Um dos temas mais importantes das eleições municipais deste ano é o que envolve as discussões sobre moradia e políticas habitacionais. São várias as questões que devem ser destacadas e não podem ficar ausentes dos debates eleitorais: onde morar, como morar, em que condições morar, qualidade das habitações construídas por políticas públicas, o valor dos espaços, a infraestrutura e equipamentos comunitários ao redor, a distância dos grandes centros e do emprego, o potencial de construção e os limites de uso do solo, dentre outros.
Trazemos hoje uma entrevista simultânea com as professoras Sarah França (UFS) e Latussa Laranja (UFES), integrantes do INCT Observatório das Metrópoles de Aracajú, e o professor Renato Pequeno (UFC). Eles falam ao programa Espaço Cidadão sobre a importante temática da Moradia e Políticas Habitacionais nas Eleições 2024. Abordam ainda outros assuntos, como moradias precárias nas regiões metropolitanas; política habitacional como interesse comum na região metropolitana; grandes conjuntos habitacionais nas periferias das cidades; política habitacional e periferização do Minha Casa, Minha Vida; habitação social no debate metropolitano das eleições 2024; programas de urbanização das favelas; necessidade de programas urbanos nas favelas, para além da regularização fundiária; a distância e o problema das habitações populares construídas nas periferias; a associação entre a política habitacional e a política urbana nas eleições 2024.
Essa entrevista integra o projeto “Observatório das Metrópoles nas Eleições: um outro futuro é possível”, que visa incidir na agenda pública das eleições de 2024, com a elaboração de artigos de opinião, entrevistas e cartas de compromisso pelo coletivo de pesquisadoras e pesquisadores integrantes dos 18 núcleos regionais da rede de pesquisa.
Confira a entrevista:
AUTORIA
ROBSON CARVALHO Doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), é apresentador de TV na Band Nordeste e na TVT, de São Paulo.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), devolveu parte da MP da Compensação ao governo Lula (PT) nesta terça-feira (11). Os trechos devolvidos, segundo Pacheco, são inconstitucionais.
A decisão veio depois de pressão do setor produtivo e dos próprios deputados e senadores. Como presidente do Congresso, Pacheco tem a prerrogativa de devolver uma MP ou parte dela caso julgue que os trechos vão contra a Constituição. Pacheco já havia indicado a Lula que poderia tomar essa decisão.
“Com absoluto respeito a prerrogativa do Poder Executivo, de sua excelência o presidente da República na edição de medidas provisórias, o que se observe em relação a essa medida provisória no que toca a parte das compensações de ressarcimento de regras relativas a isso é o descumprimento […] da Constituição Federal, o que impõe a esta presidência do Congresso Nacional impugnar esta matéria com a devolução desses dispositivos a presidência da República”, disse Pacheco durante a sessão do Senado desta terça-feira (11).
A MP 1.227 de 2024 foi editada pelo governo Lula na semana passada como uma forma de gerar receita para pagar a desoneração da folha de 17 setores da economia e de municípios, medida defendida pelo Congresso. Pacheco indicou que o diálogo com o governo petista e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para uma solução para a desoneração continua.
Entre as formas que poderiam ser utilizadas para compensar os gastos do Poder Público com a desoneração, líderes citam a repatriação de ativos, um projeto que está parado na Câmara desde 2023. As possibilidades, no entanto, ainda estão sendo estudadas.
A MP 1227 limitava o uso de crédito do PIS e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) derivados do pagamento desses tributos por empresas. Com a medida, o governo espera arrecadar até R$ 29,2 bilhões, o que pagaria os . A desoneração da folha custará R$ 26,3 bilhões em 2024, sendo R$ 15,8 bilhões em relação às empresas e R$ 10,5 bilhões em relação aos municípios.
Alvo de críticas de parlamentares durante a última semana, a MP se mantém somente com as outras partes, sem incluir todos os trechos relacionados ao PIS/Cofins. A decisão de Pacheco foi comemorada por parlamentares, principalmente os ligados ao agronegócio e os que fazem parte da oposição.
AUTORIA
GABRIELLA SOARES Jornalista formada pela Unesp, com experiência na cobertura de política e economia desde 2019. Já passou pelas áreas de edição e reportagem. Trabalhou no Poder360 e foi trainee da Folha de S.Paulo.
O deputado Túlio Gadêlha (Rede-PE) e a Rede Sustentabilidade ingressaram nesta terça-feira (11), no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, com pedido de cassação do mandato do deputado Gustavo Gayer (PL-GO) por ato de xenofobia. De acordo com a representação, Gayer quebrou o decoro parlamentar ao associar o povo nordestino a “galinhas” ao dizer que se alimentam de “migalhas” do governo.
A declaração viralizou no domingo (9), mas ocorreu em 24 de maio durante um evento sobre os reflexos do projeto de lei complementar que institui o Sistema Nacional de Educação (SNE). “Essa intolerância e ódio não condizem com a postura de um parlamentar, que mais uma vez ataca um povo trabalhador, essencial para a independência do Brasil e manutenção da democracia. Ações assim não podem ser toleradas pelo Congresso Nacional”, ressaltou Gadêlha. Também assinam a representação os porta-vozes da Rede Sustentabilidade, Heloísa Helena e Wesley Diógenes.
Na palestra de 24 de maio, Gayer narra uma parábola difundida em perfis conservadores e de direita atribuída ao líder comunista Josef Stalin na União Soviética. Segundo a parábola, Stalin depena uma galinha e, mesmo assim, ela o segue depois que o comunista lhe oferece farelos. O deputado afirma que esquerdistas “fizeram com o Nordeste o que Stalin fez com a galinha”, se referindo a programas de transferência de renda.
“Essa história representa o que a esquerda faz com o Brasil, e principalmente o que a esquerda faz com o Nordeste. Nordeste é a terra mais linda do Brasil. É o povo mais generoso, trabalhador, maravilhoso, não é à toa que todo mundo adora vir pra cá. Como que eles conseguiram colocar essa população maravilhosa nesse calabouço ideológico? É só para olhar o Ideb da Bahia, é só olhar o Ideb do Nordeste, o nível de alfabetização daqui, do Maranhão, dos estados do Nordeste. Eles fizeram para o Nordeste o que Stalin fez com a galinha. “Ah, ele me dá cesta básica”, “ele me deu R$ 200, o governo me deu R$ 300″. Estão dando migalhas para uma população cada vez mais depenada!”, afirmou.
Esta é a segunda vez que a Rede aciona o Conselho de Ética contra Gayer por declarações dele relacionadas a nordestinos. No ano passado, Gayer disse que “nordestinos perderam a capacidade pensar”. O partido da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, pediu a cassação do mandato do parlamentar por ataque aos nordestinos. A declaração de Gayer foi feita durante um podcast, o Comérciocast, em que o parlamentar também classificou a população do Nordeste como “sem instrução e sem educação”.
Ainda no ano passado, ele virou alvo da Procuradoria-Geral da República por afirmar que democracias não prosperam na África por conta da “capacidade cognitiva” da população. “Democracia não prospera na África porque, para você ter uma democracia, você precisa ter um mínimo de capacidade cognitiva de entender entre o bom e o ruim, o certo e o errado”, disse.“Tentaram fazer democracia na África várias vezes. O que acontece? Um ditador toma tudo, toma conta de tudo, e o povo [aplaude].
Comparar o desempenho do governo Lula 3 no Congresso Nacional com seus 2 mandatos anteriores, sem considerar o contexto político, tem sido o esporte preferido de alguns analistas políticos, de setores da mídia comercial e do mercado. Essas comparações permitem avaliação negativa do governo sem expor o viés de oposição e torcida contra da maioria desses atores.
Antônio Augusto de Queiroz*
As políticas econômicas, regulatórias e, sobretudo, sociais do governo, que requerem recursos orçamentários para custeá-las, incomodam profundamente o establishment do País. Como resultado, muitos preferem jogar lenha na fogueira dos fundamentalistas e da extrema-direita antidemocrática do que fazer crítica contextualizada ao governo.
A maioria das avaliações sobre derrotas do governo no Congresso Nacional desconsidera que essas ocorrem no campo dos costumes, da religião e do desmame de privilégios a setores do mercado e do Parlamento. Em relação aos temas de costume, como direitos reprodutivos, educação sexual e diversidade de gênero, a predominância conservadora no Congresso tem se mostrado desafio constante. No entanto, o governo tem conseguido evitar retrocessos significativos e, em alguns casos, avançar em políticas inclusivas e progressistas.
Diversos setores da sociedade, por razões distintas, são contrários a alguns pontos do programa de governo, incluindo setores de mercado. Esses setores, por meio do populismo digital, criam bolhas para disseminar fake news com o propósito de dominar corações e mentes, especialmente de pessoas com baixa cognitividade, que são facilmente manipuláveis com falsas acusações de que o governo é contra a liberdade, a propriedade e a família, espalhando o medo entre os incautos.
Ignoram que os 2 governos anteriores ao de Lula, para sobreviver politicamente, adotaram as agendas do mercado e entregaram o Orçamento Público às forças conservadoras do Parlamento, que passaram a constituir sua base de apoio, e que o presidente Lula também teve que conviver com aliados do governo anterior e defensores da agenda bolsonarista em postos-chave no Poder Executivo, como o Banco Central do Brasil e agências reguladoras, todos com mandato. Alguns desses aliados boicotaram claramente as políticas governamentais, evitando que a economia voltasse a crescer e gerar emprego e renda em velocidade maior.
Poucos reconhecem que, apesar da correlação de forças desfavorável no Parlamento, não houve derrotas em políticas públicas estruturais na economia e nas questões fiscais. O PIB, o emprego e a renda cresceram, enquanto a inflação e os juros caíram nestes 18 meses do governo Lula.
Esquecem, propositadamente, que o presidente Lula foi eleito numa eleição polarizada contra candidato que disputou no exercício do mandato, usando fake news e abusando dos recursos e da máquina pública. O então presidente perdeu a eleição por pequena margem de votos, mas a máquina bolsonarista, os recursos do chamado “orçamento secreto” e seu discurso radical, apoiado no populismo digital, elegeram grandes bancadas conservadoras no Congresso, inclusive em partidos como o PP, Republicanos, União Brasil e PSD.
É evidente que a composição do atual Congresso é majoritariamente conservadora e contrária à agenda prioritária do governo e da esquerda. Há presença esmagadora dessa visão de mundo em muitos partidos, inclusive alguns com ministérios no governo Lula, como o PP, Republicanos e União Brasil
Num cenário, em que a sociedade é polarizada e fragmentada, e o Congresso Nacional possui mais de uma centena de parlamentares focados em luta política, espalhando fake news em tempo integral e apontando problemas sem apresentar soluções, não há coordenação política capaz de obter vitórias nesses temas mencionados, mesmo que se entregasse todos os ministérios e recursos do Orçamento aos partidos conservadores.
O governo reservou para seu partido todos os cargos do centro de governo — Casa Civil, Secretaria de Relações Institucionais e Secretaria de Comunicação — e todas as lideranças nas casas do Congresso Nacional. Ceder espaço para outros partidos aliados, como feito em outros mandatos, não seria prudente, especialmente colocando aliados de conveniência e potenciais adversários em postos-chave no governo.
O presidente Lula está certo em não ceder às pressões da mídia e do mercado por mais concessões a esses partidos em troca de apoio nesses temas. Mesmo cedendo tudo, não mudaria o pensamento e a visão de mundo da maioria dos parlamentares desses partidos. Se houver necessidade de mudanças, que sejam após a eleição municipal e a sucessão nas casas do Legislativo, para acomodar lideranças políticas que realmente exerçam influência no Congresso, como os futuros ex-presidentes das casas, desde que ajam em harmonia com o governo durante o processo sucessório.
Em 2026, se os indicadores econômicos — inflação, juros, emprego, renda, PIB, etc. —, continuarem positivos para o governo, a tendência é que faça grandes bancadas entre os partidos aliados programáticos, como fez o bolsonarismo na eleição de 2022.
Portanto, não ceder às pressões da mídia e do mercado por mudanças neste momento parece prudente, pois o objetivo real dessas pressões é colocar adversários da agenda governamental no centro do governo.
(*) Jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap. É membro do Cdess (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável) da Presidência da República – Conselhão. Publicado orginalmente na revista eletrônica Teoria&Debate.
A extrema-direita brasileira, para sobreviver politicamente, precisa de álibi que disfarce a verdadeira agenda e os interesses que representa. Esse álibi é construído mediante estratégia que consiste em acusar a esquerda e os setores progressistas de serem os responsáveis pelas mazelas que afetam a população.
Antônio Augusto De Queiroz*
A partir dessa premissa, utilizam o populismo digital, disseminando fake news e ameaças, inclusive físicas, para deslegitimar os agentes políticos progressistas, além de questionar a legitimidade do sistema político e suas instituições. Essa abordagem visa ganhar a simpatia de pessoas com menor acesso à educação e a informações críticas, muitas vezes apelando para sentimentos e emoções ao invés de fatos.
A estratégia da extrema-direita não se limita à manipulação da opinião pública entre os menos informados. Essa também se apoia em segmentos da classe média e do mercado, que, por razões distintas, encontram motivos para se aliar a essa corrente política.
A classe média, muitas vezes guiada por valores moralistas e conservadores, vê na agenda progressista ameaça aos seus princípios e modo de vida. Já os setores do mercado se opõem à esquerda e aos governos progressistas por razões econômicas.
Estes setores, nos governos ditos “liberais” e os de extrema-direita, frequentemente se beneficiam de privilégios como a ausência de fiscalização trabalhista, ambiental e tributária, além de renúncias e incentivos fiscais desnecessários, que são questionados e combatidos por governos de orientação progressista.
Assim, a extrema-direita brasileira se fortalece ao formar coalizão que inclui tanto pessoas de baixa cognição, influenciadas pelo populismo digital e fake news, quanto segmentos da classe média e do mercado, movidos por razões moralistas e econômicas. Juntos, esses grupos criam frente unificada contra os governos progressistas, dificultando a implementação de políticas que visem reduzir desigualdades e promover justiça social.
Essa dinâmica é sustentada por constante campanha de desinformação, em que a verdade é frequentemente distorcida para servir aos interesses da extrema-direita. Embora destinada a trazer benefícios aos líderes desses movimentos, a narrativa criada busca pintar a esquerda e os progressistas como inimigos do povo, desviando a atenção das verdadeiras causas das mazelas sociais e econômicas do País.
Em ambiente político polarizado e marcado pela desconfiança nas instituições, essa tática se mostra eficaz para manter a base de apoio da extrema-direita mobilizada e engajada, perpetuando um ciclo de desinformação e resistência às mudanças progressistas.
A mistura de política e religião tem sido utilizada pela extrema-direita no mundo ocidental para evitar políticas públicas em favor das minorias sociais e dos menos favorecidos. Eles criam ambiente favorável à sucessão desse tipo de pensamento, sempre em nome da liberdade, da família, da propriedade e da moralidade e dos chamados bons costumes. Esse álibi apela aos instintos primitivos em lugar de valorizar avaliações baseadas em evidências e, portanto, em racionalidade.
Esse uso instrumental da religião fortalece a narrativa de que os inimigos são os progressistas, que são pintados como ameaças à ordem moral e aos valores tradicionais. É estratégia que, se não for contida, pode levar a erosão contínua das bases democráticas e ao fortalecimento de regimes autoritários.
Além disso, o engajamento da extrema-direita também proporciona lucro para seus operadores. Os principais influenciadores e líderes desse tipo pregação são financiados e monetizam seus sites com anúncios, publicidade direta, solicitam doações — quem não se lembra dos PIX de Bolsonaro? —, recebem por “likes” e vendem produtos e serviços destinados a reforçar a defesa do ideário da extrema-direita. Virou grande negócio.
Foi esse tipo de estratégia que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Esse mesmo modus operandi está em curso no terceiro governo Lula. Ou setores da classe média, o mercado e a mídia agem racionalmente, ou essas forças voltam ao governo e desta vez conseguem implementar a ditadura que Bolsonaro não conseguiu estabelecer devido a erros que não irão repetir, instaurando ditadura duradoura, com repressão das liberdades, inclusive de imprensa e de mercado, além de massacre dos mais pobres, das minorias sociais e sufocamento da classe média.
A polarização política e a desinformação constante amplificam o risco, e promovem cenário, em que o radicalismo ganha terreno. É imperativo que a sociedade civil se una em defesa dos princípios democráticos, garantindo ambiente de diálogo e resistência às ameaças autoritárias.
Por fim, a selvageria dessa gente pode ser medida pela tentativa de golpe de Estado, em 8 de janeiro de 2023, pelas agressões verbais nas redes sociais e pela falta de decoro no exercício de mandato no Parlamento, onde promovem gritaria e tumultuam o funcionamento das comissões e ameaçam de agressão física os adversários, inclusive autoridades do Poder Executivo e do Judiciário.
Ou põem um freio nisso ou aqueles que indiretamente apoiam essas ações acabarão por legitimar um cenário de autoritarismo e repressão.
Diante desse cenário alarmante, é crucial que a sociedade brasileira se conscientize dos mecanismos de manipulação e desinformação utilizados pela extrema-direita. A valorização da educação crítica, o fortalecimento das instituições democráticas e a promoção de diálogo baseado em fatos são essenciais para combater a polarização e o ressurgimento de ideologias autoritárias.
Só por meio de esforço coletivo, que inclui todos os setores da sociedade, será possível construir futuro mais justo e equitativo, em que a desinformação e o ressentimento não sejam as forças motrizes da política nacional.
E o primeiro passo seria a regulamentação do uso das redes sociais, com punição severa à produção e disseminação de fake news, assim como estabelecer regras de convívio civilizado nos ambientes coletivos onde essa gente tem presença institucional.
(*) Jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo (FGV). Ex-diretor de documentação do Diap, idealizador e coordenador da publicação “Cabeças” do Congresso. É autor dos livros Por dentro do processo decisório – como se fazem as leis e Por dentro do governo – como funciona a máquina pública.
As ramificações da economia, o poder de Wall Street, a ideia de financeirização e o estado da economia argentina são alguns dos temas abordados pelo economista francês (1943), nascido em Nice. Pensador e economista global, é também um conhecedor do cenário argentino.
Robert Boyer Pesquisador associado do Institut des Amériques, foi diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica e de estudos da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, sendo um dos fundadores da chamada escola da regulação, cuja abordagem teve grande influência em todo o mundo, dentro das tradições que se opõem às visões ortodoxas da economia.
Entre outros, é autor dos livros A teoria da regulação: uma análise crítica, Os modelos produtivos (com Michel Freyssenet) e A antropologia econômica de Pierre Bourdieu.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 07-06-2024. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Estamos vivendo um momento especial na economia mundial? Como este momento pode ser chamado ou caracterizado?
Estamos vendo a fragmentação da economia mundial e se corre o risco de sua reorganização em três zonas geográficas: América, Ásia e, no meio, a Europa com a África como continente associado. Não estamos vendo apenas a globalização, mas a formação de entidades regionais. A prova está nos acordos de livre comércio assinados pela Oceania e a China, que se tornaram o principal bloco de livre comércio, além da Europa. Sendo assim, a grande mudança não é tanto o colapso das relações internacionais, o grande perigo é a fragmentação completa.
O projeto chinês consiste em organizar as atividades financeiras dentro da zona do Pacífico. Consequentemente, mudaria completamente o papel do dólar. A segunda consequência é a crise das organizações multinacionais: a Organização Mundial do Comércio não funciona, a ONU é incapaz de deter o conflito entre Israel e a Palestina… vivemos o declínio dos tratados. Em alguns casos, sofremos de egoísmo nacional, o problema é que se converte em egoísmo regional. É um período de grandes mudanças.
Qual é a dimensão atual da “financeirização”, esse seu conceito que se refere ao poder estruturador que o capital financeiro – bancos, instituições de crédito, fundos de investimento, entre outros – adquiriu nas economias ocidentais?
É muito desigual. Nos Estados Unidos, o crescimento provém do aumento da riqueza financeira dos lares. A financeirização é o fenômeno em que o meu padrão de vida e o meu consumo dependem da minha riqueza. Podemos mostrar que quando o mercado de ações está crescendo bem, para países como a Argentina o resultado final é a dependência da afluência de capital.
Sendo assim, por um lado, existe a dimensão virtuosa das finanças, em que todos os países, todos os ricos do mundo, querem investir os seus dólares estadunidenses, e há o outro lado, que como resultado – os países dependentes, como os da América Latina – são forçados a depender de entradas de capital que, finalmente, desestabilizam seus modelos. Se acontece uma crise nos Estados Unidos, desestabiliza as atuais entradas em massa de capital. Tudo depende da saúde dos Estados Unidos. Então, está claro que a financeirização criou um grande problema.
Que outras consequências isso traz?
As desigualdades entre os indivíduos. Thomas Piketty argumenta que as desigualdades surgem quando a renda de alguns cresce junto com o mercado de ações, enquanto um empregado recebe muito pouco salário. O segundo fator são as profundas desigualdades dentro da sociedade, que se manifestam em todas as sociedades. É um fenômeno em massa, mas muito assimétrico. As desigualdades financeiras nos Estados Unidos têm significados absolutamente distintos. A diferença é que nos Estados Unidos podem financiar os seus enormes déficits porque todo o capital está relacionado com esse país.
Qual é a dimensão do poder de Wall Street para além dos Estados Unidos?
Defende o benefício da extraterritorialização de qualquer companhia no mundo. Wall Street capitaliza o fato de os Estados Unidos intervirem em quase todas as transações que sejam feitas com dólares em todo o mundo. Isto explica a tentativa da China e da Rússia em criar um sistema totalmente oposto, independente, para evitar esta dependência. Wall Street continua tendo um poder enorme e a longo prazo.
E que lugar a Argentina ocupa neste mapa?
As finanças são muito poderosas. Comparativamente, a Argentina é um país novo. A China está a cerca de trinta séculos de distância. Tenho a impressão de que o argentino, em cada crise, pergunta-se: sou italiano, sou espanhol? Impressiona-me muito que em crises como a de 2001 crescem as filas em torno das embaixadas italiana e espanhola para retornar à Europa. E depois o segundo elemento: as poupanças dos argentinos que estão no exterior…
Último ponto: há muito pouco crédito. É fácil imaginar que quando existem empresários dinâmicos, precisam de crédito. Contudo, há tão pouca confiança na estabilidade monetária que as empresas que investem são muito poucas e há poucos mecanismos que dão crédito para acumular capital: há uma crise monumental.
Como avalia as medidas econômicas tomadas nos últimos meses, na Argentina?
O padrão de vida médio argentino, comparado ao dos estadunidenses, tem um declínio no consumo. O corte de 35% na renda dos aposentados e a explosão no preço do transporte público são uma grande pressão sobre o nível de vida.
A segunda originalidade deste ajuste brutal é que a escola austríaca propõe um estado minimalista pró-capitalismo e os impostos que penalizam a acumulação são destruídos. Macron e outros líderes também fizeram um ajuste, mas quando se antecipa a violência como parte da terapia, sabe-se que isto não vai funcionar.
Lamento dizer que a Argentina se tornará o laboratório social dos próximos anos. Enquanto isso, retorna o estado na Europa, fala-se de política, portanto, a volta do estado é um momento em que todos se tornam protecionistas, precisamos de infraestruturas, escolas, estabilização.
O estado está voltando na Europa?
Para Milei, existe socialismo nos Estados Unidos, algo que vem da sua adesão à visão austríaca e isso é estranho porque, hoje, há muito poucos economistas conservadores. É como um dinossauro que ressuscitou. Na Europa, há economistas conservadores, mas não da escola austríaca, o que também é uma grande novidade. Sem um banco central, este sistema não passará, é um pouco arrogante pensar assim.
Parece-me uma extraordinária demonstração de autoconfiança dar lições de capitalismo aos principais empresários do mundo em Davos. Vejo isto como algo muito engraçado. Você precisa de uma participação pública. Primeiro, produz-se acumulação, depois, o estado tem que tentar redistribuir. Por fim, vem a escolaridade gratuita obrigatória, os investimentos em ferrovias, as infraestruturas que, por exemplo, contêm as nuvens na Internet, por exemplo. Até mesmo as empresas muito grandes não dispõem de recursos para realizar a pesquisa fundamental.
Portanto, há toda uma série de razões pelas quais o estado está gradualmente construindo o capital. Na Dinamarca, o estado realiza um controle diário nos municípios sobre a qualidade dos serviços, a educação, as creches para as crianças, a saúde gratuita e assim por diante. Há também o partido-Estado na China, totalmente dirigido pelo Partido Comunista.
Lá, os empresários e intelectuais mais talentosos formam a elite, é um estado de desenvolvimento estatista como nunca houve antes. Na China tudo está ligado, mais uma vez, para acumular riqueza e poder. Ao contrário dos estadunidenses, esta forma de estado é relativamente eficiente. A industrialização da China acontece três vezes mais rápido do que a da Inglaterra em seu momento.
Hoje, qual é o papel do FMI? Qual é a sua legitimidade e peso?
Quando o FMI deu 44 bilhões de dólares da última vez à Argentina, eu disse a mim mesmo que não se importa que a Argentina não possa pagá-lo, então, deu um pouco mais de dinheiro para que o reembolsasse. Deu-lhes mais por razões geopolíticas, acredito. Tenho a impressão de que já não têm o poder que costumam ter, estão um pouco perdidos porque não querem criar uma crise financeira global. Contudo, como um soldado, o FMI tem de restaurar a estabilidade financeira. Tanto a Organização Mundial do Comércio como o Fundo Monetário Internacional estão sofrendo uma espécie de decadência interna.
A China está no processo de tentar criar suas próprias instituições a nível regional. Os preços são fixados em dólares e o volume comercial é vinculado ao dinamismo mundial. Paradoxalmente, a dependência da Argentina em relação ao resto do mundo aumentará. O melhor teria sido reconstituir uma base nacional de consumo antiga e sustentável, uma pequena base industrial que permitisse, em caso de crise mundial, compensar a perda de exploração devido ao dinamismo interno e com a abertura da indústria, os produtores entenderam que não vão mais produzir leite e vão ter acesso a ele no Uruguai.
Considera que hoje a economia volta a ser mais importante do que a política?
É muito mais importante olhar para a política. Nos Estados Unidos, defendem-se politicamente, defendem a sociedade. A Europa antepôs a economia à política. Hoje, todo o esforço está concentrado na defesa individual, na política industrial comum, em impulsionar a economia. Então, esta é a fragilidade da Europa: antepôs a economia à política.
Aprendemos que todo o esforço está concentrado na defesa individual da política industrial. Esta é a fragilidade da Europa: antepôs a economia à política. Na minha opinião, é um grande retorno à geopolítica, como se defender em um mundo que está em processo de divisão, e a economia se converte, então, no serviço da geopolítica.
Quantos governos “pensam verde”? Que países estão realmente lutando contra a mudança climática em sua abordagem econômica?
Na França, por exemplo, queriam impor um imposto sobre a gasolina, o que aumentou brutalmente os preços marginais, o que significa que os pequenos artesãos, as famílias etc. caíram abaixo do limiar de subsistência. A grande dificuldade é que triunfar sobre a ecologia significa que temos de arbitrar o público e alcançar a estabilização do clima em nível mundial.
A grande dificuldade é a luta contra o bem público, a habitabilidade da terra, isso significa que temos que arbitrar contra a consciência positiva nos países ricos. É factível nos Países Baixos, mas não em todas as partes. Então, vamos lutar racionalmente contra a mudança climática em um momento bastante dramático.