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Saúde mental, neoliberalismo e subjetividade

Saúde mental, neoliberalismo e subjetividade

O sofrimento psíquico é uma catástrofe global, possivelmente tão importante quanto a ecológica, à qual, contudo, a atenção volta-se especialmente ao indivíduo, desconsiderando o aspecto estrutural da sociedade.

Introdução

Tanto no senso comum quanto na opinião pública, é lugar-comum a constatação de que o modo de vida na sociedade contemporânea compromete a saúde mental dos indivíduos. Não obstante essa percepção social, são os mesmos indivíduos que são instados a gerir sua própria saúde mental mediante autocuidados diversos. A essa dupla observação, duas questões se impõem: como compreender sociologicamente a implicação e a reflexividade entre concepção de vida e saúde mental nos dias atuais? E como a sociologia, em sua contribuição clínica, pode pensar as linhas de fuga diante da catástrofe psíquica?

Recentemente, o historiador Jérôme Baschet (2021) afirmou que o século XXI teve seu início com o advento da pandemia de covid-19 em 2020, da mesma forma que, para muitos historiadores, o século XX teria começado em 1914, com o ciclo das guerras mundiais. Como se sabe, a pandemia de covid-19 foi, de fato, um acontecimento global significativo para a humanidade como um todo e, em particular, para as sociedades ditas “civilizadas” ou “avançadas”[i], entre as quais o capitalismo, em sua forma atual neoliberal, figura como organização social hegemônica.

Entendida como fato social total[ii], a pandemia tanto intensificou processos sociais tendenciais – aceleração social, mental e digital, trabalho e educação remotos, precarização do mundo do trabalho, decomposição salarial, individualização, desigualdades e violências socioeconômicas, raciais, étnicas, geográficas e de gênero – quanto foi percebida como antecâmara da catástrofe ecológica (Castro, 2021; Danowski, 2021; Descola, 2021; Latour, 2020), uma vez que tinha em comum com esta a ameaça à experiência humana no planeta.[iii]

Mas uma outra crise também já estava em curso e foi agudizada com a pandemia de covid-19. Trata-se da crise psíquica (Corbanezi, 2023), para a qual o crítico cultural Mark Fisher (2020) chamou a atenção em seu célebre Realismo capitalista [2009], ao relacionar sua experiência depressiva e o sofrimento psíquico generalizado com o modo operatório do capitalismo contemporâneo. Com efeito, assiste-se a uma catástrofe global possivelmente tão importante quanto a ecológica, à qual, contudo, a atenção volta-se especialmente ao indivíduo, desconsiderando o aspecto estrutural da sociedade.

Não obstante a atenção pública (médica, governamental, midiática), para a crise do sofrimento psíquico, ainda não há tratado global com visibilidade semelhante ao Acordo de Paris para mitigar os problemas de uma saúde mental que se esgota à maneira dos recursos naturais, a partir de uma concepção igualmente predatória e extrativista de recursos humanos subjetivos imprescindíveis à fase atual do capitalismo.[iv]

Em A imaginação sociológica, Wright Mills (1969) sublinha o princípio sociológico básico de que, quando uma perturbação pessoal acomete parte significativa dos indivíduos de uma determinada sociedade, não se trata mais de problema individual.[v] Ora, vivemos em um mundo que se baseia globalmente na ordem social capitalista e no qual se estima que 970 milhões de pessoas sofram com transtornos mentais. Destas, 301 milhões vivem com transtornos de ansiedade – o Brasil é considerado “líder” mundial da categoria com cerca de 19 milhões de pessoas com ansiedade patológica, o que equivale a 9% da população nacional – e 280 milhões com transtornos depressivos (WHO, 2022, p. 41). Por que insistir em abordar o sofrimento psíquico como problema individual?

É verdade que, em termos teóricos, o fenômeno da saúde mental é definido por sua complexidade biopsicossocial. No Brasil, por exemplo, dispositivos como a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e seus Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) tentam pôr em prática tal postulado.[vi] No entanto, para a psiquiatria hegemônica, que desempenha ainda um papel central nessas instituições e que procura controlar a epidemia de transtornos mentais por meio da medicalização do sofrimento, os transtornos mentais são compreendidos fundamentalmente como disfunções neuroquímicas, que se reduzem, em última instância, ao funcionamento orgânico individual.

Para o imaginário social neoliberal, por sua vez, o sofrimento psíquico pode ser proveniente de escolhas malsucedidas e da má gestão dos capitais subjetivos – capacidades emocionais, relacionais, cognitivas, intelectuais – do próprio indivíduo, que gozaria de liberdade e autonomia para tanto.[vii]

Embora a saúde mental seja abordada como questão pública, não há a enunciação oficial e global de que o sofrimento psíquico – aí incluídos os diagnósticos paradigmáticos de nossa época, como depressão, ansiedade, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e síndrome de burnout – seja também o efeito da dimensão estrutural da sociedade em que os indivíduos vivem, afinal uma tal declaração poderia implicar a necessidade de uma transformação social radical.[viii] Tudo se passa como se o desvio à norma se limitasse ao indivíduo enquanto homo clausus.[ix]

Em O Anti-Édipo, cujo subtítulo é precisamente Capitalismo e Esquizofrenia, Deleuze e Guattari (2010) se voltavam contra a representação do inconsciente realizada pela psicanálise freudiana, a fim de sustentar que a patologia mental não deriva exclusivamente da relação do indivíduo consigo mesmo e com a família. Para os autores, o inconsciente funciona antes de tudo como uma fábrica, em termos de produção (e não de representação) da realidade. Segundo o raciocínio, o delírio não seria expressão da relação indivíduo-família, mas, antes de tudo, histórico-social: delira-se povos, economia, história, cultura, geografia, política.[x] De forma semelhante, Antonin Artaud (2017) – referência fundamental para os autores de Mil platôs – sustentou que o silenciamento de Van Gogh não se reduzia a um ato individual. Para o artista francês, Van Gogh fora, antes de tudo, o “suicidado pela sociedade”.[xi]

Nosso contemporâneo, Mark Fisher também se suicidou e legou um diagnóstico percuciente a respeito da relação entre sofrimento psíquico e sociedade, evocando a urgência de sociologizar e de politizar a saúde mental atualmente. Sociologizar – termo empreendido aqui por nós – significa compreender inicialmente em que sociedade o sofrimento psíquico aparece de forma epidêmica.[xii]

É o que visamos realizar nas duas primeiras seções do artigo, ao abordar a cultura neoliberal e a instituição da precariedade subjetiva, em que esta aparece não unicamente como efeito daquela, mas como norma social. Politizar a saúde mental, por sua vez, implica tanto demonstrar o vínculo indivíduo-sociedade no que diz respeito à produção do sofrimento psíquico quanto indicar estudos, formas terapêuticas e experiência de sociabilidade que podem coletivamente produzir outros modos de subjetivação não baseados nos princípios da cultura neoliberal. É o que procuramos realizar na última seção do artigo, de modo que a sociologia possa contribuir a partir da consideração do aspecto estrutural da dimensão social que envolve a complexidade da saúde mental enquanto fenômeno biopsicossocial.

Cultura neoliberal

O termo “neoliberalismo” é muitas vezes considerado genérico, amplo, impreciso e mesmo controverso. Segundo os críticos da terminologia, trata-se de um conceito excessivamente abrangente para circunscrever empiricamente sociedades capitalistas complexas e singulares. Todavia, o conceito é relativamente estabelecido no campo das ciências humanas e sociais e significativamente mobilizado como categoria de análise por críticos de tal formação e estágio das sociedades capitalistas ocidentais (Andrade, 2019; Corbanezi; Rasia, 2020). Interessa-nos aqui delinear o que entendemos por cultura neoliberal, noção que a literatura sociológica aborda de forma mais ou menos explícita, ainda que a ideia seja inequívoca em uma variedade de autores como Foucault, Bourdieu, Bauman, Sennett, David Harvey, Naomi Klein, Wendy Brown, entre outros.

Para o nosso propósito, o conceito de cultura não está relacionado ao sentido capitalista, da produção cultural enquanto mercadoria, tal como examinado por Adorno e Horkheimer (1985) por meio do conceito de indústria cultural, tampouco à cultura como cultivo de espírito, conforme a análise de Norbert Elias (2011) sobre o papel da intelligentsia ascendente na formação da civilização moderna. O conceito de cultura de que lançamos mão se refere à produção de valores globais que orientam os modos de vida e produzem subjetividades específicas. Félix Guattari (1996) nomeou essa concepção de cultura, proveniente da antropologia, como “cultura-alma coletiva”, na medida em que envolve uma determinada civilização em seu conjunto.

Diferentemente das outras duas acepções, trata-se de uma forma de cultura da qual todos participam e que produz modos de subjetivação comuns. Dessa forma, a cultura capitalística, segundo a terminologia utilizada pelo filósofo e psicanalista francês, produz uma subjetividade capitalística, que, por sua vez, impede o desenvolvimento de outras subjetividades – singulares, menores, não hegemônicas, desviantes da normalidade social –, não obstante a incitação contemporânea à diferença e ao multiculturalismo baseada em princípios neoliberais (Boccara, 2013). É nesse sentido, enquanto conjunto de valores de que todos em alguma medida partilhamos, que nos servimos aqui do conceito de cultura neoliberal.

Não é nosso propósito, portanto, analisar uma singularidade empírica específica do neoliberalismo, mas apresentar os traços gerais da cultura neoliberal que tomou forma nos últimos 50 anos nos países capitalistas ocidentais.[xiii] Como Margaret Thatcher (1981) profetizou em entrevista ao jornal Sunday Times em 1981, “a economia é o método, o objetivo é mudar o coração e a alma”. Qual é, afinal, essa alteração na cultura-alma coletiva que implica efetivamente a concepção atual e dominante de vida?

Um axioma do capitalismo é a necessidade de crescimento ilimitado. Para tanto, o recurso à exploração (da natureza, do trabalho) sempre foi o meio de alcançá-lo.[xiv] Contudo, se no período disciplinar-fordista buscava-se realizar o objetivo mediante a manutenção da ordem e da estabilidade social (na família, na escola, no trabalho), na sociedade pós-disciplinar contemporânea procura-se efetuá-lo por meio da promoção de valores sociais como a liberdade e a autonomia, das quais decorrem sentimentos e experiências de instabilidade, de incerteza, de insegurança, de risco (Bauman, 2001; Castel, 1995; Sennett, 2019).

Com efeito, diagnósticos sociológicos diferentes abordam essa transformação fundamental nas sociedades capitalistas contemporâneas desde os anos 1970 e 1980, quando da ascensão do neoliberalismo como forma de governo. Para Ehrenberg (1998, 2012), por exemplo, tal transformação social, que o autor situa no domínio das representações coletivas que as sociedades contemporâneas fazem delas mesmas, implica a transição do indivíduo obediente e culpado ao indivíduo autônomo e insuficiente: se, antes, a patologia mental estava inscrita no problema da interdição disciplinar (modelo conflitual da neurose freudiana), atualmente, considerando a ascensão da autonomia como norma social, as patologias gravitam em torno da incapacidade da ação individual.[xv]

Como se sabe, a transformação do paradigma produtivo fordista para o modelo flexível atual resulta também da apropriação que o status quo capitalista realizou da crítica ao modelo de trabalho da modernidade disciplinar (Boltanski; Chiapello, 2011). Em outros termos, significa dizer que a desintegração dos padrões estáveis de trabalho se deu por meio do próprio desejo dos trabalhadores, que não queriam passar a vida inteira empregados na mesma fábrica. Dessa apropriação capitalista do desejo (de autonomia, de liberdade, de emancipação), sustenta Fisher (2020), o pensamento crítico não se reestabeleceu.[xvi]

Pode-se dizer que a passagem do indivíduo obediente ao supostamente autônomo significa também a transformação do indivíduo disciplinado em indivíduo endividado (Deleuze, 1992; Fisher, 2020). Neste novo regime, o controle interno sucede a vigilância externa. Teoricamente livres e autônomos, são os próprios indivíduos que devem gerir e otimizar ao máximo suas capacidades, habilidades e potencialidades conforme as exigências das sociedades capitalistas contemporâneas.

Trata-se de uma nova forma de injunção segundo a qual é preciso administrar adequadamente também os capitais humanos subjetivos (López-Ruiz, 2007). Mobilizando os desejos dos indivíduos, a cultura capitalista contemporânea visa fazer convergir interesses pessoais e empresariais, o que a linguagem management opera de forma explícita.[xvii] É evidente que tal transformação não se deu de forma “natural”, mas a partir da incorporação da cultura neoliberal pelos próprios atores sociais para avaliar desempenhos institucionais, empresariais e individuais em regime de competição absoluta.[xviii]

Cumprir e superar metas estabelecidas por uma nova burocracia managerial nos setores privado e público se tornou o objetivo supremo – daí o endividamento contínuo. A avaliação meramente “satisfatória” de um serviço ou de uma “entrega”, segundo a linguagem corporativa disseminada no tecido social, pode ser insuficiente no contexto do imaginário neoliberal da ilimitação (Laval, 2020), no qual impera o culto da performance, da excelência e da excedência.

Portanto, para além de aspectos macroestruturais do neoliberalismo (privatização, desregulamentação, redução de gastos públicos sociais e supostamente da intervenção estatal[xix]), os valores da cultura neoliberal – tais como competição, isolamento, fragmentação, velocidade, mudança e individualização exacerbados – implicam diretamente a concepção e a conduta de vida dos indivíduos.

Trata-se de uma “ontologia empresarial” (Deleuze, 1992; Dardot; Laval, 2016; Fisher, 2020; Foucault, 2008) que envolve desde o Estado e as políticas públicas – formas e métricas de avaliação do desempenho em escolas, universidades, hospitais, tribunais de justiça – até os indivíduos na relação consigo próprios e com os outros.[xx] Entendido desse modo, o neoliberalismo não é realmente apenas uma política econômica, tampouco exclusivamente uma ideologia que mascararia a realidade efetiva conforme os interesses dominantes. Trata-se, antes de tudo, de uma forma de poder que produz realidade social (discursos, saberes, práticas) e sujeitos específicos (vide, por exemplo, a emergência e o lugar do coaching enquanto discurso e prática na sociedade atual).

É dessa maneira que o neoliberalismo constitui uma racionalidade (Dardot; Laval, 2016; Foucault, 2008) e, por extensão, uma cultura cujos valores orientam a conduta de vida (modos de pensar, sentir e agir) e produzem a subjetivação capitalista em sua forma neoliberal. Em outras palavras, a cultura neoliberal transforma o axioma capitalista do crescimento ilimitado via (auto)exploração e competição em “forma de vida”. Esse modo de produção de subjetividade e de sujeição não apenas engendra uma subjetividade instável e fragilizada como a institui como norma social.

Do ponto de vista sociológico, dessa precariedade subjetiva podem decorrer as formas atuais paradigmáticas de sofrimento psíquico: ansiedade (angústia proveniente do risco sempre eminente), depressão (sensação de fracasso em relação aos valores sociais vigentes), burnout (esgotamento laboral), déficit de atenção e hiperatividade (inquietação consequente da superestimulação conjugada com exigência de produtividade).

Precariedade subjetiva

A cultura neoliberal, enquanto conjunto de valores que estabelece a concepção de vida hegemônica e orienta a conduta individual, produz a precariedade em sentido generalizado. Em termos concretos, pode-se dizer que a precariedade é uma instituição moderna que acompanha o desenvolvimento do capitalismo em suas diferentes fases: liberalismo, taylorismo-fordismo, estado de bem-estar social, neoliberalismo.

No neoliberalismo, o processo de precarização é levado ao extremo, não apenas em razão de aspectos político-econômicos, tais como desregulamentações diversas – financeiras, ambientais, do mercado de trabalho –, subcontratação trabalhista, degradação salarial e a desconstrução de serviços públicos essenciais.[xxi] Em adição à precariedade objetiva, a cultura neoliberal estabelece a precariedade subjetiva a partir dos princípios que regem uma determinada concepção e condução de vida.

Para além da autonomia, da liberdade de escolha e da potência de agir que configuram o individualismo contemporâneo, determinadas características como mobilidade, velocidade, adaptação, assunção de risco e mudança instituem a precariedade subjetiva como condição para o sucesso social. Tal afirmação não se restringe, portanto, aos trabalhadores, às classes médias e inferiores: trata-se de um estilo e modo de vida dominante, disseminado no tecido social por discursos e práticas midiáticas, empresariais e de aconselhamento psicológico. O entendimento dessa condição pode contribuir para a compreensão e a problematização sociológicas dos problemas de saúde mental na atualidade.

O conceito de precariedade subjetiva não é totalmente estabelecido no campo das ciências humanas e sociais, ainda que possa ser inferido da literatura sociológica moderna e contemporânea. Ele difere, nesse aspecto, dos estudos sobre a noção de precariedade, examinada amplamente no campo da sociologia do trabalho. Les métamorphoses de la question sociale, de Robert Castel (1995), é um marco importante a respeito do conceito de precariedade e aborda também sua dimensão subjetiva.

Na obra, o sociólogo francês sustenta que a centralidade da categoria “trabalho” na sociedade contemporânea não é apenas econômica, mas também simbólica e psicológica. Desse modo, para além de relação técnica de produção, o trabalho constitui o suporte privilegiado de inscrição na estrutura social e, por meio dele, seria possível analisar o que o autor designa como “zonas de coesão social”, a saber, a integração (trabalho assalariado estável), a vulnerabilidade (faixa intermediária que conjuga precariedade laboral e fragilidade de suportes) e a desfiliação social (ausência de participação em atividade produtiva e isolamento).

Frente a tal classificação, é possível afirmar que o sentimento de incerteza e de vulnerabilidade proveniente da não integração social por meio do trabalho impacta os indivíduos não apenas em termos objetivos (condições materiais), mas também subjetivos (identidade, autoestima, relações sociais, bem-estar, expectativa em relação ao futuro).

Um avanço importante para o estabelecimento do conceito de “precariedade subjetiva” se dá, contudo, com as pesquisas de Danièle Linhart. A socióloga francesa elabora efetivamente o conceito para ampliar a perspectiva da precariedade no campo da própria sociologia do trabalho. Conforme Danièle Linhart (2008, 2009a, 2009b, 2015) argumenta em diversos estudos,[xxii] a precariedade subjetiva não concerne apenas aos trabalhadores que se encontram em trabalhos precários, com contratos temporários, baixos salários, horários irregulares, ausência de benefícios sociais e de proteção legal.

Ela é extensiva aos trabalhadores assalariados estáveis, submetidos às estratégias de dominação do management contemporâneo, que atribui centralidade à subjetividade dos indivíduos. Segundo Danièle Linhart (2008, p. 322), a precariedade subjetiva constitui as “novas mazelas no trabalho”. É que a nova gestão empresarial não apenas mobiliza integralmente a subjetividade dos indivíduos (aspectos relacionais, cognitivos, afetivos, emocionais) como requer deles a prova constante – muitas vezes às custas dos colegas de trabalho – de que estão à altura das exigências de excelência e do posto que ocupam.[xxiii] A precariedade subjetiva decorre, portanto, da centralidade e da mobilização da subjetividade dos assalariados.

Alinhada à perspectiva da psicodinâmica do trabalho de Christophe Dejours (1998), Danièle Linhart (2008, p. 322; 2009, p. 212) sustenta que a forma extrema da precariedade subjetiva pode levar até mesmo os “assalariados ‘bem integrados’” ao suicídio, o qual representa o signo cabal da inquietação e do inaceitável no mundo do trabalho contemporâneo.[xxiv] Como se vê, embora explícito em suas investigações, o conceito de “precariedade subjetiva” de Danièle Linhart está circunscrito à categoria trabalho. É verdade que o trabalho é uma categoria central incontestável na sociedade contemporânea, sobretudo se considerada a captura da subjetividade em sua totalidade e o ocaso praticamente completo da divisão entre tempo livre e tempo de trabalho no capitalismo cognitivo, imaterial e informacional. Mas o conceito de precariedade subjetiva pode ser ainda mais difuso na sociedade e mesmo fazer parte do ethos contemporâneo.

Para além do campo da sociologia do trabalho, uma extensão importante da ideia de precariedade em sua dimensão existencial e subjetiva figura em Judith Butler (2011, 2015) e, especialmente, em Isabell Lorey (2015). A partir da discussão ontológica sobre o que é uma vida, Judith Butler (2015) argumenta, em linhas gerais, que a precariedade é uma condição humana comum e, dessa forma, compartilhada por todos. No entanto, quando relacionados a organizações, normatividades e enquadramentos sociais e políticos que se desenvolvem historicamente, os graus de “precariedade existencial” variam conforme a “condição de precariedade”.

O argumento central é que toda vida é precária, no sentido de que é frágil e requer suportes políticos, econômicos e sociais para sua manutenção. No entanto, associada a essa concepção existencial de precariedade, a noção política de “condição precária” evidencia sua distribuição radicalmente desigual entre populações diversas, o que também se dá em torno do luto, do reconhecimento e da violência, maximizados para uns e minimizados para outros.[xxv]

Na esteira de Judith Butler, Isabell Lorey (2015) também argumenta que os processos de neoliberalização das sociedades contemporâneas intensificam ainda mais a distribuição desigual da precariedade. No entanto, a autora dá mais um passo ao argumentar que a precarização não apenas é efeito de estruturas sociais, políticas e econômicas como é ela própria, estruturante nas sociedades capitalistas contemporâneas. Em outras palavras, com base na noção foucaultiana de governamentalidade, a cientista política alemã sustenta que a precariedade é uma estratégia política de governo incorporada pelos próprios governados.[xxvi]

No neoliberalismo, argumenta Isabell Lorey (2015), a precarização estaria em processo de normalização, o que significa dizer que ela se democratiza e se torna uma condição comum – o que não implica, em hipótese alguma, nivelamento e homogeneidade das formas de precarização que incidem sobre indivíduos, grupos e classes sociais.[xxvii]. Institucionalizada e normalizada, a precariedade não seria episódica, mas uma forma de regulação e de controle social que caracteriza as sociedades capitalistas contemporâneas, em que a insegurança constitui a preocupação central dos sujeitos, como também assinala Butler (Lorey, 2015, p. VIII) no prefácio à obra.[xxviii]

Mobilizando o desejo individual que reivindica a liberdade e recusa a obediência ao paradigma fordista-disciplinar, a tecnologia de governo neoliberal pôde transformar a precariedade em forma de (auto)governo, em que a condição de insegurança se torna generalizada. Daí o significado ambivalente da precariedade no imaginário social: por um lado, exploração irrestrita; por outro, liberação de antigas formas de dominação. A questão governamental seria, então, gerir e balancear o limite aceitável – embora não precisamente calculável – entre o máximo de precariedade e o mínimo de salvaguardas, de modo a evitar insurreições sob a permanente alegação thatcheriana de que “não há alternativa” (Lorey, 2015, p. 65).[xxix] Para a autora, portanto, o neoliberalismo normaliza e institucionaliza a incerteza e a desestabilização, razão pela qual a precariedade é socialmente difusa, não se restringindo, tal como para Linhart, às margens da sociedade.

Mas podemos dizer ainda que a precariedade, se entendida não exclusivamente como escassez e insegurança, mas também – conforme autorizam a etimologia e as acepções do termo[xxx] – como efemeridade e transitoriedade, constitui uma parte do próprio ethos dominante do capitalismo neoliberal contemporâneo. Trata-se de uma forma de vida (modo de pensar, sentir e agir) e, portanto, de uma constituição subjetiva hegemônica, em torno da qual gravitam noções-chave da sociedade capitalista contemporânea. No breve texto “Precariedade como ‘estilo de vida’ na era neoliberal”, Christian Laval (2017) formula as expressões “cultura da precariedade” e “precariedade de luxo”.

Frutíferas, elas mostram a valorização e a promoção de um modo de vida proveniente do alto da estratificação social. Trata-se do enaltecimento de atributos como assunção de risco, velocidade, mobilidade, flexibilidade, dinamismo, incerteza e mudança. É como se a volatilidade do mercado financeiro de ações da bolsa de valores devesse ser incorporada e gerida pelo humano. Em síntese, trata-se da institucionalização – em termos de prática social – da incerteza em nome da suposta liberdade e autonomia individuais que caracterizam a época neoliberal contemporânea.

Entre outros, os sociólogos Bauman (2001) e Sennett (2019) mostraram, cada um à sua maneira, a alteração do paradigma moderno da estabilidade disciplinar para o paradigma contemporâneo da instabilidade pós-disciplinar. Suas noções amplamente conhecidas de liquidez e de corrosão do caráter expressam essa transformação social. O que essas noções designam fundamentalmente é a ausência de solidez e o desmedido elogio da efemeridade e da mudança.

Semelhantes diagnósticos sociológicos das sociedades capitalistas contemporâneas evidenciam que a fragmentação, o deslocamento, a desordem, o risco, a instabilidade não apenas não constituem problema para a vida individual e social como seriam a regra de ouro para o sucesso. Os “vencedores” as atraem, ao passo que os “perdedores” as repelem.[xxxi] É nesse sentido que queremos dizer que a precariedade subjetiva constitui não apenas o efeito da cultura neoliberal como é ela própria, uma parte do ethos dominante; ela participa do modo e da concepção de vida socialmente hegemônicos; ela é um aspecto que o espírito do capitalismo contemporâneo requer de indivíduos “bem-sucedidos”.

Para apresentar a origem do termo “flexibilidade” na língua inglesa, Sennett (2019, p. 53) informa que seu sentido deriva “da simples observação de que, embora a árvore se dobrasse ao vento, seus galhos sempre voltavam à posição normal”. Flexibilidade significaria, portanto, “essa capacidade de ceder e recuperar da árvore, o teste e [a] restauração da sua forma”. Barbara Stiegler (2019), em seu estudo minucioso sobre a genealogia do neoliberalismo a partir de fontes evolucionistas, sustenta que a questão fundamental do neoliberalismo – e da sociedade industrial, de maneira geral – sempre foi a adaptação (à aceleração, à competição, à produtividade, à otimização e a um ambiente que requer a ilimitação das capacidades humanas).

Sociologicamente, a elevada incidência de transtornos mentais paradigmáticos de nossa época (ansiedade, depressão, burnout, TDAH), os quais estão estritamente relacionados à lógica e à concepção social atual de vida, pode ser índice da transposição do sentido original do termo “flexibilidade” enquanto conceito de primeira ordem na cultura neoliberal, uma vez que a restauração da normalidade (isto é, a adaptação) já não está mais a salvo.[xxxii] Levando adiante a imagem oferecida por Sennett, podemos dizer que o desmatamento – efeito da exploração de recursos naturais – não é, nesse sentido, exclusivamente ambiental. A violência baseada no mesmo princípio incide igualmente sobre a vida psicológica humana. É o que Mark Fisher procurava mostrar ao afirmar a existência da crise psíquica, cujo avanço se intensificava juntamente com a ecológica nas sociedades capitalistas contemporâneas sem, contudo, a mesma atenção política e estrutural.

Politizar a saúde mental

Enfrenta-se atualmente uma contradição notável. Por um lado, o imaginário sociocultural – fundamentado em discursos e práticas oficiais, científicas e midiáticas – busca promover a saúde mental. O que está em jogo não é apenas prevenir e tratar o sofrimento psíquico, mas também tornar o bem-estar tanto quanto melhor (better than well), conforme a conhecida fórmula da psicofarmacologia cosmética de Peter Kramer (1993).

Com efeito, o conceito contemporâneo de saúde mental abrange tanto a saúde como a doença em todas as suas variações e extremidades (Corbanezi, 2021b; Ehrenberg, 2004a; 2004b). Por outro lado, o mesmo imaginário que visa promover a saúde mental baseia-se na autoexploração subjetiva,[xxxiii] da qual decorre também a condição de precariedade subjetiva. Nesse sentido, cultura do mal-estar privado e medicina do bem-estar e do aperfeiçoamento fazem parte de uma mesma dinâmica (Ehrenberg; Lovell, 2001, p. 18).

Ora, como dispor de uma saúde mental efetiva – pela qual o indivíduo seria exclusivamente o responsável – em um contexto em que a injunção social reside na competição, no desempenho, na aceleração, na mudança, na efemeridade e no individualismo ilimitados? Em outros termos, como promover a saúde mental individual incitando socialmente a precariedade subjetiva?[xxxiv]

Ao abordar a saúde mental tanto em seu polo positivo de produção do bem-estar quanto no polo negativo de produção do sofrimento psíquico, a sociologia pode contribuir para a compreensão e a politização do tema. Primeiro porque sociologizar aqui já implica submeter o problema a uma dimensão política, no sentido amplo de produção de subjetividades e de governo de condutas: quais os tipos de sujeitos produzidos em uma sociedade fundamentada na cultura neoliberal e como eles são (auto)governados? Em seguida, pois, ao sociologizar o problema, podemos percebê-lo como experiência social, diferentemente do que propõem as explicações predominantes da psiquiatria e da cultura neoliberal, que tendem a reduzir o sofrimento à dimensão individual.

Como já afirmamos, para a concepção psiquiátrica hegemônica, os transtornos mentais são, em geral, o efeito de disfunções neuroquímicas (Corbanezi, 2021b). Para a cultura neoliberal, trata-se de uma dimensão da vida cuja responsabilidade e cujo gerenciamento competem ao indivíduo. As duas explicações, convém sublinhar, parecem contraditórias entre si, uma vez que o desequilíbrio neuroquímico não poderia reduzir-se à responsabilidade individual.

Acometido pela depressão, Fisher (2020) se empenhou na tarefa de politizar o sofrimento psíquico. É como se a depressão não fosse dele. O autor leva adiante, assim, a tese de Deleuze e Guattari (2010) segundo a qual o delírio é sempre histórico-mundial.[xxxv] Dialogando com a tradição teórica antipsiquiátrica dos anos 1960 e 1970, cujo modelo patológico de análise por excelência era a esquizofrenia, o crítico cultural alerta para a necessidade de politizar os transtornos comuns e cotidianos da nossa atualidade. Em vez de aceitar a “privatização do estresse”, deveríamos nos perguntar: “quando se tornou aceitável que uma quantidade tão grande de pessoas, e uma quantidade especialmente grande de jovens, estejam doentes?”.

A questão remete, vale insistir, ao princípio sociológico básico de Mills (1969) a respeito da relação entre perturbações privadas e questões públicas,[xxxvi] a qual constitui, atualmente, a linguagem própria e global da saúde mental (Ehrenberg, 2012, p. 425). Problematizando as formas de “voluntarismo mágico” – essa “religião não oficial do capitalismo contemporâneo” segundo a qual os indivíduos seriam capazes de sair de suas próprias condições, aí compreendidas as patológicas –, Fisher (2020, p. 140, 137) sustenta que diversas formas de depressão seriam mais bem compreendidas e combatidas “por meio de quadros analíticos impessoais e políticos, e não individuais e ‘psicológicos’”.[xxxvii] A biomedicalização do sofrimento e a redução da cultura neoliberal à dimensão individual seriam, dessa forma, proporcionais à despolitização das condições de saúde mental e coerentes com a configuração individualista das sociedades ocidentais contemporâneas.

De fato, em regra, os recursos mobilizados atualmente para combater o sofrimento psíquico ou promover a saúde mental são individuais e/ou corporativos (medicação, terapias, exercícios físicos, discursos motivacionais, práticas de meditação e de coaching); são estratégias para integrar e conformar o indivíduo, já que a saúde mental se define, grosso modo, pelo ajustamento e pela adaptação às normas sociais.[xxxviii] As formas paradigmáticas atuais de sofrimento psíquico não são, porém, transgressões às normas sociais: elas resultam, antes de tudo, da busca individual para realizá-las. No entanto, para além das estratégias individuais e empresariais para enfrentar o sofrimento psíquico, cujas propostas tendem a se basear na manutenção da ordem, quais experiências coletivas e terapêuticas poderiam confrontar a precariedade subjetiva enquanto efeito e norma social?

Um estudo de caso empírico apresenta uma experiência relevante neste sentido. Em pesquisa de mestrado no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), Guilherme Boulos (2016) mostra empiricamente a remissão de sintomas depressivos em indivíduos por meio da participação coletiva e da sociabilidade diversa em ocupações de sem-teto em São Paulo. O grupo pesquisado a partir de métodos qualitativos e quantitativos é relativamente homogêneo: vidas em condições de precariedade absoluta, cuja característica predominante é a situação de privação.

Em perspectiva longitudinal, os dados mostram a remissão dos sintomas depressivos após o ingresso no movimento social. Os depoimentos indicam que vidas despedaçadas se reintegram, ao menos subjetivamente, ao participar de um movimento coletivo popular. Os motivos da remissão dos sintomas são os vínculos de solidariedade, o acolhimento, o reconhecimento, o resgate da autoestima, o sentimento de pertencimento, a superação do sentimento de invisibilidade e de inutilidade, a ampliação qualitativa das relações sociais, e assim por diante. Uma forma de sociabilidade diametralmente oposta aos princípios da cultura neoliberal (competição, desempenho, individualismo, isolamento) pode figurar em tal experiência como alternativa coletiva à precariedade subjetiva e ao sofrimento psíquico que dela decorre.

Não se trata, evidentemente, de um caso isolado. Há outros tantos em curso como historicamente já experimentados. No livro História da psicanálise popular, Gabarron-Garcia (2023) empreende uma politização da psicanálise. Para combater o sentido apolítico e burguês atribuído à disciplina, o autor percorre uma série de experiências históricas para mostrar sua dimensão política e revolucionária.[xxxix] Todas elas procuram, em alguma medida, subverter as relações sociais hierárquicas e baseadas na sociabilidade capitalista individualizante e competitiva.[xl] O autor conclui a obra evocando uma série de experiências em curso mundialmente, destacando, no caso brasileiro, a constituição dos CAPS no sistema público de saúde e coletivos psicanalíticos de acolhimento e de escuta gratuita em espaços públicos.

Deivison Faustino (2022, p. 276-278) também traz à tona uma série de estudos e grupos de pesquisa e de intervenção a partir da influência de Franz Fanon e do aumento exponencial do interesse sobre a obra do psiquiatra martinicano recentemente também no chamado campo psi, com destaque para a psicologia das relações raciais e a relação com a esquizoanálise. Na mesma direção de uma nova politização da psiquiatria e da saúde mental atualmente, vale notar a retomada do interesse pela psicoterapia institucional que visa tratar as instituições e subverter a hierarquia e os papéis estabelecidos das relações sociais mediante processos institucionais de coletivização.[xli]

De maneira mais ampla, sublinhemos ainda o interesse atual pelo tema do “comum”, de que a obra homônima de Dardot e Laval (2015) é exemplar. Para os autores, “comum” designa uma racionalidade política alternativa à racionalidade neoliberal e implica uma transformação radical do sistema de normas que ameaçam a humanidade e a natureza. Enquanto princípio político geral, “comum” resultaria do que os autores chamam de “práxis instituinte”, que são práticas coletivas dispersas, diversas e mesmo marginais, das quais os exemplos de sociabilidade, de práticas terapêuticas, de estudos e de intervenções que mencionamos podem fazer parte.[xlii]

Embora não exaustivos, as experiências e os estudos aqui assinalados podem contribuir para a politização do sofrimento psíquico ao evidenciar o quanto a subjetivação capitalista neoliberal e as relações sociais de dominação e de competição que dela decorrem são parte da explicação da elevada incidência do sofrimento psíquico na atualidade.

Tanto quanto sustenta a política ecológica consequente, a saída para a crise epidêmica do sofrimento psíquico parece residir também em uma transformação coletiva (e não simplesmente individual) dos nossos modos de vida e de sociabilidade.[xliii] Uma realidade que o status quo, representado por órgãos governamentais, agências multilaterais, mídia, empresas e elites, não pode efetivamente enunciar. Entendida aqui como politização, tal perspectiva constitui, a nosso ver, mais uma maneira de levar a sério a partícula “social” (para além de “fatores socioeconômicos”) do fenômeno definido oficialmente como “biopsicossocial”.

Considerações finais

Vimos os valores que fundamentam a cultura neoliberal e que constituem tanto uma concepção de vida quanto o referencial atual a partir do qual os indivíduos a conduzem. Nesse cenário, a precariedade subjetiva figura não apenas como efeito da subjetivação capitalista neoliberal, mas também como norma social, uma vez que os indivíduos são instados a incorporar os valores da cultura neoliberal para alcançar o sucesso social. Consideramos que tais modos de vida e valores sociais devem inevitavelmente participar da explicação da elevada incidência de sofrimento psíquico na atualidade, com destaque para os transtornos paradigmáticos relacionados à subjetivação capitalista neoliberal (ansiedade, depressão, burnout, TDAH).

Procuramos argumentar que o esgotamento psíquico se dá segundo a mesma lógica do esgotamento dos recursos naturais de que a crise ecológica atual é emblemática, razão pela qual apenas uma transformação coletiva da concepção de mundo e de vida podem contribuir para a desaceleração de ambas as formas de crise. Dessa maneira, sem desconsiderar a existência de elementos biológicos e psicológicos, visamos mostrar a relevância de politizar os problemas de saúde mental como experiência social e coletiva em que os valores sociais contemporâneos desempenham um papel fundamental.

Notas

[i] Como testemunha A queda do céu, os povos indígenas lidam com epidemias (xawara) mortais desde o contato com o “povo da mercadoria”, como Davi Kopenawa se refere aos brancos da civilização ocidental. “Sempre fico consternado quando olho para o vazio na floresta em que meus parentes eram tão numerosos. A epidemia xawara nunca foi embora de nossa terra e, desde então, os nossos continuam morrendo do mesmo modo” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 245-246). Na pandemia de covid-19, tudo se passava como se todos tivéssemos nos tornados indígenas, conforme a célebre formulação de Lévi-Strauss segundo a qual estaríamos fazendo de nós o que fizemos deles (Albert, 2020; Castro, 2021).

[ii] Para Philippe Descola (2021), a pandemia de covid-19 pode ser compreendida a partir do conceito de “fato social total”, de Marcel Mauss, isto é, como fenômeno revelador da natureza profunda de uma sociedade. É nesse sentido que, segundo o antropólogo, a pandemia de covid-19 tornava possível a exacerbação dos traços do capitalismo pós-industrial que governa o mundo atual.

[iii] Sabe-se que a pandemia de covid-19 ameaçava exclusivamente a experiência humana, diferentemente da crise ecológica – a um só tempo climática e ambiental –, que coloca inteiramente em risco a natureza. Como salientou o sociólogo Anthony Giddens (1991) já nos anos 1990, a crise ecológica figura entre as consequências da modernidade, isto é, um efeito não esperado do desenvolvimento do capitalismo moderno e igualmente não previsto pelos clássicos fundadores da sociologia que o analisavam.

[iv] Em análise de documentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre políticas globais de saúde mental, Sônia Maluf apresenta, neste dossiê, os contornos de planos de ações e metas globais da OMS para a saúde mental. A pesquisadora mostra também como o discurso oficial da OMS sobre a saúde mental é um campo em disputa: de um lado, enfatiza-se o reconhecimento do papel de fatores sociais, culturais e econômicos para a compreensão dos problemas de saúde mental; de outro, as estratégias para a efetivação de planos e metas tendem a se reduzir à configuração individualista, da qual participam tanto a racionalidade neoliberal quanto a explicação psiquiátrica. Em última instância, argumenta a autora, a configuração individualista resta hegemônica no discurso oficial da OMS.

[v] Já nos anos 1950, o sociólogo estadunidense criticava a redução – realizada pela psiquiatria e pela psicanálise – das patologias mentais a problema individual, desferindo, nesse sentido, uma crítica contundente a Ernest Jones (Mills, 1969, p. 19-20). Sobre o papel conservador desempenhado por Jones na promoção de Freud e da psicanálise, ver Gabarron-Garcia (2023).

[vi] Uma amostra das dificuldades da implementação de tais dispositivos pode ser conferida no estudo de caso de Barros (2023).

[vii] Convém notar que a transformação radical do paradigma psiquiátrico com a publicação do DSM-III (APA,1980) em 1980 se dá concomitantemente com os processos de neoliberalização das sociedades capitalistas ocidentais. Esse é um assunto que abordamos em Corbanezi (2018; 2021b).

[viii] Tomemos como base o raciocínio lógico radical de manifestações socioecológicas a respeito da crise climática, o qual se personifica também na figura da jovem ambientalista Greta Thumberg: mudemos o sistema, não o clima (Löwy, 2023). Em crítica à forma socialmente alienada de produção do conhecimento científico, o matemático Alexander Grothendieck (2014) também afirmava que não bastava mudar o modo de produção do conhecimento, mas o modelo industrial de civilização no qual ele está inserido.

[ix] Em discussão teórico-metodológica sobre a relação indivíduo-sociedade, Norbert Elias (2011, p. 230) assim define o homo clausus: “A concepção do indivíduo como homo clausus, um pequeno mundo em si mesmo que, em última análise, existe inteiramente independente do grande mundo externo, determina a imagem do homem em geral”.

[x] Voltado à realidade psíquica, trata-se do mesmo postulado sociológico geral de Mills (1969, p. 10): “A história que atinge todo homem é a história mundial”.

[xi] Boa parte da produção intelectual chama a atenção para a correlação causal entre sofrimento psíquico e sociedade. Contemporaneamente, podemos destacar desde Fanon (2020), que mostrou, nos anos 1950 e 1960, os efeitos do colonialismo sobre o psiquismo, passando por diferentes perspectivas antipsiquiátricas (Basaglia, Laing, Cooper, Szasz), até mais recentemente Han (2017), que sustenta que a produção do sofrimento psíquico decorre da sociedade do desempenho. Segundo Ehrenberg (2012), tal abordagem normativa, da qual o autor se distancia, é predominante nos estudos sociológicos, antropológicos, filosóficos e psicanalíticos sobre o tema e frequentemente demandada também por profissionais da saúde mental.

[xii] Sabemos que a epidemia dos transtornos mentais é também uma construção social, o que significa dizer que ela é produzida enquanto ideia por diferentes discursos, como o médico, o científico, o econômico e o social. A esse respeito, ver Corbanezi (2021b), em que procuramos mostrar a produção da ideia de epidemia depressiva a partir da afinidade entre o desenvolvimento da nosologia psiquiátrica dos transtornos depressivos e os valores sociais do capitalismo contemporâneo.

[xiii] Limitamo-nos aqui a indicar os seguintes estudos sobre as origens e as variações teóricas e históricas do neoliberalismo: Foucault (2008), Dardot e Laval (2016), Harvey (2008) e Stiegler (2019). Analisamos detidamente o assunto em Corbanezi e Rasia (2020).

[xiv] Crescimento ilimitado via exploração: eis a razão lógica segundo a qual o capitalismo moderno e contemporâneo não pode ser sustentável. Necessária, tal crítica de que o capitalismo é ecologicamente insustentável se tornou atualmente banal, como afirmam Dardot e Laval (2015, p. 514). Queremos problematizar aqui a crise psíquica baseada no mesmo princípio.

[xv] É o que o sociólogo francês nomeia como a passagem da autonomia-aspiração (vontade de emancipação no contexto da sociedade disciplinar) para a autonomia-condição (sociedade emancipatória pós-disciplinar, em que a autonomia se torna norma social) (Ehrenberg, 2012).

[xvi] Nos termos de Fisher (2020, p. 63): “[…] a esquerda nunca se recuperou da rasteira que o capital lhe passou ao mobilizar e metabolizar o desejo de emancipação frente à rotina fordista”. Inspirado também em Deleuze e Guattari – os quais, para Fisher (2020, p. 14), apresentam a interpretação do capitalismo “mais impressionante desde Marx” –, a questão fundamental para o autor de Realismo capitalista é como (re)capturar o desejo para a transformação da realidade social.

[xvii] Vide, por exemplo, o eufemismo de termos como “parceiros” e “colaboradores” para substituir termos clássicos como “trabalhador” e “operário”, bem como a supervalorização da felicidade, da descoberta de sentido no trabalho e do espírito sacrifical e de equipe. Sobre a mobilização da subjetividade pelas novas formas de gestão empresarial, ver Linhart (2015).

[xviii] Vale notar, por exemplo, o processo de implementação da cultura neoliberal nas universidades brasileiras, que poderiam ser, em princípio, o lugar de resistência por excelência aos valores neoliberais (Corbanezi, 2021a; Sguissardi; Silva Junior, 2018; Silva, 1999).

[xix] Não obstante a terminologia comum do “Estado mínimo”, sabe-se que, desde sua fundação, o neoliberalismo se baseia na reconstrução de um Estado forte para a defesa de políticas econômicas favoráveis às classes dominantes (Bourdieu, 1998; Dardot; Laval, 2016; Foucault, 2008; Wacquant, 2012). Como Fisher (2020) assevera recorrentemente, por exemplo, foi o Estado que salvou os bancos na crise econômica de 2008.

[xx] Dardot e Laval (2016, p. 356-357) cunharam o termo “ultrassubjetivação” para apreender esse ethos individual que poderia ser sintetizado na fórmula “o além de si em si”.

[xxi] Como mostra Fábio Franco (2021), o neoliberalismo se baseia essencialmente no imperativo “Fazer precarizar”.

[xxii] O conceito aparece explicitamente em Linhart (2009a, 2015). Nos estudos de Linhart (2008, 2015), ele decorre da ideia central de que a exploração e a mobilização absoluta da subjetividade fragilizam subjetivamente o trabalhador contemporâneo, que não possui, como a autora observa, duas subjetividades, uma para o trabalho e outro para a vida fora do trabalho (Linhart, 2008, p. 209).

[xxiii] Eis como Linhart (2009a, p. 2) define o conceito: “É o sentimento de não estar à vontade no trabalho, de não poder confiar nas rotinas profissionais […]; é o sentimento de não dominar seu trabalho e de dever desenvolver, sem interrupção, esforços para se adaptar, para realizar os objetivos estabelecidos, para não se colocar em risco física e moralmente […]. É o sentimento de não ter recursos em casos de problemas graves no trabalho, nem do lado da hierarquia (cada vez mais rara e menos disponível), nem dos coletivos de trabalho que se desgastaram com a individualização sistemática da gestão dos assalariados e a colocação deles em concorrência. É, assim, o sentimento de isolamento e abandono. É a perda da estima de si, relacionada com o sentimento de mal dominar seu trabalho, com o sentimento de não estar à altura dele. É o medo, a ansiedade, o sentimento de insegurança que se nomeia comodamente de estresse”.

[xxiv] O caso emblemático são os suicídios em série na empresa France Telecom. Na mesma direção, Standing (2014, p. 29, 85-89) também sustenta que o precariado, cujas características centrais são a incerteza e a insegurança crônicas, avança no serviço público, apesar da “tão cobiçada segurança de vínculo empregatício”. O autor argumenta que a flexibilidade funcional, os deslocamentos, as avaliações e a cobrança por desempenho ocasionam intenso sofrimento pessoal. Fisher (2020) mostra igualmente como o gerencialismo, baseado na cultura da auditoria, do desempenho e da flexibilidade, tende a suprimir os valores clássicos do que se entende por serviço público.

[xxv] Nos termos de Butler (2015, p. 38): “A precariedade tem de ser compreendida não apenas como um aspecto desta ou daquela vida, mas como uma condição generalizada cuja generalidade só pode ser negada negando-se a precariedade enquanto tal. E a obrigação de pensar a precariedade em termos de igualdade surge precisamente da irrefutável capacidade de generalização dessa condição. Partindo desse pressuposto, contesta-se a alocação diferencial da precariedade e da condição de ser lamentado. Além disso, a própria ideia de precariedade implica uma dependência de redes e condições sociais, o que sugere que aqui não se trata da ‘vida como tal’, mas sempre e apenas das condições de vida, da vida como algo que exige determinadas condições para se tornar uma vida vivível e, sobretudo, para tornar-se uma vida passível de luto”. A autora também realiza a discussão da distribuição desigual da precariedade, do luto e da violência a partir de esquemas normativos que definem o grau de variedade do que é humano em Butler (2019).

[xxvi] Lembremos que Foucault (2008) assegura que a sofisticação da tecnologia de poder neoliberal reside sobretudo na capacidade de governar a partir da racionalidade dos próprios governados. Eis a chave para pensar o neoliberalismo como racionalidade.

[xxvii] A autora é categórica a esse respeito: “O processo de normalização [da precariedade] não implica igualdade na insegurança” (Lorey, 2015, p. 66).

[xxviii] Convém notar que Bourdieu (1998) já afirmava nos anos 1990 que a precariedade não seria apenas um efeito econômico, mas também uma estratégia política de descoletivização, razão pela qual a resistência coletiva se tornava cada vez mais distante no contexto da precarização. Analisando movimentos em torno de subjetividades precárias como o EuroMayDay, Lorey (2015) defende a necessidade de elaboração de novas formas políticas de resistência a partir da própria condição de precariedade. Neste aspecto, a autora critica especialmente Robert Castel, que, diferentemente de Bourdieu, pôde testemunhar o desenvolvimento global do movimento EuroMayDay, mas não teria percebido capacidades políticas em subjetividades precárias. Para Standing (2014, p. 15-19), por sua vez, seria necessário passar do âmbito simbólico e carnavalesco de movimentos que afirmam individualidades e identidades a partir da condição comum da precariedade para o programa político mediante a constituição do precariado como classe-para-si.

[xxix] A ideia de que não há alternativa é, vale dizer, a base do que Fisher (2020) designa por “realismo capitalista”.

[xxx] Proveniente do latim precarius, o termo precário designa, em sua etimologia, o que é “obtido por meio de prece; tomado como empréstimo; alheio; estranho; passageiro” (Houaiss; Villar; Franco, 2009). Com efeito, em língua francesa, além de incerteza e instabilidade, o termo précaire significa também efemeridade, fugacidade, passagem (Le Petit Robert, 2001). A ideia de efemeridade, de passagem e de mudança é igualmente central para a noção clássica de trabalho precário.

[xxxi] Caracterizando a elite global contemporânea formada pelos “senhores ausentes”, Bauman (2001, p. 22) argumenta que “mover-se leve, e não mais aferrar-se a coisas vistas como atraentes por sua confiabilidade e solidez […], é hoje recurso de poder”.

[xxxii] Vide os dados apresentados na introdução deste artigo. No contexto da pandemia de covid-19, em que houve uma aceleração das tendências sociais (Corbanezi, 2023), a OMS informou o aumento de 25% da prevalência de ansiedade e de depressão no mundo (Opas, 2022).

[xxxiii] Da mesma forma que o capitalismo não se realiza sem a precariedade, sabemos desde Marx que o capital não existe sem a exploração. Se o humano devém capital, a exploração se dobra sobre o próprio indivíduo, não obstante o subterfúgio verbal da teoria do capital humano de que se trata sempre de “investimento”.

[xxxiv] Linhart (2015, p. 129) sublinha como o discurso e a prática do management contemporâneo se assentam em uma lógica igualmente paradoxal: de um lado, solicita-se cada vez mais do assalariado a excelência, a tomada de risco, o engajamento total; de outro, ele é impelido a um sentimento de impotência e de medo que podem levá-lo à paralisia. É como requerer do indivíduo a concentração para aumentar a produtividade mergulhando-o, ao mesmo tempo, na superexcitação do mundo virtual. Standing (2014) e Fisher (2020) sustentam que a hiperconectividade contemporânea compromete a formação intelectual e cognitiva do precariado e da juventude, respectivamente.

[xxxv] Carmen Silva (2021, p. 287), liderança do Movimento dos Sem-Teto do Centro, em conversa na Ocupação 9 de Julho, em São Paulo, após afirmar que o delírio de pessoas em situação de rua no contexto da pandemia de covid-19 se baseia em questões concretas, assim expressa tal condição delirante: “Quando eu chego em casa, eu carrego todo o amedrontamento do mundo, todo o delírio de todo mundo, que é a fome, que meu marido está desempregado, que eu vou morrer, que meu filho está com fome”.

[xxxvi] A respeito da relação entre males privados e questões sociais na sociologia pública e política de Mills, ver o erudito ensaio de Gabriel Cohn (2013).

[xxxvii] Em seu estudo sobre o precariado, Standing (2014) sustenta que a ansiedade e o sofrimento pessoal são uma condição normal dessa categoria que vive a insegurança de forma aguda e crônica. O autor então problematiza a individualização do sofrimento a partir da hegemonia da terapia cognitivo-comportamental, recomendada às pessoas após a crise econômica de 2008 pelo governo do Reino Unido, que, dessa forma, não enfrentava questões estruturais produtoras do sofrimento pessoal. Como diz o autor, “não há nada errado com a terapia em si. O que é duvidoso é o seu uso pelo estado como parte integrante da política social” (Standing, 2014, p. 216).

[xxxviii] Observe-se, nesse sentido, a definição de transtorno mental (mental disorder) vigente desde o DSM-III. Em razão da ausência de dados laboratoriais definitivos, o sofrimento e o prejuízo na capacidade de funcionamento do indivíduo em alguma dimensão da vida (pessoal, escolar, familiar, laboral) definem o transtorno mental. O psiquiatra e psicanalista brasileiro Mario Eduardo Costa Pereira (2013) problematiza o conceito de mental disorder a partir da ideia de que, para definir a disorder, seria logicamente necessário definir a order, o que o DSM não realiza. De certa forma, é o que procuramos fazer aqui ao submeter os problemas de saúde mental (mental disorder) a uma perspectiva sociológica que visa compreendê-los em relação aos valores sociais da cultura neoliberal (social order).

[xxxix] Entre as experiências abordadas no livro, figuram a defesa freudiana pela clínica popular antes do seu pessimismo cultural e da apropriação e promoção das ideias de Freud por Ernest Jones, a psicanálise de Vera Schimidt com crianças na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a politização sexual de Wilhelm Reich contra o fascismo, a trajetória e as experiências terapêuticas de Marie Langer na Europa e na América Latina, a psicoterapia institucional de François Tosquelles, a clínica La Borde com Jean Oury e Félix Guattari e a experiência radical do coletivo alemão Coletivo de Pacientes Socialistas (SPK) em Heidelberg.

[xl] A experiência de Maria Langer e seus colegas, por exemplo, visava modificar as relações sociais entre seus pacientes para estabelecer uma outra base subjetiva e coletiva. “Pudemos observar como o processo terapêutico dos grupos evoluía à medida que surgia e consolidava-se a solidariedade entre os integrantes do grupo, não obstante as rivalidades, tensões e ambivalências existentes. Nos grupos contrapusemos a solidariedade à competição doentia do sistema” (Langer apud Gabarron-Garcia, 2023, p. 138).

[xli] Prova da renovação de tal interesse são, entre outros, a publicação (e a tradução) de Gabarron-Garcia (2023), o estudo de Camille Robcis (2024), a publicação recente no Brasil da coletânea de textos de François Tosquelles (2024). Também anotamos a exposição coletiva “Touché l’insensé”, no Palais de Tokyo, em Paris, em 2024, voltada ao histórico da psicoterapia institucional e às experiências coletivas atuais em torno da sua prática terapêutica.

[xlii] As lutas políticas que obedecem à racionalidade política do comum se apresentam, segundo os autores, como “pesquisas coletivas de novas formas democráticas”. O projeto revolucionário do “comum”, afirmam, “só se pode conceber articulado a práticas de natureza muito diversa, econômicas, sociais, políticas, culturais. Na condição de que linhas de força comuns acabem por emergir suficientemente através dos vínculos entre os atores dessas práticas, uma ‘significação imaginária’ pode terminar por cristalizar e dar sentido ao que parecia até então ser apenas ações ou tomadas de posição dispersas, diversas e mesmo marginais” (Dardot; Laval, 2015, p. 19, 582, 578).

[xliii] Quando a pandemia de covid-19 evidenciou de forma aguda os problemas crônicos das sociedades capitalistas neoliberais, Descola (2021) sustentou que a cura só poderia residir em uma reviravolta radical dos nossos modos de vida, uma transformação do pensamento semelhante àquela provocada pelo Iluminismo. Problematizando a questão ecológica e o falso problema da noção de sustentabilidade a partir da perspectiva indígena, segundo a qual a ideia de sustentabilidade é incompatível com o desenvolvimento industrial extrativista e predatório, Krenak (2019, p. 12) pergunta se somos efetivamente uma humanidade. A questão se aplica aqui, para nós, também à ecologia psíquica.

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Elton Corbanezi é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Autor de Saúde mental, depressão e capitalismo (Unesp).

DM TEM DEBATE

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Saúde mental, neoliberalismo e subjetividade

Projeto de Lei pede para liberar trabalhadores em calor extremo

O Rio Grande do Sul vivenciou, nesta terça-feira (4), a maior temperatura oficialmente registrada nos últimos 115 anos, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (INMet). A cidade de Quaraí, chegou a registrar 43,8ºC, já Porto Alegre 37,3ºC. Visando a segurança e a saúde de servidores e trabalhadores terceirizados que atuam ao ar livre em dias de calor extremo na Capital, o vereador Giovani Culau e o mandato coletivo (PCdoB) protocolaram um Projeto de Lei para liberar os profissionais em casos de temperatura elevada.

“As mudanças climáticas têm provocado a intensificação de eventos extremos, seja chuvas extraordinárias e acima da média, seja ondas de calor extremo. Entre os anos 2000 e 2018, nós tivemos mais de 3.000 óbitos em Porto Alegre em razão do calor extremo. É a partir daí que surge a nossa proposição de um projeto de lei que libera os trabalhadores expostos ao sol, aqueles que trabalham ao ar livre, de trabalhar em dias de calor extremo”, afirma ao Brasil de Fato RS Giovani Culau.

O PL define calor extremo como temperaturas significativamente acima da média, que representem risco à saúde humana e estejam associadas a índices elevados de radiação solar. A proposta prevê que a regulamentação da medida será baseada nos alertas emitidos pela Defesa Civil, garantindo critérios objetivos para a suspensão das atividades. “Tudo isso sem prejudicar os salários e garantindo com que também os trabalhadores terceirizados e terceirizadas sejam beneficiados por esse projeto, que tem um caráter humanitário e de compatibilização da gestão pública com a nova realidade climática”, frisa o parlamentar.

Segundo o parlamentar, medidas semelhantes já foram implementadas em outros países, como a Espanha, que aprovou em 2023, a proibição de determinadas atividades ao ar livre, como a limpeza de ruas e o trabalho agrícola, durante períodos de calor extremo. “Já assistimos a muitos episódios, certamente muito graves, na limpeza e recolha de resíduos, em que os trabalhadores morreram devido a golpes de calor”, afirmou a ministra do Trabalho da Espanha, Yolanda Diaz.

Para o vereador, políticas como essas têm demonstrado eficácia na proteção da integridade física dos trabalhadores e na adaptação às novas condições climáticas globais. “Reconhecemos que a exposição prolongada ao sol, especialmente em dias de emergência climática, representa riscos significativos à saúde dos trabalhadores. Altas temperaturas e elevados índices de radiação solar – a exemplo do último verão, que registrou temperaturas superiores aos 40°C sendo que a sensação térmica chegou a 50°C – podem resultar em impactos adversos, como insolação, desidratação e outros problemas de saúde”, destaca o texto do projeto.

De acordo com Culau, o estresse térmico pode comprometer a produtividade e, principalmente, a segurança desses profissionais, tornando a regulamentação uma medida essencial para a preservação da saúde e prevenção de acidentes de trabalho.

Em relatório divulgado em abril de 2024, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que mais de 2,4 mil milhões de trabalhadores (70% da mão de obra global) estão provavelmente expostos ao calor excessivo em algum momento do seu trabalho. “É evidente que as alterações climáticas já estão a criar riscos adicionais significativos para a saúde dos trabalhadores (..) É essencial que prestemos atenção a esses avisos. As considerações de segurança e saúde no trabalho devem tornar-se parte das nossas respostas às alterações climáticas, tanto nas políticas como nas ações”, afirmou Manal Azzi, chefe da Equipe de Segurança e Saúde Ocupacionais da OIT.

Necessidade de políticas que não neguem a crise climática

“Como psicólogo do Consultório na Rua, em uma equipe multiprofissional de uma parceirizada da Prefeitura, atendo a população em situação de rua. Para prestar esse atendimento, na maior parte do tempo estamos em buscas e abordagens pelas ruas. É perceptível o impacto das mudanças climáticas no nosso cotidiano: desde a enchente, até a névoa de fumaça das queimadas, esse impacto tem se feito muito presente. Agora com as altas temperaturas percebemos a influência deste fator na saúde não só de nossos usuários, que já sofrem com a vulnerabilização social, mas na nossa”, expõe Leonardo de Oliveira, trabalhador terceirizado, ao Brasil de Fato RS.

Na situação como a que vive o RS, com temperaturas beirando e/ou passando os 40 graus, o psicólogo pontua que o uso de equipamentos e itens de proteção como chapéus, protetor solar e a garrafa de água a tiracolo têm se mostrado indispensáveis. “Ainda assim, nem mesmo estas medidas são efetivas em dias como o de ontem, e é importantíssimo o resguardo dos trabalhadores da linha de frente, constantemente expostos às intempéries climáticas.”

Sobre a proposta apresentada pelo vereador Culau e o coletivo, diz que é uma medida necessária, um direito dos trabalhadores para manterem sua saúde e segurança. Ele observa que a dispensa não seja onerada ou colocada em bancos de horas a ser pagos pelos trabalhadores, práticas comuns em empresas terceirizadas. “A única preocupação em relação a liberação dos profissionais é a fragilidade do cuidado com os usuários, em especial as pessoas em situação de rua, que podem ficar desassistidas, principalmente em um momento onde mais necessitam de suporte em saúde.”

Para além dessa proposta, prossegue Oliveira, devem ser fornecidas condições para que os trabalhadores possam executar seu trabalho em situações extremas, como os EPIs e a hidratação. “E que possa ser fornecido transporte de qualidade aos trabalhadores. As condições do transporte público também devem levar em conta as temperaturas extremas a que estaremos cada vez mais expostos e a luta por dignidade para o trabalhador deve levar em conta os aspectos integrais relacionados às atividades laborais, principalmente trabalhadores de obras públicas, limpeza urbana, agentes de saúde, entre outros.”

Citando sua experiência em atendimentos ao ar livre em buscas e abordagens, para haver tanto cuidado com os trabalhadores, quanto com os usuários, são necessárias políticas que não neguem a crise climática e a maior frequência das temperaturas extremas e de eventos climáticos. “Ofertando espaços com água potável, abrigos, banheiros públicos, política de moradia, transporte, direito à cidade, alimentação adequada e maior oferta de serviços para as pessoas em situação de rua.”

Calor extremo

Em 2022, quando a capital gaúcha chegou a registrar mais de 40 graus, o Brasil de Fato RS conversou com especialistas que apontaram que temperaturas acima de 40º são resultado de um planeta mais quente.

“O aumento da temperatura média do planeta nas últimas décadas e a mudança geral da circulação atmosférica, combinada com o aquecimento das águas superficiais dos oceanos, têm intensificado os eventos extremos”, afirmou na época o professor de Climatologia e Oceanografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor substituto do Centro Polar e Climático da mesma instituição, Francisco Eliseu Aquino.

Nesta terça-feira, o mestre em Botânica e coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, Paulo Brack, constatou a temperatura de 62°C, em amplas superfícies de área onde retiraram a vegetação no Parque Harmonia, enquanto nos gramados sombreados pelas árvores a temperatura era a metade (31°C).

De acordo com um estudo do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicado em janeiro de 2024, na revista científica de acesso livre Plos One, 48 mil pessoas morreram por ondas de calor no Brasil entre 2000 e 2018. A pesquisa analisou as 14 regiões metropolitanas mais populosas do Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nas cinco regiões do país. A Região Metropolitana de Porto Alegre (POA) aparece na quarta posição em que as ondas de calor mais potencializam mortes.

Conforme aponta o estudo, eventos de temperatura extrema aumentaram quase quatro vezes desde os anos 1970. Idosos, mulheres, negros e menos escolarizados são os mais afetados.

“A mudança climática é que está governando”

Em conversa com o Brasil de Fato RS, nesta quarta-feira (5), Aquino ressaltou que 2024 foi o ano mais quente dos registros modernos no planeta Terra, e o Brasil seguiu essa realidade. “Todo monitoramento, tudo que a gente observou nas últimas décadas, e compreendendo bem a mudança do clima, esse é o cenário daqui para frente: A gente terá nos nossos verões estiagens, ondas de calor, temperaturas elevadas, acompanhado de tempestades e chuvas intensas. Muita chuva em poucas horas, e assim por diante, como a gente está vendo no Brasil.”

Conforme prossegue o professor, nesse momento, no Rio Grande do Sul, a chuva está abaixo da média, de vez em quando, algumas tempestades, mas as temperaturas é que seguem elevadas. “Nos próximos sete dias, pelo menos, elas vão seguir muito altas entre a Argentina e o Paraguai em direção ao Rio Grande do Sul. Então, sempre o Oeste do nosso estado tem o registro das temperaturas maiores, enquanto que a região Metropolitana está quente, tem tardes e noites quentes, mas ainda não chegamos nos valores maiores nesse momento.”

Aquino, que participou recentemente de uma expedição à Antártica, frisa que as temperaturas elevadas no planeta e todos os registros das últimas décadas mostram que a mudança climática é que está governando, guiando essas condições de tempo e clima na Terra. “Mesmo tendo uma La Niña fraca, em que a gente observaria uma certa tendência de arrefecimento global, esse arrefecimento não tem se traduzido em menores temperaturas, em alívios, de modo algum.”

De acordo com o professor, com raras exceções, em algumas localidades, a circulação atmosférica às vezes impõe ares mais fresco, como, por exemplo, o que foi observado em novembro e dezembro do ano passado no Rio Grande do Sul. “A passagem de ciclones com frentes frias vindo da Antártica, uma certa anomalia para essa época do ano, fez com que as temperaturas não fossem tão elevadas. Podemos ver que o nosso dezembro foi mais ameno por conta de passagem de ciclones e frentes frias, e entrada de ar da Antártica, o que não é comum. Mas mostra como o reajuste da circulação atmosférica tem colocado condições bastante distintas daquelas que a gente imaginaria, pelos nossos avós.”

DM TEM DEBATE

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Saúde mental, neoliberalismo e subjetividade

59% dos trabalhadores precisarão se requalificar até 2030

40% das habilidades implementadas pelo mercado devem mudar até 2030, e a lacuna de competências já é um obstáculo para 63% dos funcionários quando o assunto é evitar que seus negócios se tornem obsoletos. É o que destaca o Relatório sobre o Futuro dos Empregos 2025, publicado pelo Fórum Econômico Mundial.

Segundo o documento, 59% dos trabalhadores precisarão se requalificar ou aprimorar suas habilidades até 2030. E mais: 11% deles provavelmente não terão a oportunidade de fazê-lo. Isso significa que mais de 120 milhões de profissionais podem perder relevância no prazo médio.

O Fórum estima que 170 milhões de novas funções líquidas serão criadas até 2030, e 92 milhões deixarão de existir – o que resultará em um aumento de 78 milhões de empregos.

O relatório também indicou como habilidades que mais ganharão importância até 2030. Como principais são: conhecimento sobre IA e big data; sobre redes e segurança cibernética; e alfabetização tecnológica. Em seguida, criatividade, flexibilidade e curiosidade. Então, liderança e influência social ; gestão de talentos; pensamento analítico; e gestão ambiental.

VOCÊ RH

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Saúde mental, neoliberalismo e subjetividade

Trabalhadores sob o capitalismo de vigilância

Nas linhas de montagem de automóveis com robótica, ainda existem operários, mas em menor número e com funções alteradas. Eles geralmente executam tarefas de supervisão, manutenção, controle de qualidade e ajustes técnicos. Além disso, há operadores especializados e engenheiros com formação superior, responsáveis por programar, monitorar e gerenciar a automação, recebendo salários mais altos. A automação reduziu a quantidade de trabalho manual repetitivo, mas aumentou a demanda por habilidades técnicas e conhecimentos específicos.

Na Era digital, a remuneração por prestação de serviços varia amplamente. Assume diferentes formas, dependendo da natureza do trabalho e da relação entre contratante e prestador.

Entre os principais modelos de remuneração, há ainda o salário fixo de acordo com o modelo tradicional. Os trabalhadores, por exemplo, desenvolvedores ou analistas contratados por empresas, em setores onde há vínculo empregatício formal, como empresas de tecnologia ou serviços corporativos, os contratos formais são com remuneração mensal fixa. Oferecem benefícios trabalhistas a depender da legislação do país).

Outra forma é a “remuneração por projeto” (percentual ou fixa), quando prestadores de serviços recebem um valor negociado para a execução de um serviço específico ou projeto. Pode ser um percentual do orçamento, isto é, uma parcela proporcional ao custo total do projeto.

O valor fixo é estabelecido com base na complexidade e escopo. Essa modalidade de remuneração por projeto é popular em profissões autônomas ou freelancing em design, programação, consultoria, direção de vídeos publicitários etc. por exemplo, um designer gráfico cobra 10% do orçamento de uma campanha publicitária.

Outra modalidade é o pagamento por hora ou tarefa, comum em plataformas digitais ou em contratos temporários. A remuneração é calculada com base no número de horas trabalhadas ou na quantidade de tarefas concluídas. Por exemplo, desenvolvedores cobram por hora ou tradutores cobram por palavra traduzida.

Há ainda o “modelo de assinatura” ou retainer. Prestadores recebem um valor fixo periódico (mensal, trimestral) para prestar serviços contínuos.

A relação é menos formal diante o emprego tradicional, mas oferece estabilidade para ambas as partes. É o caso de um consultor de marketing digital contratado por assinatura para gerenciar redes sociais.

Outra modalidade é o pagamento por resultados ou comissões. A remuneração está diretamente vinculada aos resultados obtidos, como vendas, leads ou metas atingidas.

É comum em setores como vendas, marketing de afiliados ou gestão de anúncios digitais. Por exemplo, um gestor de tráfego pago recebe 15% do faturamento gerado pelos anúncios.

A economia de plataformas (Gig Economy) se utiliza de trabalhadores (motoristas, entregadores, freelancers) remunerados por serviço realizado, sem vínculo empregatício direto. As plataformas digitais definem as tarifas, podendo incluir taxas adicionais por horários ou regiões específicas. É o caso de motoristas de aplicativos ao ganhar por corrida.

Por fim, há também a participação nos lucros ou equity. Profissionais em startups ou projetos colaborativos recebem parte dos lucros ou ações da empresa em troca de serviços. Por exemplo, um programador aceita equity (participação acionária) em vez de pagamento imediato em uma startup emergente.

Na Era digital, os modelos de remuneração são flexíveis e adaptáveis às condições do mercado e à natureza do trabalho. Enquanto empregos formais com salário fixo ainda predominam em grandes empresas, a economia digital abriu espaço para formas alternativas, como pagamento por projeto, assinatura ou resultados, oferecendo mais opções para prestadores e contratantes.

Nesse novo mundo do trabalho há uma questão-chave: os algoritmos monitoram trabalhadores digitais por meio de tecnologias baseadas em coleta e análise de dados. Visam mensurar produtividade, cumprimento de metas e padrões de comportamento. As formas mais comuns incluem:

Plataformas digitais de trabalho como Uber, Amazon Mechanical Turk e Upwork monitoram os trabalhadores em tempo real por meio de registro de atividades (tempo online, cliques, entregas ou tarefas realizadas) e geolocalização (rastreamento de rotas e localização) como no caso de motoristas ou entregadores. As taxas de aceitação/rejeição são usadas para o controle de tarefas aceitas ou recusadas.

Há software de monitoramento empresarial. Empresas utilizam ferramentas como Time Doctor, Hubstaff ou Teramind, capazes de monitorar o uso do computador em captura de tela, uso de aplicativos e histórico de navegação.

Verificam o tempo de inatividade, quando há períodos sem movimento do mouse ou teclado. Avaliam as comunicações por meio de análise de e-mails, mensagens e chamadas.

Certos sistemas utilizam algoritmos para avaliar trabalhadores com base em métricas como taxas de produtividade, isto é, o número de tarefas ou entregas concluídas. Observam também o feedback do cliente com avaliações e comentários.

Dados são usados para prever desempenho ou até risco de rotatividade. É um comportamento preditivo e/ou preventivo.

Além do monitoramento algorítmico, outras práticas de vigilância no trabalho digital incluem a vigilância biométrica com tecnologias de reconhecimento facial, leitura de impressão digital e rastreamento ocular para controle de acesso a sistemas e equipamentos e monitoramento de presença em reuniões ou tarefas.

A vigilância se dá também por dispositivos como câmeras, microfones e sensores instalados em ambientes de trabalho ou equipamentos fornecidos pela empresa. Para chatear ainda mais, há a autoavaliação obrigatória: trabalhadores frequentemente são obrigados a preencher relatórios ou check-ins automáticos, complementando a vigilância algorítmica.

Algumas empresas chegam até a monitorar perfis públicos de redes sociais para avaliar comportamento ou opiniões de seus trabalhadores.

O capitalismo de vigilância é um modelo econômico no qual empresas coletam, processam e comercializam grandes volumes de dados pessoais, muitas vezes sem o consentimento total dos indivíduos. Essa prática baseia-se na exploração de dados como recurso econômico principal.

Empresas coletam informações detalhadas de usuários e trabalhadores (comportamento, preferências, localização). Esses dados são analisados para prever comportamentos e influenciar decisões, como consumo ou produtividade.

Os dados são também vendidos para anunciantes ou usados internamente para otimizar processos e maximizar lucros. Entre exemplos de práticas no capitalismo de vigilância há o de plataformas como Facebook e Instagram ao monitorarem interações para oferecer anúncios personalizados.

Em plataformas de trabalho, empresas como Uber utilizam dados dos motoristas e passageiros para ajustar tarifas e rotas. Há também dispositivos inteligentes em aparelhos como Alexa e Google Home: coletam dados de usuários continuamente.

Para os trabalhadores digitais, o monitoramento constante gera a sensação de vigilância opressiva, pressão e ansiedade. Avaliações algorítmicas automatizadas resultam em cortes injustos ou penalizações arbitrárias com precarização das relações de trabalho e perda de privacidade. Dados pessoais e comportamentais são frequentemente explorados sem transparência.

Para a sociedade, grandes empresas detêm enorme poder sobre dados e decisões sociais. Comunidades marginalizadas estão mais expostas à exploração algorítmica. A manipulação de comportamentos e escolhas limita a liberdade individual e reduz a autonomia de cada pessoa.

Os algoritmos e tecnologias de vigilância transformaram radicalmente o trabalho digital, tornando-o mais monitorado e controlado. Embora essas ferramentas prometam eficiência, antes disso, levantam questões éticas e críticas ao capitalismo de vigilância. Ele se baseia na exploração dos dados para lucro às custas da privacidade, liberdade e dignidade dos trabalhadores.

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Saúde mental, neoliberalismo e subjetividade

Trabalhador pode ser demitido por conta de publicações nas redes sociais? Veja como funciona

Em julho, ficou famoso o caso de uma funcionária que foi demitida por justa causa após difamar a empresa que trabalhava no LinkedIn. A mulher chegou a entrar na Justiça para reverter a demissão e receber verbas indenizatórias.

De lá para cá, surgiram mais casos parecidos pois muitos empregados utilizam as redes sociais para compartilhar a rotina de trabalho ou desabafar sobre o emprego (conheça os “blogueiros CLTs”). No entanto, é importante tomar alguns cuidados.

Publicações feitas nas redes sociais, relacionadas ou não à empresa, podem levar o trabalhador a perder o emprego. Dependendo da gravidade, o caso pode resultar em demissão por justa causa – como aconteceu com uma assessora do Ministério da Igualdade Racial.

Para alertar os empregados, o g1 conversou com advogados trabalhistas e responde abaixo:

Sim. Segundo a advogada Elisa Alonso, especialista em direito do trabalho e sócia do RCA Advogados, a demissão depende do conteúdo das publicações e de como elas afetam a imagem da empresa.

“Caso a postagem cause prejuízos à reputação da organização, viole regras internas ou exponha informações sigilosas, o empregador pode aplicar sanções, que vão desde advertências até a demissão por justa causa”, explica a especialista.

Um bom exemplo é quando um colaborador faz críticas ofensivas à empresa ou aos gestores em uma rede social, prejudicando a imagem da organização. Foi o que aconteceu com a trabalhora que difamou empresa no LinkedIn.

Mas também a divulgação de informações estratégicas, como projetos sigilosos ou dados de clientes, pode ser considerada quebra de confidencialidade, justificando a rescisão do contrato.

Além disso, postagens que desrespeitem normas de convivência da empresa também podem gerar punições.

“Caso o empregado publique comentários preconceituosos, racistas, machistas ou homofóbicos e a empresa entenda que isso compromete seus valores ou o ambiente de trabalho, ele pode ser desligado”, diz a advogada.

A regra é válida mesmo que a postagem seja feita fora do expediente, em especial quando o colaborador é facilmente identificado como funcionário da empresa.

Casos de assédio virtual contra colegas, como mensagens ofensivas ou vazamento de conversas privadas, também podem resultar em demissão, já que afetam diretamente o clima organizacional.

No entanto, ainda que as publicações possam gerar rescisão do contrato, é importante destacar que a demissão por justa causa exige provas concretas e deve haver proporcionalidade na penalidade.

“Se a postagem não trouxer impactos diretos à empresa ou não violar normas internas, o desligamento por justa causa pode ser questionado na Justiça”, completa Elisa Alonso. (entenda mais sobra justa causa abaixo)

2. O que o trabalhador NÃO pode publicar nas redes sociais?

Carolina Dostal, diretora regional da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-SP), alerta que é importante tomar alguns cuidados ao compartilhar conteúdo do trabalho nas redes sociais, como:

  • 🚫 Não publicar dados confidenciais da empresa;
  • 🚫 Evitar compartilhar produtos ou serviços que são lançamentos;
  • 🚫 Não postar a tela do computador;
  • 🚫 Não divulgar reuniões estratégicas;
  • 🚫 Evitar abordar assuntos polêmicos;
  • 🚫 Tomar cuidado com erros de português;
  • 🚫 Não compartilhar notícias falsas;
  • 🚫 Não falar mal do patrão ou da empresa publicamente;
  • 🚫 Não compartilhar fofocas do trabalho;
  • 🚫 Não publicar conteúdos que são contra ao posicionamento da companhia;
  • 🚫 Evitar qualquer informação que possa prejudicar a imagem do empregador.

“O trabalhador precisa estar muito alinhado com a empresa, com os mesmos valores e cultura da empresa”, explica Dostal.

Segundo a especialista, o empregador deve oferecer treinamento para os funcionários que fazem publicações sobre o trabalho nas redes socais.

3. A empresa pode proibir as publicações nas redes sociais?

Sim. De acordo com Adriana Faria, advogada especializada em direito trabalhista do escritório Rodrigues Faria Advogados, a empresa pode proibir ou restringir as publicações dos seus funcionários nas redes sociais.

Porém, essa proibição precisa estar prevista em contrato de trabalho ou em política interna da empresa, e não pode ser genérica ou abusiva. É necessário justificar a regra por motivos razoáveis, como a proteção de informações confidenciais ou a imagem da empresa.

Segundo Adriana Faria, o departamento de Recursos Humanos desempenha um papel fundamental nesse contexto, tanto na orientação dos funcionários quanto na gestão de possíveis conflitos relacionados ao uso das redes sociais.

“O RH deve desenvolver políticas claras e objetivas sobre o uso das redes sociais pelos funcionários, definindo o que pode e o que não pode ser compartilhado, e quais as consequências para o descumprimento das regras”, afirma Adriana Faria.

4. Quais os principais cuidados que o trabalhador deve tomar?

É essencial que o trabalhador reflita sobre o impacto das publicações na própria imagem profissional e na imagem da empresa, além de respeitar as políticas internas, segundo Beatriz Nóbrega, especialista em Desenvolvimento Humano e Organizacional.

“O bom senso é essencial: se houver dúvida sobre a adequação de um conteúdo, o ideal é não postar”, completa a especialista.

Antes de fazer qualquer publicação, Beatriz Nóbrega orienta fazer um checklist:

  • ➡️ Respeitei a política interna? Muitas empresas têm diretrizes sobre o uso de redes sociais, que devem ser seguidas, mesmo fora do expediente.
  • ➡️ Tive bom senso? O que parece inofensivo para quem posta pode ser interpretado de forma negativa por quem consome o conteúdo.
  • ➡️ Não expus colegas ou clientes? Compartilhar informações sem consentimento pode gerar consequências legais.
  • ➡️ Fiz o papel de “advogado do diabo”? Pergunte-se: isso pode comprometer minha imagem ou a da empresa?

Outro ponto importante é a exposição. Muitos empregados relatam nas redes sociais, de modo direto ou indireto, insatisfações com o trabalho ou com o patrão. Com isso, são levantadas questões que podem estar relacionadas a assédio moral ou burnout, por exemplo.

Segundo Carla Martins, especialista em gestão de negócios, o ideal é não desabafar, expor a empresa ou outros trabalhadores, por meio das redes sociais.

“Ainda que os motivos das insatisfações relatadas tenham fundamento, as redes sociais podem ter um impacto significativo na reputação profissional dos trabalhadores, tanto positivo quanto negativo. As empresas estão cada vez mais atentas ao que os funcionários publicam. Portanto, é fundamental ter cuidado com o que é compartilhado”, explica Carla Martins.

5. Quais situações que podem gerar demissão por justa causa?

A CLT prevê diversas situações que podem gerar justa causa para a demissão do funcionário. Segundo a advogada Adriana Faria, algumas delas são:

  1. Ato de improbidade (roubo, furto, desvio de dinheiro, entre outros);
  2. Incontinência de conduta ou mau procedimento (comportamento inadequado, ofensivo ou imoral);
  3. Negociação habitual por conta própria ou de terceiro sem permissão do empregador (venda de produtos/mercadorias);
  4. Concorrência desleal com a empresa;
  5. Embriaguez habitual ou no serviço;
  6. Indisciplina ou insubordinação;
  7. Abandono de emprego;
  8. Assédio moral ou sexual;
  9. Agressão física ou verbal;
  10. Divulgação de segredos da empresa.

6. A demissão por justa causa pode ser revertida?

De acordo com a advogada Adriana Faria, a justa causa pode ser revertida na justiça em algumas situações, como:

Quando não há provas suficientes da falta grave cometida pelo funcionário;

Quando a falta cometida não é considerada grave o suficiente para justificar a demissão por justa causa;

Quando a empresa não segue o procedimento correto para a aplicação da justa causa (deixa de aplicar advertência e suspensão);

Quando há indícios de perseguição ou discriminação contra o funcionário.

g1

https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/02/19/demissao-por-conta-de-publicacoes-nas-redes-sociais-veja-como-funciona.ghtml

Saúde mental, neoliberalismo e subjetividade

Contra demissões, funcionários da Eletronuclear ameaçam entrar em greve

Trabalhadores do complexo nuclear de Itaorna, em Angra dos Reis, na costa verde do Rio de Janeiro, ameaçam entrar em greve antes do carnaval, em razão da ameaça de demissão em massa. Os cortes podem chegar até 500 pessoas. A crise no local reflete uma turbulência maior na Eletronuclear.

Em 2024, o custo para manter as usinas nucleares de Angra 1 e Angra 2 foi de R$ 800 milhões. Para este ano, o orçamento previsto para este fim é de R$ 400 milhões, o que, de acordo com fontes de dentro da Eletronuclear ouvidas pelo Correio, pode colocar em risco a segurança das usinas, dos trabalhadores e a proteção do meio ambiente. O receio é de que o corte de 500 cargos possa gerar o desligamento de equipes altamente qualificadas.

A situação levou o executivo da World Association of Nuclear Operators (WANO) Jerome Dagois a realizar diversas reuniões com a empresa, para avaliar eventuais riscos para a segurança. A WANO foi fundada em 1979 após o acidente na usina nuclear de Chernobyl, que atualmente fica no território da Ucrânia, mas está dominada por tropas da Rússia.

A Wano tem demonstrado preocupação com a segurança e com a perda de equipes estratégicas com cortes no orçamento. Existe ainda a hipótese de que o Brasil deixe de ser parte da WANO — juntando-se a nações como Irã e Coreia do Norte, que têm atividade nuclear, mas não permite fiscalização da entidade. Uma reunião que deve ser realizada no próximo dia 26 vai avaliar o futuro do Brasil como afiliado ou não à associação internacional.

Angra 3

A crise na gestão da Eletronuclear ocorre na esteira da decisão sobre continuar ou não as obras da usina de Angra 3. Em uma reunião realizada ontem, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) decidiu que não vai retomar agora a continuidade do projeto que teve início em 1980 e foi suspenso em 2015. O grupo é composto por 17 ministros e o tema deve voltar à pauta no próximo encontro — que ainda não tem data definida.

De acordo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o custo para continuar a obra é de R$ 23 bilhões. Mas desistir do projeto geraria um rombo de R$ 21 bilhões. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD),afirmou que a Eletronuclear não “dá segurança para executar uma obra desse porte” e precisa passar por uma “reformulação completa”.

O entrave é o corte no orçamento destinado ao setor. De acordo com fontes da Eletronuclear ouvidas pela reportagem sob a condição de anonimato, a empresa estaria usando recursos das usinas de Angra 1 e Angra 2 para financiar a construção de Angra 3 — os cortes estariam ocorrendo até mesmo em recursos destinados à manutenção das duas usinas já em operação, o que pode representar risco à segurança.

Desafios

Em nota, a Eletronuclear afirmou que “enfrenta desafios financeiros que exigem medidas responsáveis para garantir a continuidade de sua operação”. A empresa alega que “de 2015 a 2021, a empresa recebeu sucessivos aportes de sua controladora, a Eletrobras (ainda estatal) para equilibrar suas contas. Estes aportes totalizaram mais de R$5 bilhões, montante este que foi todo capitalizado quando da privatização da Eletrobras. Nos anos subsequentes, 2022 e 2023, a empresa gastou cerca de R$1,2 bilhão sem cobertura tarifária, isto é, o PMSO da Eletronuclear foi muito superior ao PMSO Regulatório da ANEEL”.

De acordo com o texto, “a atual gestão tem adotado estratégias gradativas de redução de custos desde janeiro de 2024, evitando que a empresa venha a se tornar dependente do Orçamento-Geral da União” e “em 2024, já se conseguiu economizar R$500 milhões frente ao orçamento que a Eletronuclear tinha em dezembro de 2023 para o ano de 2024”. A Eletronuclear informou que reafirma seu compromisso com a responsabilidade fiscal e segurança das operações e que evita medidas que vão onerar o cidadão e gerar aumento no valor da conta de luz para a população.

“Decisões como cortes de custos são difíceis, mas necessárias, e são tomadas com responsabilidade para o bem comum do contribuinte, dos consumidores, da população em geral, garantindo o emprego e a renda dos trabalhadores da Eletronuclear”, completa o texto.

CORREIO BRAZILIENSE
https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2025/02/7064604-contra-demissoes-funcionarios-da-eletronuclear-ameacam-entrar-em-greve.html