Recentemente foi publicado o “Relatório Geral Estatístico da Justiça do Trabalho”, retratando o cenário de 2023. E um dos dados que comporta reflexão consiste no avanço da quantidade de ações ajuizadas.
Não é de hoje a compreensão, ou constatação, de que não há como produzir ciência com neutralidade e isenção. Mas ao mesmo tempo isso não impede que se tente observar fenômenos e dados sem entrar no debate político relacionado a esses mesmos fenômenos.
O tema da litigiosidade, principalmente envolvendo a Justiça do Trabalho, conta com potencial para ser objeto do debate político. Porém, essa condição não afasta a tentativa de observação das características do presente fenômeno de forma isenta, principalmente considerando a recente publicação do Relatório Geral da Justiça do Trabalho de 2023.
Dentre os dados relacionados à litigiosidade, seguramente um dos mais importantes corresponde ao volume de ações ajuizadas. Observando o gráfico quanto ao período de 2017 a 2023, constata-se uma linha descendente de maior inclinação (2017 a 2020), seguida por uma linha ascendente de menor inclinação (de 2021 a 2023), conforme a imagem a seguir [1].
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Um fator que pode estar influenciando e ajudar a entender os dois movimentos corresponde ao tratamento da justiça gratuita, ou ao menos a percepção desse tratamento.
Reforma trabalhista
A Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista), vigente a partir de novembro de 2017, havia estabelecido que o beneficiário da justiça gratuita poderia ter seu crédito comprometido para pagamento de honorários advocatícios e periciais (artigos 790-B, § 4º e artigo 791-A, §4º). Em outubro de 2021, ao julgar a ADI 5.766, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais as referidas regras.
O aumento ou diminuição de ações ajuizadas na Justiça do Trabalho podem ser causados ou influenciados por diversas variáveis, conhecidas e desconhecidas. E por conta disso não seria possível afirmar que a explicação para o referido movimento de diminuição e posterior aumento das ações trabalhistas corresponda exclusivamente à justiça gratuita.
Porém, há outro dado que pode ajudar a entender o fenômeno, também divulgado no último Relatório Geral. Trata-se do aumento das improcedências totais, situação na qual se conclui que nada é devido ao reclamante.
Tanto em 2022, quanto em 2023, cerca de 62% das sentenças proferidas foram de procedência parcial, situação na qual há algum direito reconhecido, e outros rejeitados. Quanto às situações de procedência total e improcedência total, em 2022 15,1% dos casos foram de procedência total e 22,9% de improcedência total, enquanto em 2023 foram 13,7% de procedência total e 24,3% de improcedência total.
Logo, houve aumento na quantidade de processos em que se concluir não haver nenhum direito devido, aumento esse que em termos absolutos correspondeu precisamente a 25.668 processos. Ou seja, ainda em termos absolutos, em 2022 houve 196.201 processos nos quais se concluiu que nada era devido, enquanto em 2023 houve 221.869 processos nos quais se concluiu que nada era devido.
Portanto, aumentaram as ações e também aumentaram as sentenças de improcedência total.
Outro dado que poderia influenciar o volume de ações ajuizadas na Justiça do Trabalho seria a quantidade de desligamentos de empregados, isto é, o possível impacto do mercado de trabalho, envolvendo a perda do emprego.
Comparando os desligamentos registrados no Caged [2] e as ações ajuizadas [3], temos o seguinte cenário quanto aos últimos anos [4]:
Reprodução
Os referidos dados indicam que, em termos relativos, em 2023 aumentou mais o ajuizamento de ações (12,5%), do que os desligamentos (5,4%). E outra constatação é que que enquanto em 2022 as ações ajuizadas correspondiam a 7,9% dos desligamentos, em 2023 passou a ser 8,4%. Assim, haveria alguma dificuldade para explicar o aumento das ações ajuizadas com base no mercado de trabalho.
Com isso é possível considerar que: (1) houve aumento no volume de ações ajuizadas em 2023; (2) houve aumento no volume de sentenças nas quais se constatou que nada seria devido ao autor da ação; (3) os desligamentos, em termos proporcionais, cresceram menos que as ações ajuizadas.
Portanto, considerando os dados apontados, é possível que o aumento das ações na Justiça do Trabalho seja explicado pelo tratamento dado à justiça gratuita. Ao mesmo tempo isso não afasta a possibilidade de que outras variáveis ajudem a entender o fenômeno.
A única certeza é de que o tema exige atenção, estudo e reflexão.
é juiz do Trabalho, autor do livro “Técnicas e Estratégias de Negociação Trabalhista” (4ª edição), foi juiz auxiliar da Vice-Presidência do TST, integrou a Comissão Nacional de Promoção à Conciliação do CSJT e o Comitê Gestor da Conciliação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Mestre e doutor em Ciências do Comportamento (UnB).
Recepcionada pela Constituição, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no Capítulo V, trata da segurança e medicina do trabalho, trazendo importantes disposições que, se efetivamente cumpridas, contribuirão na prevenção dos riscos ambientais laborais, evitando acidentes e doenças e, com isso, protegendo a saúde dos trabalhadores.
Spacca
Citarei alguns dos mais importantes artigos incluídos na CLT pela Lei nº 6.514/1977, que alterou substancialmente o Capítulo V da CLT, num momento em que o Brasil figurava no primeiro lugar no ranking mundial de acidentes de trabalho.
Hoje, de acordo com levantamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial de mortes por acidentes de trabalho.
Dispositivos
Por oportuno, dentre tais dispositivos legais incluídos na CLT destaco, pela sua importância, o artigo 156 (artigo 156 – Compete especialmente às Delegacias Regionais do Trabalho, nos limites de sua jurisdição: I – promover a fiscalização do cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho; II – adotar as medidas que se tornem exigíveis, em virtude das disposições deste Capítulo, determinando as obras e reparos que, em qualquer local de trabalho, se façam necessárias; III – impor as penalidades cabíveis por descumprimento das normas constantes deste Capítulo, nos termos do artigo 201”), que trata da competência do Estado, por meio das Delegacias Regionais do Trabalho e de outros órgãos de fiscalização sobre a orientação, fiscalização, adoção de medidas de proteção ao meio ambiente do trabalho e aplicação das penalidades cabíveis no caso de descumprimento das normas atinentes, incluindo a interdição e o embargo.
Já o artigo 157 (artigo 157 – “Cabe às empresas: I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho; II – instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais; III – adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente; IV – facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente”), por seu turno, determina aos tomadores de serviços a obrigação de cumprirem e fazerem cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, adotando medidas coletivas e individuais de prevenção e proteção necessárias, orientando e instruindo os trabalhadores sobre a implementação dessas medidas e informando-os a respeito dos riscos decorrentes das atividades desenvolvidas.
Também importante é o artigo 158 (artigo 158 – “Cabe aos empregados: I – observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções de que trata o item II do artigo anterior; Il – colaborar com a empresa na aplicação dos dispositivos deste Capítulo. Parágrafo único – Constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada: a) à observância das instruções expedidas pelo empregador na forma do item II do artigo anterior; b) ao uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos pela empresa”), que obriga os empregados a cumprirem as normas ambientais laborais, seguindo as orientações do empregador, sob pena de incorrerem em ato faltoso, punível proporcionalmente à sua gravidade.
O artigo 160 estabelece a obrigatoriedade da inspeção prévia nos estabelecimentos, antes do seu funcionamento, como a mais importante forma de prevenção dos agravos à saúde do trabalhador, embora, na prática seja pouco cumprido (artigo 160 – “Nenhum estabelecimento poderá iniciar suas atividades sem prévia inspeção e aprovação das respectivas instalações pela autoridade regional competente em matéria de segurança e medicina do trabalho.§ 1º – Nova inspeção deverá ser feita quando ocorrer modificação substancial nas instalações, inclusive equipamentos, que a empresa fica obrigada a comunicar, prontamente, à Delegacia Regional do Trabalho. § 2º – É facultado às empresas solicitar prévia aprovação, pela Delegacia Regional do Trabalho, dos projetos de construção e respectivas instalações”).
O artigo 161 (artigo 161 – “O Delegado Regional do Trabalho, à vista do laudo técnico do serviço competente que demonstre grave e iminente risco para o trabalhador, poderá interditar estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, ou embargar obra, indicando na decisão, tomada com a brevidade que a ocorrência exigir, as providências que deverão ser adotadas para prevenção de infortúnios de trabalho”) assegura ao Delegado Regional do Trabalho, hoje Superintendente Regional do Trabalho, ante a existência de risco grave e iminente para o trabalhador, interditar estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento ou embargar obra, o que representa um dos mais efetivos e ágeis instrumentos de prevenção do meio ambiente e de eliminação de risco de vida para os trabalhadores. Esse dispositivo legal, que nos seus primórdios teve pouquíssima aplicação, vem sendo utilizado com certa frequência pelos órgãos do Ministério do Trabalho e Emprego como forma de preservação da saúde do trabalhador.
O artigo 184 (artigo 184 – “As máquinas e os equipamentos deverão ser dotados de dispositivos de partida e parada e outros que se fizerem necessários para a prevenção de acidentes do trabalho, especialmente quanto ao risco de acionamento acidental. Parágrafo único – É proibida a fabricação, a importação, a venda, a locação e o uso de máquinas e equipamentos que não atendam ao disposto neste artigo”) dispõe sobre a necessidade de as máquinas e equipamentos que ofereçam perigo para os trabalhadores conterem dispositivos de proteção, impondo a responsabilidade solidária pelo cumprimento dessa obrigação ao fabricante, ao importador, ao vendedor, ao locador e ao usuário.
Cabe registrar que as alterações incluídas na CLT pela Lei nº 6.514/1977, que alterou seu Capítulo V, endurecendo as normas sobre segurança e saúde no trabalho, juntamente com algumas políticas de prevenção foram responsáveis pela diminuição do índice de acidentes de trabalho no Brasil, que, de qualquer forma, ainda registra indicies preocupantes, com grandes prejuízos financeiros, sociais e humanos. Por isso, sempre é necessário reiterar que o melhor remédio para evitar acidentes de trabalho é a prevenção dos riscos ambientais laborais.
é consultor jurídico, advogado, procurador Regional do Trabalho aposentado, doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professor titular do Centro Universitário UDF e membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho, autor do livro Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador, entre outros.
Após o trauma de seguidos planos econômicos frustrados, brasileiros viram, finalmente, os preços se acomodarem
Maria Beatriz Giusti
Em 30 de junho de 1994, mais de 940 milhões de cédulas e 688 milhões de moedas foram distribuídas no Brasil, de acordo com as informações do Banco Central. Depois de mais de um ano de transição, finalmente, o brasileiro podia segurar no dinheiro real.
O fim de 1994 ainda enfrentou a inflação de 916% no acumulado de 12 meses, mas o controle econômico acompanhou os próximos anos e, já em 1995, o percentual era de 22%. Somente quem viveu a inflação desenfreada no Brasil pode perceber a diferença.
Durante a transição do Cruzeiro Real para o Real, foi lançada a Unidade Real de Valor (URV), uma moeda contábil que pavimentou o caminho para a introdução do real, moeda que permanece até hoje. Esse processo transformou a alta inflação, mais de 80% ao mês, que atormentava a vida dos brasileiros em uma lembrança do passado. As gerações nascidas após o início da estabilidade econômica não conseguem imaginar como era viver em um país com hiperinflação.
Em 1992, a recém-casada Silvana Oliveira, 48 anos, recorda que, mesmo no final do período crítico da hiperinflação, o cenário era ‘caótico’ para um jovem casal. “Quando casei, em meados de 92, senti drasticamente o cenário caótico que o Brasil atravessava. Todo o mês, os preços subiam e era uma luta constante para ajustar o orçamento familiar. O cenário por si só me tirava um pouco da esperança que tinha no Brasil: eu e meu ex-marido, dois jovens começando a vida, com sonhos que pareciam muito difíceis de concretizar”.
Oliveira lembra, no entanto, que a chegada de 1994 trouxe um alívio para vida dos brasileiros que começaram a ter esperança na nova moeda. “Quando o Plano Real foi lançado, parecia que um milagre tinha acontecido. A inflação estava fora de controle e, de repente, com a nova moeda, tudo começou a estabilizar”, recorda.
Confisco da poupança
Durante o governo do ex-presidente Fernando Collor, o Brasil enfrentou um dos momentos mais traumáticos de sua história econômica, quando em 1990, o presidente confiscou poupanças e bloqueou contas bancárias como parte de um plano para conter a hiperinflação. Esse confisco repentino deixou milhões de brasileiros sem acesso ao seu próprio dinheiro, ou forçando as vítimas do golpe a negociar metade do valor de volta, agravando a crise financeira e semeando desconfiança no sistema bancário, enquanto o país já lutava contra preços que subiam diariamente e uma economia em colapso.
O empresário Edimar Mothe, 65, relembra o impacto da medida, que marcou sua vida pessoal e profissional. “Eu me lembro de assistir à notícia na televisão praticamente hipnotizado, e fiquei assim durante uns dois dias. Eu me lembro, com exatidão, de ouvir aquilo sem saber o que fazer. Eu tinha contas para pagar e, de todo o dinheiro que nós tínhamos no banco, para as empresas, suprir compromissos, folha de pagamento, aluguel, fornecedores, sobraram 50 mil. Aquilo impactou muito. Foi uma loucura. Eu procurava entender aquele Plano Collor”.
Para Edimar, o confisco foi um golpe quase fatal. “O governo, com o tempo, foi criando a condição de poder pagar impostos com o dinheiro que foi congelado. Se você tinha dinheiro no banco, perdia cerca de 20% a 30%. As empresas que tinham impostos para pagar, pagavam 70% e ficavam com o crédito, o dinheiro congelado, para pagar impostos. Todo mundo perdeu, na melhor das hipóteses, uns 30% do seu capital. Isso para quem conseguiu descongelar, pois muita gente não conseguiu”, conta.
O então bancário, Nicolas Bonvakiades, 56, relembra como os bancos eram sempre cheios de pessoas tentando pagar as contas sem os juros. Hoje assessor de imprensa, ele conta que viveu a hiperinflação de duas formas. “Pelo fato de ser bancário, eu via a agonia das pessoas que não conseguiam pagar os juros enormes do cheque especial, enquanto eu também passava por uma situação semelhante”.
O assessor recorda que viveu uma situação “inusitada” durante os congelamentos no governo Collor, mas que o tirou de um débito grande. “Eu tinha uma dívida de cheque especial e, de repente, para liberar dinheiro, começou a poder fazer a transferência da dívida para quem teve as contas congeladas. Você vendia a dívida para quem queria descongelar o dinheiro e a sua dívida era paga por essa pessoa. Uma coisa completamente absurda”.
Entre aqueles que se moldaram ao sistema da época, está o fotógrafo Jorge de Medeiros, 64, que viveu o começo de sua carreira profissional em um país onde os preços mudavam diariamente. “Viver em um país com hiperinflação foi muito desagradável. Principalmente para os mais pobres. Não tinha certeza se o que ganhavam era o suficiente para bancar as despesas”. Para ele, que trabalhava como autônomo, a situação era ainda mais complicada. “Eu não era assalariado, já que vivia como autônomo fotografando. Por isso, os serviços que eu pegava vinham com valores atualizados de acordo com a inflação. Eu ia corrigindo. A inflação gerou muita insegurança para a população”.
O comerciante Cláudio Damaceno, 51, viveu dificuldades antes da estabilização econômica trazida pelo Plano Real, que forçava os trabalhadores a lidarem com dinheiro em espécie, mas não possibilitava comprar o básico. “Cartão de crédito era só para a burguesia. Naquela época, andávamos com um salário mínimo dentro da carteira. Recebia do patrão o dinheiro em espécie e já saia com a carteira recheada na rua. Quando chegava no mercado, o pagamento ficava lá”, recordou.
“Comprávamos o básico, por exemplo, um kg de carne levava 1/3 do salário. As coisas eram mais difíceis, o preço não nos deixava ter. Carne era só uma vez por semana. O pobre comia ovos”, contou. A hiperinflação reduzia drasticamente o poder de compra e limitava o acesso a alimentos, obrigando famílias a adotarem dietas restritas.
Houve um processo de adaptação à nova moeda e a estabilização dos preços. “Os primeiros anos do real foram complicados. As coisas começaram a melhorar depois de uns sete anos”, disse Cláudio.
Estoque de comida
O contador Adão Passos, 60, relembra os tempos difíceis da hiperinflação no Brasil, quando os preços subiam várias vezes ao dia, tornando o planejamento financeiro impossível e obrigando os brasileiros a correrem para estocar alimentos. Com a moeda desvalorizada e produtos básicos desaparecendo das prateleiras, os brasileiros transformavam seus salários em alimentos para o mês inteiro.
“O salário era corroído diariamente na compra de produtos e serviços. Os preços eram remarcados de manhã, de tarde e de noite. Não era possível um planejamento familiar, nem tampouco financeiro. Era muito curioso você ir ao supermercado correndo nas prateleiras para pegar o produto com o preço do início da manhã, pois já tinha o cara com a maquininha fazendo a remarcação dos preços. Estocar comida era necessário”, comenta, lembrando que a renda do brasileiro não era capaz de proporcionar compras no dia a dia. Ele recorda ainda que até produtos faltavam nos supermercados. “Nossa moeda não tinha nenhum valor”, completa.
A introdução do Plano Real se tornou um ponto de virada na economia. Permitindo que os brasileiros finalmente se libertassem da constante alta de preços. “Possibilitou fazer planejamento financeiro e familiar. Acabou a correria no supermercado para comprar produtos sem alterar o preço do dia para a noite. Acabou a necessidade de estocar comida. O salário passou a ter poder de compra. Nada de comprar comida para o mês todo. O preço estabilizou. Na época, eu nem sonhava em ter um carro, uma casa ou, até mesmo, acesso a produtos e serviços de lazer. Hoje, reservando uma quantia por mês, tenho acesso a todas as opções que eu quero”, concluiu o contador.
Para a professora de idiomas, Gianna Xavier, 66, o drama era o mesmo. Mãe de três crianças pequenas na época, a professora conta que precisava levar cheque para todas as lojas porque não sabia quanto ia gastar no dia. “A gente andava com cheque para absolutamente tudo, para ir na padaria tinha que ser com cheque. Não sabia quanto de dinheiro tinha que levar, um dia era um saquinho, no outro já eram dois saquinhos. A gente chamava de ‘pataca’ a moeda da época, porque vivia mudando”.
Xavier lembra que a família não podia se dar ao luxo de comprar algumas marcas, já que a ida ao mercado era sempre uma surpresa dos valores. “Quando recebia o salário, a gente corria para o supermercado para fazer estoque, muito leite em caixinha e em pó, mas tudo que pudesse estocar, a gente estocava. Os produtos eram sempre de marca branca que eram um pouco mais barato”.
necessidades basicas serie plano real(foto: editoria de arte)
Geração do real
Para a geração que nasceu no período do real, alguns hábitos podem parecer desnecessários, mas muito comuns para os familiares mais velhos. O gerente de projetos e estudante de economia, Paulo Zhara, de 27 anos, conta que quando criança os pais e os avós sempre faziam compras de mês. “Aquelas compras muito grandes no supermercado, com vários pacotes de arroz, de feijão, muitos produtos enlatados eram muito comuns na minha família”.
Mesmo depois de 30 anos do Plano Real, Paulo diz que a hiperinflação não o assusta, mas questiona a forma como os governos vêm lidando com as crises econômicas. “Se for parar para pensar, o Brasil não mudou tanto a maneira de fazer política e de fazer políticas econômicas. Ainda é muito baseada no controle da inflação por meio da determinação da taxa de juros. Eu vejo que esse cenário da hiperinflação pode acontecer no médio ao longo prazo”.
Ex-braço direito de Haddad e atual diretor de Política Monetária, Galípolo é favorito para indicação de Lula no comando da autoridade monetária
Rafaela Gonçalves
O presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, saiu de férias e escolheu o atual diretor de Política Monetária, Gabriel Galípolo, como chefe interino da autoridade monetária. Ex-braço direito do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Galípolo é visto como o favorito para a indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da autarquia no fim deste ano, com o fim do mandato de Campos Neto.
O possível sucessor ficará à frente do BC até 19 de julho. A saída temporária de Campos Neto se dá em meio às recorrentes críticas de Lula ao comando da autoridade monetária. Nas últimas semanas, o petista tem destinado boa parte de suas entrevistas para atacar o banqueiro, que já costuma tirar férias neste período.
Na terça-feira (2), em entrevista à rádio Sociedade, em Salvador, Lula afirmou que Campos Neto “tem um viés político”. Em resposta, o chefe do BC, indicado pelo governo Bolsonaro, disse que é necessário “afastar essa narrativa”.
Com o atrito, a moeda norte-americana vem renovando altas ante o real. Na véspera, o dólar chegou a superar R$ 5,70, recorde em dois anos e meio. Nesta quarta-feira (3/7), a moeda opera em queda, após falas do ministro da Fazenda sobre autonomia do BC.
Campos Neto volta do período de férias antes da próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), que acontece nos dias 30 e 31 de julho. O colegiado é responsável por fixar a taxa básica de juros (Selic), atualmente em 10,5% ao ano.
Texto transforma o BC — hoje uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda — em uma empresa pública
Por Agência Senado
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) adiou para a próxima quarta-feira (10) a votação da proposta de emenda à Constituição (PEC) 65/2023, que concede autonomia financeira e orçamentária ao Banco Central (BC). A deliberação estava prevista para esta quarta-feira (3), mas foi suspensa após um pedido de vista ao relatório do senador Plínio Valério (PSDB-AM).
A matéria foi proposta pelo senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO). O texto transforma o BC — hoje uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda — em uma empresa pública “com autonomia técnica, operacional, administrativa, orçamentária e financeira”.
Durante a reunião desta quarta-feira, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) apresentou um requerimento para o adiamento da discussão por 30 dias. Segundo Regimento Interno do Senado, caso aprovada, a suspensão dos debates poderia ser estendida por mais 30 dias.
Sem apoio para a aprovação do requerimento de adiamento por 30 dias, Rogério Carvalho apresentou um pedido de vista.
Além da variação cambial, leitura de economistas ouvidos pelo g1 é de que preços também podem aumentar em meio aos efeitos climáticos e diante dos reflexos da tragédia no Rio Grande do Sul.
O forte avanço do dólar visto ao longo do ano pode ser mais um fator relevante a pressionar a inflação e impactar o consumo das famílias ao longo dos próximos meses, dizem especialistas ouvidos pelo g1.
Ainda que os preços continuem controlados por ora, a tendência é que a somatória entre três fatores pese nos preços ao consumidor neste segundo semestre:
A valorização da moeda americana contra o real, que chega a 14,75% em 2024;
A piora na safra agrícola deste ano em relação a 2023; e
Veja a seguir o que explica o aumento do dólar, e seus impactos na inflação brasileira e no consumo das famílias.
O que está acontecendo com o dólar?
Há uma série de fatores que, juntos, ajudam a explicar a forte valorização do dólar nos últimos meses. Desde o final de maio, a moeda americana acumula alta de mais de 6% em relação ao real, refletindo tanto fatores internos quanto o quadro internacional.
Os últimos dados divulgados pelo Banco Central (BC), por exemplo, indicam que as contas do setor público consolidado apresentaram um déficit primário de R$ 63,9 bilhões em maio deste ano, no segundo pior resultado para o mês da história.
O déficit primário acontece quando as receitas com impostos ficam abaixo das despesas, desconsiderando os juros da dívida pública.
A arrecadação começou o ano em alta, depois de medidas implementadas pelo governo para perseguir um equilíbrio das contas, mas voltaram para o vermelho no acumulado dos cinco primeiros meses de 2024. Agora, há um déficit de R$ 2,6 bilhões, ou 0,06% do PIB, contra um resultado positivo de R$ 28,5 bilhões (0,65% do PIB) no mesmo período do ano passado.
A preocupação crescente com as contas públicas tem mexido com os mercados e colocado o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em uma corrida contra o tempo para tentar achar espaço no orçamento para um corte de gastos.
Na última quarta-feira (3), Lula chegou a afirmar que “responsabilidade fiscal é compromisso” e que o governo “não joga dinheiro fora”. A declaração, no entanto, vai na contramão com o que o próprio presidente já falou em momentos anteriores, quando afirmou que é necessário avaliar “se a saída é o corte de gastos ou um aumento na arrecadação”.
Além disso, também há um incômodo recente vindo da escalada de estresse causada pelas críticas que Lula tem feito ao BC.
Depois de um início de ano conturbado, Lula voltou a criticar o patamar de juros do país e a condução da política monetária pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto. O mercado financeiro acendeu o sinal amarelo, pela preocupação sobre como deve ser a transição para a nova gestão da instituição.
Com o mandato de Campos Neto se encerrando no final deste ano, o governo deve indicar um novo nome para substituí-lo. O temor dos investidores é que a nova diretoria opte por uma condução mais frouxa da política monetária — ou até com interferência política.
No pior cenário, os diretores seriam forçados a trabalhar com juros menores na economia brasileira, o que poderia implicar em uma inflação média mais alta.
Todo esse cenário reduz o apetite dos investidores aos ativos de risco brasileiros. Isso faz com “fujam” para investimentos em dólar como forma de proteção da carteira — fazendo com que a moeda norte-americana se valorize cada vez mais em relação ao real.
Isso porque, nos últimos meses, o nível de atividade econômica norte-americana continua com um bom ritmo de crescimento. Isso faz com que os números de emprego e de salários continuem fortes, e deixa mais difícil a missão do Fed de controlar a inflação, que está acima da meta de 2%.
O cenário frustrou as expectativas do mercado financeiro, que esperava uma redução dos juros americanos ainda no primeiro semestre de 2024. O início do ciclo de cortes de juros por lá ainda não tem data para começar.
Atualmente, a taxa básica dos EUA está no intervalo entre 5,25% e 5,50% ao ano, no maior patamar desde 2001. Segundo a ferramenta Fedwatch do CME Group, que reúne as apostas dos analistas para a redução, aponta que a maior parte do mercado (66,5%) projeta que o Fed só comece a cortar os juros na reunião de setembro.
Mas é apenas uma previsão. Nessa semana, por exemplo, a diretora do Fed, Michelle Bowman, reiterou sua opinião de que manter a taxa de juros nos Estados Unidos estável “por algum tempo” provavelmente será suficiente para deixar a inflação sob controle. Na prática, isso significa que o BC norte-americano deve deixar os juros elevados por mais tempo.
Nessa situação, o dólar ganha força. Quando os juros dos EUA estão elevados, a rentabilidade dos Treasuries (títulos públicos norte-americanos), os mais seguros do mundo, é maior. Assim, quem busca segurança e boa remuneração prioriza o investimento no país, e se afasta de emergentes, como o Brasil.
Por que o aumento do dólar pode impactar os preços?
A valorização da moeda norte-americana já ultrapassa a marca dos 14% no ano até agora. Um dólar mais caro traz impacto em várias cadeias produtoras brasileiras, e a estimativa dos especialistas é que os impactos nos preços já comecem a surgir.
Segundo o economista-chefe da Associação Paulista de Supermercados (Apas), Felipe Queiroz, a alta do dólar só não teve efeitos significativos nos preços domésticos por enquanto por dois motivos:
Primeiro, porque o setor costuma trabalhar com estoques. Até que acabe o excedente de produtos e os supermercados precisem reabastecer, dificilmente o consumidor sentirá oscilações nos preços.
Segundo, porque o segmento costuma fazer operações com hedge (instrumento voltado para proteger o valor de um ativo contra possíveis oscilações de mercado), o que também acaba limitando impactos instantâneos e mais agressivos nos preços.
“Mas a tendência é que a gente venha a sentir esses impactos [do câmbio] a partir de julho em diante. Por isso a expectativa é que haja aceleração inflacionária neste segundo semestre”, afirmou Queiroz.
De maneira geral, a taxa de câmbio pode ter influência nos preços domésticos em diferentes frentes, como por meio da importação de produtos e insumos ou mesmo pela equiparação dos preços praticados no Brasil com o mercado internacional.
Ou seja, para que não faltem produtos por aqui (principalmente os essenciais), o preço de itens produzidos no Brasil e exportados sobe internamente para acompanhar a variação do dólar.
Um bom exemplo desse quadro é a soja. Apesar de o Brasil ser um enorme produtor do grão, os produtores priorizam a exportação do produto quando o dólar sobe.
Para abastecer o mercado interno, é preciso pagar mais caro. O preço da soja faz subir junto o da ração animal, que traz impactos indiretos a produtores de carne, leite e derivados, por exemplo.
Como isso tudo pode afetar o consumo (e o consumidor)?
“Tudo isso acabou dando um gás para o consumo. Além disso, também temos uma massa salarial crescendo muito, com a população ocupada subindo e queda do desemprego. Com mais gente empregada e ganhando mais, é natural que o consumo aumente”, explica a economista-chefe do C6 Bank, Claudia Moreno.
Para os meses à frente, no entanto, a leitura já não é tão positiva. Além do impacto do dólar nos preços, que deve ser visto principalmente nos bens de consumo, há também uma pressão inflacionária vinda dos efeitos climáticos e da tragédia vista no Rio Grande do Sul (RS) na primeira metade do ano.
Os indicadores já começam a mostrar essa pressão. O último dado da inflação oficial do país, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), mostra que os preços subiram 0,39% na prévia de junho, puxados pela alta no grupo de Alimentação e bebidas (0,62%).
Alimentos comuns na mesa do brasileiro contribuíram para a alta, com destaque para a batata inglesa, que disparou 20,61% e a cebola, por exemplo. O arroz também teve aumento (1,47%) — nesse caso refletindo a tragédia no Sul, uma vez que o RS é o maior produtor do grão no Brasil.
A perspectiva de reajustes mais severos em itens essenciais disparou um antigo gatilho do consumidor contra a inflação: as chamadas “compras de pânico”. Elas acontecem quando consumidores temem a falta de um produto nos mercados e acabam comprando mais unidades do que o habitual.
A empresa Neogrid possui um indicador específico que mede a ausência de produtos nas gôndolas dos supermercados brasileiros, o Índice de Ruptura. No mês de maio, por exemplo, ele registrou um aumento ao patamar de 13,4%. Esse é o percentual de produtos em falta em relação ao total de itens do catálogo de uma loja.
Dentre itens específicos, destaque foi justamente o arroz, que passou de 7,6% para 9,7%. Para entender esse número, fica o exemplo: se o mercado vende cinco marcas de arroz e uma delas está faltando em estoque, a ruptura desse produto seria de 20%.
“Parte da população comprou mais e estocou em casa. A atitude provocou aumento da ruptura do produto devido tanto à demanda ter crescido quanto à demora para o reabastecimento”, afirmou em nota o diretor da Neogrid Robson Munhoz.
Outros destaques, segundo a Neogrid, foram o detergente (de 7,9% para 8,8%), o café (de 8,1% para 8,8%) e a manteiga (de 5,6% para 6,8%).
Diante do aumento do Índice de Ruptura e das estimativas de que a inflação aumente até o final do ano, a leitura dos especialistas é que o consumo deve arrefecer no segundo semestre.
Para Queiroz, da Apas, a estimativa é a de que os supermercados acabem reagindo às variáveis que interferem no consumo, trazendo promoções quando possível e até promovendo os produtos de marca própria — que também são chamados de “marcas exclusivas”.
Segundo o vice-presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), Marcio Milan, a preferência dos consumidores pelos produtos de marca própria já vinha crescendo ao longo do tempo, mesmo antes dessa expectativa de choque de preços.
Essa é uma alternativa frequentemente usada pelos consumidores e que ganhou força após a pandemia, em meio aos fortes aumentos de preços.
“O consumidor passa a procurar alternativas e os produtos de marca própria têm, em média, um preço de 20% a 30% menor do que o [produto] líder, mas com uma qualidade semelhante”, afirmou.