma dominação total das máquinas sobre os trabalhadores e um processo no qual as máquinas e o capital, de uma forma quase distópica, se emancipam do status do trabalho. Não é o trabalho que se emancipa do capital, mas o capital que parece se emancipar do trabalho. É uma vertente mais pessimista.

IHU – O que é e como surge o aceleracionismo de direita?

Rodrigo Santaella – Depois da primeira onda pós-68, surgiu a segunda onda do aceleracionismo na Unidade de Pesquisa em Cultura Cibernética, na Universidade de Warwick, no Reino Unido. Esse grupo foi liderado por Nick Land e Sadie Plant. Para Land, o capitalismo é uma máquina gigantesca de fluxos de produção de vida, constância e processos que flui de forma que não controlamos. Nesse sentido, os seres humanos não são mais importantes que as máquinas e não controlam nada nesse processo. Segundo ele, para que a máquina siga seu curso, é preciso libertá-la das amarras dos seres humanos e, portanto, libertar o capital. Acelerar, para Land, é “deixar a coisa fluir” sem se interessar muito com o elemento humano. Não cabe a nós tentar construir uma alternativa porque somos parte de uma engrenagem muito maior que nos move. Na visão dele, é preciso viver esse caos e aproveitar essa viagem rumo ao desconhecido, à distopia, ao caos. Land é o fundador e representante do que se convencionou chamar de aceleracionismo de direita. Ele é a inspiração de alguns dos bilionários que investem em neurotecnologia, startup e Inteligência Artificial, como Elon Musk.

Land é o fundador e representante do que se convencionou chamar de aceleracionismo de direita. Ele é a inspiração de alguns dos bilionários que investem em neurotecnologia, startup e Inteligência Artificial, como Elon Musk – Rodrigo Santaella

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Dentro da Unidade de Pesquisa em Cultura Cibernética surgiu outra vertente de aceleracionismo a partir de Mark Fisher, discípulo de Land, que se afastou politicamente do pensamento do mestre e pensou um outro tipo de aceleracionismo, segundo o qual é preciso libertar os fluxos proporcionados pelo capital dos limites do próprio capital, definindo um aceleracionismo prometeico de esquerda que caminha para a construção de um outro tipo de sociedade. A ideia é que o capitalismo neoliberal bloqueia as possibilidades de desenvolvimento humano proporcionadas pelo próprio capital e, portanto, temos que empurrá-lo para frente o máximo possível.

IHU – Qual é o problema que o aceleracionismo se propõe a resolver no campo da esquerda?

Rodrigo Santaella – Do ponto de vista político, este problema tem três dimensões. A primeira, do ponto de vista dos aceleracionistas, é que a esquerda tradicional não compreende as mudanças contemporâneas do capitalismo, sobretudo as mudanças relacionadas à tecnologia. Mas há outros dois problemas profundos: a esquerda não tem mais projeto de futuro e não consegue sair de alternativas locais, muito pontuais. Os aceleracionistas estão tentando dialogar com esses problemas políticos, portanto, com uma esquerda que é resignada, acomodada, ordeira, ou seja, uma esquerda que se adequou à ordem e desistiu de qualquer tipo de imaginação política e, no limite, concebeu a ideia de que a sua única tarefa possível é administrar o capitalismo.

A direita se segurava no passado e a esquerda apontava para o futuro. Com o avanço do neoliberalismo isso se inverteu de forma curiosa: a esquerda parece hoje se apegar muito mais às tradições e ao passado, enquanto a direita propõe futuros – Rodrigo Santaella

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Historicamente, a esquerda sempre foi orientada ao futuro, a imaginar outros modelos de sociedade, a pensar outros futuros possíveis, enquanto a direita sempre foi reacionária, tradicionalista e resistente às mudanças. A direita se segurava no passado e a esquerda apontava para o futuro. Com o avanço do neoliberalismo isso se inverteu de forma curiosa: a esquerda parece hoje se apegar muito mais às tradições e ao passado, enquanto a direita propõe futuros – ainda que distópicos e caóticos –, propõe alternativas e tem uma capacidade de imaginação política por vezes superior. Os aceleracionistas dizem que a esquerda está combatendo as políticas locais, ou seja, fazendo política como reação ao autoritarismo stalinista e aos partidos tradicionais, priorizando o local, o imediato, o voluntarismo. O problema é que ela não tem uma estratégia para conquistar o poder e apresentar uma proposta alternativa.

Resistência

O principal mérito do aceleracionismo de esquerda é chacoalhar as perspectivas de uma esquerda que se adequou à ordem e aos localismos, de uma esquerda que se acostumou a resistir. Uma das palavras mais fortes no campo da esquerda é “resistência” e dificilmente conseguimos passar da resistência a algum outro tipo de produção de novidade e de alternativa. A provocação do aceleracionismo de esquerda é muito importante porque critica uma esquerda que se acostumou a defender as instituições capitalistas neoliberais contra o avanço fascista. Para enfrentar as ameaças fascistas não basta defender as instituições e os modos de vida liberal. Para enfrentar o fascismo, é preciso oferecer um projeto alternativo diferente, imaginar um futuro diferente e oferecer essa imaginação como projeto. Ou seja, voltar a se orientar para o futuro e trazer isso de forma firme para o debate público e político. O aceleracionismo tenta fazer isso com a esquerda e esse é o seu principal mérito. Os aceleracionistas propõem que tenhamos a ousadia de sonhar futuros diferentes, que voltemos a falar em sociedades alternativas, no fim do capitalismo, e isso chacoalha a política de forma interessante porque eles não estão repetindo as coisas de 80, 100 anos atrás nem estão limitados a soluções locais e à administração do capitalismo.

A provocação do aceleracionismo de esquerda é muito importante porque critica uma esquerda que se acostumou a defender as instituições capitalistas neoliberais contra o avanço fascista – Rodrigo Santaella

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IHU – Que soluções eles propõem?

Rodrigo Santaella – A literatura do aceleracionismo de esquerda é bastante larga e vou mencionar alguns aspectos que sintetizam algumas ideias. Uma delas é a do pós-trabalho, isto é, a automação tende a eliminar o trabalho humano. Os aceleracionistas partem desse pressuposto. Isso gera, para a esquerda, uma tendência de resistir a essa possibilidade no sentido de sustentar os postos de trabalho. Um exemplo é a máquina que substitui o cobrador de ônibus. A esquerda defende o emprego do cobrador de ônibus. A tendência da esquerda é resistir e defender o paradigma dos postos de trabalho, que é o que garante sobrevivência para as pessoas. Mas a ideia do pós-trabalho dos aceleracionistas é inverter esse quadro, ou seja, em vez de resistir contra a automação, ao contrário, deve-se empurrar a automação para frente, para que ela, de fato, substitua todos os trabalhos e para que possamos defender, de fato, o fim do trabalho como um todo.

Neste paradigma, surge a pergunta: como as pessoas se sustentam sem trabalho? Com renda básica universal para todo mundo. No livro Inventing the future: postcapitalism and a world without work, Nick Srnicek e Alex Williams apresentam uma proposta sistematizada. As pautas imediatas para construir essa reforma têm a ver com a redução da jornada de trabalho, renda básica universal e o trabalho para uma mudança cultural.

Escassez x abundância

Outro livro importante nesta corrente é Comunismo de luxo totalmente automatizado, de Aaron Bastani. A partir de um diagnóstico de como as tecnologias desenvolvidas no capitalismo criam condições materiais para uma sociedade sem trabalho, sem classe e com abundância, ele propõe uma organização social. Segundo ele, a diferença entre o nosso momento atual para as revoluções comunistas e socialistas do século XX é que agora as condições materiais para a mudança existem, enquanto antes, não existiam. Ele diz que a tecnologia já proporciona condições para abundância de energia, por exemplo, porque em apenas 90 minutos a Terra é esquentada pelo sol com energia igual ao que a humanidade consome em um ano inteiro.

A única lógica que produz escassez é a do capitalismo. No momento em que a abundância for evidente, o capitalismo será superado – Rodrigo Santaella

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Com isso, ele está dizendo que o sol já provê energia necessária para a humanidade se sustentar com tranquilidade. Basta acelerar a tecnologia para desenvolver o uso da energia solar e isso vai resolver o problema energético da humanidade. Ele também fala sobre produção de carne sintética, sem maus-tratos aos animais, sobre mineração de asteroides para produzir matéria-prima, sobre biotecnologia para resolver problemas de saúde. Como todas essas tecnologias são baseadas em informação e automação, a tendência é que no curso o tempo, o custo dessas tecnologias, vá tendendo a zero. Ou seja, elas serão produzidas em abundância. A única lógica que produz escassez é a do capitalismo. No momento em que a abundância for evidente, o capitalismo será superado.

Planificação econômica

Outra tendência interessante é a discussão sobre planificação econômica e democrática, que é clássica no campo da esquerda e do socialismo desde as revoluções do século XX. A ideia é mais ou menos a seguinte: no capitalismo, o que coordena as relações sociais, a produção e distribuição de mercadorias é o mercado porque, segundo Hayek, um dos pais teóricos do neoliberalismo, o mercado é a forma mais eficaz de produzir informação sobre o que as pessoas querem e, portanto, de produzir informações sobre o que se deve produzir. Segundo essa visão, o capitalismo é a forma mais eficaz porque produz informação de forma espontânea e descentralizada, portanto, democrática. Qualquer alternativa que centralize a produção, prevendo ou supondo o que as pessoas vão demandar, é menos democrática e menos eficiente pela falta de informações concretas sobre o que as pessoas querem de fato.

Este debate foi importante nos anos 1920, 1930; é o debate do chamado cálculo socialista: é possível planificar, planejar a produção de mercadorias? É possível prever e entender a demanda das pessoas e planejá-la a partir disso? É possível orientar a demanda de cima para baixo, com um plano estatal, por exemplo? Os socialistas dizem que isso é possível e têm formas diferentes de argumentar. Os liberais capitalistas afirmam não ser possível, seja porque é logicamente impossível, como afirma Milton Friedman, seja porque não existe nenhum tipo de tecnologia possível no presente para fazer isso, como justifica Hayek.

Dos anos 1920 para cá, houve uma mudança brutal na capacidade de processamento e armazenamento de dados. A ideia do big data, da plataformização articulando tudo, dos algoritmos processando informações a partir de uma quantidade cada vez maior de dados, gerando o que se conhece como Inteligência Artificial – IA, muda o cenário tecnológico.

O sucesso do processo de planificação no capitalismo mostra que, tecnicamente, ele é possível – Rodrigo Santaella

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Em The people’s Republic of Walmart: How the world’s biggest corporations are laying the foundation for socialism, os aceleracionistas Leigh Phillips e Michal Rozworski defendem a tese de que se o Walmart e a Amazon, que são duas gigantescas corporações capitalistas, fossem países, teriam PIBs maiores do que vários países – e elas têm todo o seu processo produtivo planificado internamente, usando tecnologias. Inclusive, elas têm um processo de previsão das demandas dos seus consumidores. O sucesso do processo de planificação no capitalismo mostra que, tecnicamente, ele é possível. Portanto, podemos transplantá-lo para o modelo estatal sem buscar lucro e com democracia, para, usando a mesma técnica, produzir um resultado de planificação econômica nas sociedades como um todo. Esta é uma tese forte e interessante, que gerou muito debate dentro e fora do aceleracionismo.

A discussão da planificação está bastante vigente hoje e alguns autores propõem sistemas de planificação em várias tendências, mas com esta base comum: a tecnologia contemporânea proporciona outro patamar para este debate e é possível pensar em outras formas de coordenação das relações sociais, de coordenação da produção e de coordenação da distribuição, que não sejam as do mercado. Essas propostas tentam resolver aquele problema colocado pelo aceleracionismo de esquerda com relação à esquerda tradicional, de que ela não tem projeto de futuro, não tem imaginação política e se acomodou.

IHU – Quais os limites do aceleracionismo de esquerda? Que riscos este tipo de corrente de pensamento implica?

Rodrigo Santaella – Vou mencionar dois aspectos. O primeiro problema do aceleracionismo de esquerda poderia ser resumido com a palavra “eurocentrismo”, embora implique mais coisas. É preciso analisar o capitalismo a partir da sua vanguarda, isto é, onde estão as fronteiras de desenvolvimento, a tecnologia de ponta. Para entender o capitalismo, é preciso olhar para as suas tendências, mas não dá para fazer isso sem entender e levar em consideração todas as contra tendências. O capitalismo e suas tendências são pensados, pelos aceleracionistas, a partir do centro, e algumas das conclusões ou pressupostos que esses autores compartilham advém dessa especificidade. Existem dois problemas nisso. De um lado, falta de reconhecimento das diferentes dinâmicas geográficas do capital. O capital, na busca por eternizar processos de acumulação primitiva, pode destruir deliberadamente aquilo que construiu para começar do zero, por exemplo, através de guerras, mas também pode encontrar lugares novos para se desenvolver, ainda não explorados, como novas fronteiras agrícolas, com ataques à natureza e exploração do trabalho humano.

O capital, na busca por eternizar processos de acumulação primitiva, pode destruir deliberadamente aquilo que construiu para começar do zero, por exemplo, através de guerras – Rodrigo Santaella

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Uma parte importante do que está por trás das tecnologias envolve trabalho humano precário, concentrado no Sul global. Pensem, por exemplo, nas fazendas de cliques, na mineração manual de dados, na regulação de conteúdos. Além disso, a tendência de automação total é questionada por vários autores, para os quais ela não vai se confirmar a médio e longo prazo por conta das contra tendências. Enquanto existir exército industrial de reserva, enquanto for mais barato para setores do capital explorar o trabalho humano, não haverá automação completa. Não considerar essas contra tendências é não compreender o panorama do que está acontecendo.

Ode à modernidade

O segundo problema do eurocentrismo tem a ver com a ideia de um projeto iluminista de ode à modernidade que não considera um elemento importante do iluminismo e da modernidade: o seu caráter colonial. Essa discussão não é essencialista no sentido de que os autores são europeus e, por isso, não merecem nosso crédito. Não é isso. A questão é que os pressupostos eurocêntricos geram problemas teóricos e políticos. Por exemplo: dentro da chave iluminista de ode às tecnologias, existe a ode à revolução verde, destacando seu papel na criação de condições materiais para alimentar o mundo inteiro e usando isso como exemplo de como a tecnologia pode resolver os problemas, exaltando, inclusive, o uso de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos como parte importante desse processo.

A revolução verde, sabemos muito bem disso, é justamente o exemplo mais nítido de um tipo de desenvolvimento tecnológico absolutamente interessado política e economicamente para usar insumos em tecnologias sobrantes da Segunda Guerra Mundial, que tem consequências altamente negativas e que ainda não foram totalmente compreendidas e explicadas. Inclusive, na Europa, a regulação sobre limitação para agrotóxicos é muito maior do que no Brasil.

Os aceleracionistas têm uma ideia equivocada sobre tecnologia, a percepção de que a tecnologia é neutra – Rodrigo Santaella

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Então, quando um autor se propõe a oferecer e imaginar um futuro diferente, mas faz uma ode à revolução verde, ignorando toda a discussão popular dos movimentos sociais do campo, da soberania alimentar, da via campesina, da agroecologia, mostra-se os riscos e limites desse paradigma. O eurocentrismo tem dificuldade de enxergar contra tendências e esse é um limite importante. O segundo limite – e o mais orgânico – é que, no fim das contas, os aceleracionistas têm uma ideia equivocada sobre tecnologia, a percepção de que a tecnologia é neutra. Por mais que eles afirmem que é preciso vontade política e organização, existe neles uma presunção de que as tecnologias são neutras ou podem ser facilmente refuncionalizadas. Há, portanto, um determinismo e celebracionismo tecnológico. A tecnofilia não consegue entender os limites para refuncionalização ou reapropriação subversiva do corpo técnico do capitalismo. Existem limites para reaproveitar essas tecnologias para outros fins. Além disso, a tecnofilia tende a cair de novo na ideia de dominar a natureza, de criar a tecnologia para dominar a natureza. O exemplo da revolução verde é bastante elucidativo e, em tempos de crise socioambiental profunda, como nós todos estamos vivendo, esse é um erro fatal.

Agência

Por fim, tem um problema importante de agência e de conformação dos agentes coletivos de transformação. Muitas vezes, a despeito dos esforços dos aceleracionistas falarem sobre isso, a agência coletiva parece relegada ao segundo plano em nome de prognósticos e diagnósticos acerca do desenvolvimento tecnológico propriamente dito.

O determinismo tecnológico, que é sintoma de uma visão equivocada sobre tecnologia, é o principal problema do aceleracionismo de esquerda e de qualquer aceleracionismo. O que parece faltar aí é uma reflexão mais detida sobre a relação entre tecnologia e sociedade. O elemento básico dessa discussão, que não traz nenhuma novidade, é o contrário: as tecnologias não são neutras. A Escola de Frankfurt fala sobre isso. O construtivismo discute como as tecnologias são desenvolvidas a partir de inúmeras possibilidades que vão se fechando com escolhas que têm a ver com as relações sociais. Essas escolhas têm uma dimensão de classe importantíssima. Quer dizer, as tecnologias carregam em si mesmas condicionantes muito importantes relacionados aos interesses que mobilizam e moveram o seu desenvolvimento.

O que parece faltar é uma reflexão mais detida sobre a relação entre tecnologia e sociedade – Rodrigo Santaella

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Em cada tecnologia está embutido um conjunto de interesses sintetizado e, portanto, o desenvolvimento tecnológico que tivemos até aqui foi orientado pelo e para o capitalismo. As escolhas feitas entre as inúmeras possibilidades de desenvolvimento tecnológico foram feitas com essa orientação. Os problemas a serem resolvidos eram colocados por esta orientação. Tem uma dimensão de classe fundamental aí. Nesse sentido não basta uma apropriação dessas tecnologias. Não é possível fazer isso simplesmente.

Ser humano e técnica

O segundo elemento importante com relação a isso é a visão equivocada de que ser humano e técnica são duas coisas diferentes. A discussão não pode acontecer nos termos de como a tecnologia nos impacta e cria condições de transformar o mundo. Não existe tecnologia contemporânea fora do capitalismo e não existe tecnologia contemporânea fora do que é o ser humano contemporâneo. O ser humano é técnica. Há uma imbricação entre ser humano e técnica desde sempre. O artifício sempre foi parte do ser humano. Nós nos desenvolvemos, do ponto de vista social e biológico, a partir dos artifícios que fomos dominando, desenvolvendo, aprendendo. Assim foi desde o martelo até quando inventamos a escrita, que permite a possibilidade de guardar uma parte das informações que estão na nossa cabeça em um papel, o que, sucessivamente, permite que tenhamos mais espaço para pensar em outras coisas. Nós somos técnica.

IHU – Para onde podemos ir, compreendendo esses limites?

Rodrigo Santaella – O cenário é bastante complexo e talvez seja possível encontrar brechas. Estrategicamente não se trata simplesmente de tentar encontrar outros usos para as tecnologias contemporâneas, mas outra forma de relação entre o ser humano e a técnica e, sobretudo, outros caminhos de desenvolvimento tecnológico, utilizando, claro, o conhecimento e a experiência que temos hoje.

Ninguém vai destruir o mundo e começar do zero. Vamos utilizar o conhecimento técnico e a experiência para tentar caminhar em uma direção diferente. Nessa luta entre os que querem manter o status quo e os que querem transformá-lo através da tecnologia, estamos muito atrás. Em 1995, falava-se que existia uma guerra tecnológica em curso, mas só um lado estava armado: o das grandes corporações. De 1995 para cá, tudo está dominado pelas grandes corporações: big data, desenvolvimento algorítmico, IA, neurotecnologia. A esquerda, de certa forma, dominou tecnologias, as utiliza para seus fins e hoje parece que os dois lados dessa guerra estão armados, mas um tem “bombas nucleares” e outro tem “estilingue”. Um exemplo concreto disso é a disputa das redes sociais, que se tornou um mecanismo de comunicação. A direita percebeu isso primeiro e ocupou este espaço. A partir disso, a esquerda entendeu que tem que disputar as redes sociais. Mas nós só conseguimos disputar as redes sociais se entrarmos na lógica imposta por ela e, portanto, pelas corporações que são as donas dessas redes.

Nós estamos nos tornando uma máquina de produzir e consumir conteúdos o tempo todo. É o que querem de nós, sem dúvida – Rodrigo Santaella

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Os algoritmos projetados por essas corporações têm objetivos de manter nossa atenção, pegar nossos dados, manter nossa fidelidade, nos colocar em um ambiente plataformizado em que estamos fornecendo dados e interagindo de mil formas diferentes, das quais não temos sequer consciência. Portanto, são esses algoritmos, projetados com esses fins, que definem os marcos da disputa das redes sociais. Para disputar esse espaço, as pessoas têm que se adequar.

Como disse, somos técnica e nos transformamos ao longo desse processo de adequação. E aí vejam: melancolia, vício, vaidade, ansiedade, depressão, comparação constante com os outros, sensação constante de atraso, de perda, de estar ficando para trás, tudo isso tem a ver com a vida que levamos, mas também tem a ver com a relação que estabelecemos com essas redes e aparelhos. Nós estamos nos tornando uma máquina de produzir e consumir conteúdos o tempo todo. É o que querem de nós, sem dúvida.

Debates

O debate sobre fake news, desinformação e o uso das redes sociais para a política da extrema-direita é um debate fundamental, mas não é o único debate importante. O debate sobre o conteúdo do que é postado e o percentual de pessoas que esse conteúdo atinge não é o único debate importante. É fundamental também pensar no que nós estamos nos tornando nesse processo. Nós estamos nos adaptando, nos adequando e nos tornando piores e mais submissos a essa lógica nesta disputa. Esse é um exemplo que ilustra muito bem os limites da ideia do aceleracionismo porque todos nós vivemos isso no nosso dia a dia de forma diferente. Queremos acelerar as redes sociais na forma como estão agora? Queremos acelerar nossas relações com as redes sociais? É possível construir outro modelo de rede dentro desse mesmo sistema? Parece que não. A questão que emerge é como criamos uma experiência social diferente que, incentivada por quem quer que seja, sejam experiências pontuais que gerem condições para novos modelos de redes sociais. Trata-se de uma abordagem materialista da técnica, não determinista, mas que compreenda que o conteúdo social da tecnologia – assim como toda a dimensão social no capitalismo – é determinado pela economia e pela política, com a economia cumprindo um papel fundamental nessa relação.

A abordagem materialista da técnica, que percebe que a tecnologia não é neutra, faz com que olhemos para o cenário e sejamos bem menos otimistas que os aceleracionistas. A inércia no que diz respeito às tendências que estamos discutindo caminha muito mais provavelmente para a direção de uma emancipação cada vez maior do capital em relação ao trabalho, como Marx dizia, do que o contrário. Deixando as coisas como estão, estamos caminhando para a emancipação do capital em relação ao trabalho, para tragédias socioambientais e para o caos social que estamos vivendo. Imagine se acelerarmos esse processo.

O puro e simples desenvolvimento tecnológico no capitalismo será sempre capitalista e, atualmente, está nos levando para a tragédia – Rodrigo Santaella

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IHU – Qual é o desafio diante deste quadro?

Rodrigo Santaella – O grande desafio é desviar esse caminho e encontrar usos e concepções de tecnologias que contribuam para a alteração geral da correlação de forças. Mas isso não é simples porque não há desenvolvimento tecnológico que, por si só, caminhe para superar o capitalismo. O puro e simples desenvolvimento tecnológico no capitalismo será sempre capitalista e, atualmente, está nos levando para a tragédia. O que existe é a possibilidade de, de forma imbricada, construir caminhos alternativos de organização social. De onde partir? Da luta política e de experiências concretas. Precisamos fazer uma curva acentuada para mudar o caminho, freando e acelerando.

Como decidir o que vai ser freado e o que será acelerado? Aí está a importância do planejamento, da planificação em diferentes escalas. Não me parece que haja motivos racionais para otimismo. Mas, por outro lado, não há outro caminho a não ser lutar. Lembrando Gramsci, precisamos ter o pessimismo da razão, olhar a realidade como ela é, e ter o otimismo da vontade. Precisamos contar com o randômico, com o aleatório. Quando olhamos em nossa volta, parece que não conseguimos encontrar alternativas de mudanças e parece que estamos caminhando para o caos, mas a realidade é muito mais complexa do que aquilo que conseguimos compreender com a nossa razão. Existem um randomismo e uma complexidade que não alcançamos. Cabe a nós, com o otimismo da vontade, tentar jogar elementos nessa complexidade para que surjam novas condições e, a partir delas, caminharmos para um desenvolvimento tecnológico em outra direção. Se apenas administrarmos o capitalismo, a inércia, seguramente, vai nos levar ao colapso. Sobre esse ponto os aceleracionistas de esquerda estão certos. Esta, talvez, seja a principal lição que temos a aprender com eles.

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