As centrais sindicais, na Pauta da Classe Trabalhadora 2023/2026, documento no qual propõem diretrizes para o desenvolvimento do Brasil, apresentam a demanda para “promover o princípio do trabalho igual, salário igual”, o que está consignado na Convenção 100, da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Cemente Ganz Lúcio*
O Congresso Nacional aprovou projeto encaminhado e sancionado pelo presidente Lula, a Lei 14.611/23, que dispõe sobre a igualdade salarial e critérios remuneratórios entre mulheres e homens para a realização de trabalho igual ou no exercício da mesma função.
Trata-se de ótima iniciativa, porque a experiência internacional indica que essa desigualdade diminui quando há legislação nacional que enfrenta o problema. Agora, o Brasil se conecta com as melhores práticas internacionais nesse âmbito, abrindo caminho para avanços, inclusive na pauta sindical e nas negociações coletivas.
Em 2020 a CES — Confederação Europeia de Sindicatos — apontou que a diferença salarial de gênero na União Europeia somente seria eliminada, mantendo o ritmo de então, no próximo século. Naquele ano os dados do EU (Eurostat), indicavam que a brecha salarial havia fechado 1% em 8 anos.
Nesse ritmo, as mulheres deveriam esperar mais 84 anos para alcançar a igualdade salarial na União Europeia. A CES demandava que as instâncias de governança da EU adotassem legislação que enfrentasse o problema desse tipo de desigualdade. Em meados de 2023, a União Europeia também aprovou a diretiva de transparência salarial para todos os países da região.
Há estudo muito interessante produzido pela organização Equileap — Data for Equality, “Gerder Equality Report & Ranking 2024” —, que avalia a desigualdade de gênero em 4 mil empresas em países desenvolvidos.
Para fazer essa pesquisa comparativa o Equile apelaborou o “Equileap Gender Equality Scorecard”, conjunto de critérios e de indicadores que buscam materializar métricas comparativas e que estão baseados nos Princípios de Empoderamento das Mulheres das Nações Unidas. Esses critérios formam conteúdo inspirador para a elaboração de pautas sindicais focadas na igualdade dentre mulheres e homens no mundo do trabalho. São 5 blocos de diretrizes, a seguir apresentadas:
Bloco 1: Equilíbrio de gênero nos cargos de liderança e na força de trabalho:
• Conselho de Administração: equilíbrio de gênero no conselho de administração e demais conselhos (p.ex. fiscal).
• Executivos: equilíbrio de gênero nos cargos de diretoria executiva.
• Alta administração: equilíbrio de gênero na alta administração.
• Força de trabalho: equilíbrio de gênero na participação de mulheres e homens na força de trabalho da empresa.
• Promoção, oportunidades e desenvolvimento de carreiras: equilíbrio de gênero em toda a estrutura de gestão da empresa.
Bloco 2: Salário igual e equilíbrio entre vida e trabalho:
• Salário digno: compromisso de pagar salário digno a todos.
• Disparidade salarial entre homens e mulheres: transparência nos dados salariais entre homens e mulheres; estratégias para eliminar as disparidades; mensuração do desempenho para alcançar os objetivos.
• Licença parental: programas de licença remunerada para os cuidados das crianças, para cuidadores primários e secundários e políticas de igualdade nesse direito.
• Opções flexíveis de trabalho: opção de controlar e/ou variar os horários de início e término da jornada de trabalho, e/ou variar o local de trabalho.
Bloco 3: Promoção de políticas de igualdade de gênero:
• Formação de carreira e desenvolvimento: igualdade no acesso à formação e ao desenvolvimento de carreira.
• Estratégia de recrutamento: não haver discriminação de qualquer tipo.
• Violência, abuso e assédio sexual: proibição de todas as formas de violência no local de trabalho, incluindo assédio verbal, físico e sexual.
• Segurança no Trabalho: segurança no local de trabalho, nos deslocamentos de e para o local de trabalho e em negócios relacionados à empresa, bem como dos fornecedores e terceirizados no local de trabalho.
• Direitos humanos: proteção aos direitos humanos, inclusive aos direitos de participar de assuntos jurídicos, cívicos e políticos.
• Cadeia de abastecimento: compromisso de reduzir riscos na cadeia de abastecimento/produtiva (trabalho análogo ao escravo, trabalho infantil, exploração sexual).
• Diversidade de fornecedores: garantia de diversidade na cadeia de abastecimento, inclusive no apoio às empresas pertencentes à mulheres na cadeia de fornecedores.
• Proteção dos funcionários: sistemas e políticas para relatar reclamações internas de conformidade ética, com confidencialidade e segurança.
Bloco 4: Compromisso, Transparência e Responsabilidade:
• Compromisso com empoderamento das mulheres, segundo as diretrizes da ONU Mulheres.
• Auditoria: manter ou participar de sistemas de auditoria das políticas e práticas de igualdade de gênero.
Essas diretrizes formam bom roteiro para a elaboração das pautas sindicais a serem apresentadas nas negociações coletivas. Da mesma forma, permitem desenvolver o trabalho de formação sindical para preparar, em especial as mulheres, para promover essa agenda no meio sindical, nas relações de trabalho, nas negociações coletivas, nas empresas e nas organizações.
(*) Coordenador do Fórum das Centrais Sindicais, membro do Cdess (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável) da Presidência da República, membro do Conselho Deliberativo da Oxfam Brasil, consultor e ex-diretor técnico do Dieese (2004-2020).
O PL proposto pelo governo federal – com seu contexto específico – consegue ser ainda pior do que a contrarreforma de 2017. Na verdade, trata-se do pior momento da história dos direitos trabalhistas no Brasil.
“Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação”
Perfeição, Legião Urbana
OPL proposto pelo governo federal – com seu contexto específico – consegue ser ainda pior do que a contrarreforma de 2017. É assim que precisamos compreender a proposta de regulação da atividade de motoristas contratados por empresas que operam seu negócio por intermédio de plataformas digitais. Na verdade, trata-se do pior momento da história dos direitos trabalhistas no Brasil.
O evento festivo da assinatura do PL, então, foi um show de horrores, forjado a partir de alegorias artificialmente propostas para criar uma realidade paralela. Aliás, bem ao estilo do dito “trabalho virtual”. Uma explicitação de autêntico negacionismo, vindo daqueles que, justamente, se apresentaram como um contraponto ao processo de bestialização vivenciado de 2018 a 2022.
Desde o início do ano passado, com presença ativa do governo, vinham sendo feitas discussões entre representações dos motoristas e das empresas que exploram sua força de trabalho. A proposta das empresas, desde o início, era a regulação precarizante: chamar de autônomos seus empregados; permitir que estes trabalhassem em limite (inconstitucional, é bom frisar) de 12h diárias; e que se mantivesse um sistema de controle das atividades dos motoristas, com permissivos punitivos, inclusive. E qual o teor do texto do PL apresentado ontem, com pompa e circunstância pelo governo? Exatamente o que as empresas propuseram desde o início.
O texto não reflete, portanto, diálogo e estudos para enfrentamento de uma questão que seria promovida pela inserção da nova tecnologia no mundo do trabalho. Considerando os dados concretos, refletidos no histórico e no resultado final do PL, trata-se, isto sim, de mera capitulação!
Em sentido diametralmente oposto ao que vem sendo realizado, em termos de regulação deste tipo de trabalho, o PL, no entanto, foi apresentado como a melhor proposta possível…Mas isto, evidentemente, apenas para os tomadores do trabalho!
O governo trabalhista capitula, cai de joelhos, e defende, explicitamente, os ideais dos patrões, ou, mais precisamente, do capital estrangeiro, em seu propósito de auferir grandes taxas de lucro por meio da exploração de um trabalho sem proteção social e poder de reivindicação. A leitura do texto causa indignação e revolta.
Foi a tarde da consagração da maior derrota da classe trabalhadora brasileira, mesmo que o PL, caso sejamos tomados por uma hecatombe, não seja aprovado no Congresso Nacional. Neste aspecto, a fala do Presidente da República é plenamente verdadeira. O evento foi histórico. Ele e seu governo entrarão para a história como os agentes que apresentaram e defenderam, de forma convicta, uma lei com potencial para destruir completamente o aparato jurídico de proteção dos trabalhadores e das trabalhadoras, ao qual se denomina Direito do Trabalho. Parece exagero? Pois bem, vamos lá.
A base das decisões que vêm sendo proferidas nas reclamações constitucionais propostas por essas mesmas empresas é a de que não são elas que se relacionam com os motoristas e sim o aplicativo; ou uma modalidade de contratação por meio de plataforma digital. Assim, por este passe de mágica, elas não se integrariam à figura do empregador. E o art. 3º do PL acolhe exatamente essa fantasia, dizendo que o motorista, “para fins trabalhistas”, ostenta a condição jurídica de um “trabalhador autônomo por plataforma”.
E não só.
Ao tratar desse trabalho como autônomo, o governo acaba de algum modo fazendo coro ao discurso de que tais relações devem ser submetidas à justiça comum. Contribui, portanto, para o movimento de esvaziamento da competência material da Justiça do Trabalho.
O PL já inicia referindo tratar de relação de trabalho “intermediada” por “empresas operadoras de aplicativos de transporte”. Mas não há intermediação. Ora, a empresa: admite, pois aceita ou não o cadastro de quem se candidata ao trabalho; assalaria, estabelecendo, inclusive, o valor do trabalho; e dirige a atividade, pois fixa o modo como o trabalho será prestado. Além disso, assume os riscos do empreendimento, pois é a empresa que contratamos, quando precisamos do transporte de coisas ou de pessoas.
Há referência, também no art. 3º, à “plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos em que se conectará ao aplicativo”. No entanto, essa condição já existe em outras relações de trabalho e não guarda relação alguma com autonomia ou subordinação. É a mesma condição de quem realiza teletrabalho, por exemplo. A suposta liberdade não altera os moldes da exploração. É apenas o reconhecimento de uma característica desse vínculo específico e que, na prática, nem se realiza. E o mais importante: não constitui reconhecimento de direito algum, pois essa possibilidade de trabalhar em horários variáveis é condicionada (com ou sem a aprovação dessa lei) às tarifas praticadas pela empresa, à quantidade de motoristas atuando na mesma região, às características do lugar em que o trabalho está sendo realizado. Então, sequer essa condição é efetivamente expressão da liberdade de quem está vendendo sua força de trabalho.
A ausência de exclusividade também não é direito reconhecido por essa legislação. Em lugar algum na legislação trabalhista existe tal exigência para a formação de um vínculo de emprego. Do mesmo modo, a possibilidade de representação sindical é direito de todas as pessoas que vivem do trabalho, sendo desnecessária lei que a refira.
O §2º do artigo 3º impressiona. Refere que o “período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar doze horas diárias”. 12 horas! 12 horas, todos os dias! Isso, apesar da Convenção 01 da OIT, de 1919, fixar o máximo de 8 horas de trabalho por dia. Apesar de o Art. 7º da Constituição fixar como direito “dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” “XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias”. Um retrocesso inaceitável.
Ainda que estivéssemos diante de um contrato formulado a partir dos parâmetros do direito, não teríamos como sustentar a possibilidade de uma lei que contraria o limite máximo estabelecido por um dispositivo constitucional e que, nitidamente, fere direitos fundamentais. Não há como sustentar, juridicamente, a existência de um grupo de pessoas para as quais os direitos fundamentais e a Constituição não tenham validade.
O art. 5º é igualmente assustador. Estabelece a possibilidade de que as empresas operadoras de aplicativos adotem “normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados por intermédio da plataforma, inclusive suspensões, bloqueios e exclusões”. Punição, no melhor estilo do que a linguagem, à época do capitalismo industrial, chamava de “gancho”. Algo que sequer a CLT prevê: a possibilidade de punir quem depende do trabalho para sobreviver. Nada pode representar melhor o quanto as relações de trabalho no Brasil seguem atravessadas por uma racionalidade escravista, que não vê limite à lógica da exploração e da precarização do trabalho.
Criaram a figura do trabalhador autônomo com direito de ser punido por aquele que não é seu patrão e que diz que não é seu patrão porque o trabalhador é livre!!! Dá até para entender a comemoração: precisa ter muita criatividade e inventividade para se chegar a uma tal formulação; ou muito cinismo!
A questão é que agora a proposta de precarização vem assinada por um ex-líder sindical, operário, cuja carreira política sustentou-se em seu compromisso com a classe trabalhadora.
O projeto estabelece, ainda, o direito da tomadora do trabalho de utilizar “sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados”, ou seja, controle da jornada, e “sistemas de avaliação de trabalhadores e de usuários”, ou seja, metas para a extração de mais-valia. Ainda, podem oferecer “cursos ou treinamentos”, em óbvio direcionamento da atividade. Tudo, sem que se “configure relação de emprego nos termos do disposto na Consolidação das Leis do Trabalho”. Parece deboche.
Aliás, o art. 6º dispõe que a empresa poderá excluir unilateralmente o trabalhador da plataforma nas “hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, garantido o direito de defesa”. Daí a comparação com a contrarreforma de 2017. Estamos diante de uma proposta de lei empresarial.
Mas dirão aqueles que seguem defendendo cegamente a postura adotada pelo governo: há garantia de remuneração mínima pelas horas trabalhadas. Ora, também aí não houve avanço, pois o reconhecimento de que se trata de um típico vínculo de emprego seria suficiente para que um salário mínimo fosse garantido. A regra, na realidade, tem também uma finalidade precarizante, pois se refere ao ressarcimento das despesas que o trabalhador suporta, a serem devidas “nos termos do regulamento”, incluídas no valor-hora. Ou seja, concretamente não haverá ressarcimento de despesas.
E submetidas as partes ao processo negocial livre, determinado pela lei de mercado, ou seja, da oferta e da procura, a tendência é que os ganhos tendam a um rebaixamento constante, ainda que um valor nominal esteja garantido, pois poder de compra não tem correlação exata com este valor.
Enfim, o que se tem é o projeto de uma lei para um trabalho sem direitos. Uma lei que garante às multinacionais que exploram trabalho de transporte por meio de plataformas digitais, a possibilidade de seguirem atuando à revelia da legislação trabalhista e do pacto constitucional de solidariedade. Uma lei que fere a regra da jornada máxima prevista na Constituição. Uma lei que autoriza punição entre particulares que se relacionam a partir dos parâmetros jurídicos da igualdade e da liberdade. Um festival de retrocessos.
Se estivéssemos no governo anterior, certamente setores da esquerda e entidades do mundo do trabalho, incluindo o próprio Presidente e seu partido político, já teriam apelidado a proposta de “PL da morte dos trabalhadores e das trabalhadoras”.
Mas não foi o governo golpista, nem foi aquele que debochou das pessoas mortas por asfixia, durante a pandemia, que acabaram desferindo este ataque à classe trabalhadora. A ferida está sendo provocada por um ato de violência vindo do governo trabalhista e fará sangrar os trabalhadores e as trabalhadoras, ainda mais do que vêm sangrando na realidade brasileira (e não é de hoje); fará sofrer quem depende do trabalho para sobreviver.
Talvez por tudo isso esteja doendo tanto.
Valdete Souto Severo é professora da Faculdade de Direito da UFRGS.
Jorge Luiz Souto Maior é professor da Faculdade de Direito da USP.
O texto proposto pelo governo federal enquadra os motoristas como trabalhadores autônomos, sem vínculo pela CLT.
Anísio Garcez Homem e Claudio Ribeiro
Fonte: Brasil de Fato
Data original da publicação: 09/03/2024
Nesta semana, teve destaque o anúncio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sobre o Projeto de Lei Complementar (PLC) que trata da vida profissional dos motoristas de aplicativos. A proposta foi enviada ao Congresso Nacional e estabelece uma “nova forma de relação de trabalho intermediado por empresas que operam aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos de quatro rodas”.
Ou seja, ele abrange os quase 800 mil motoristas que prestam serviços via aplicativos hoje no Brasil hoje. Durante a cerimônia oficial de apresentação do PLC, Lula declarou: “os trabalhadores vão prestar serviço, vão ser respeitados por isso…”.
Segundo o governo, o projeto é o resultado de um Grupo de Trabalho Tripartite com representantes dos trabalhadores, empresas de plataforma e governo, instituído em 1º de maio de 2023. Cada segmento teve direito a 15 indicações, o que permitia prever que, se governo e trabalhadores jogassem juntos, por meio dos seus 30 representantes, o resultado seria uma proposta pendendo significativamente para o lado dos trabalhadores. Foi isso que aconteceu?
Há duas formas de julgar o significado real deste PLC para os motoristas de aplicativos.
A primeira delas é a de achar que não havia nenhuma regulamentação profissional destes trabalhadores e agora vai passar a existir. A questão é: o que vai passar a existir é bom para os trabalhadores ou apenas dá segurança jurídica, legaliza, o que as empresas de aplicativos já vêm fazendo? Não é novidade para ninguém que, no mundo todo, há uma enorme pressão social contra a situação insustentável de ilegal “superexploração” praticada por essas grandes empresas multinacionais.
A segunda maneira de julgamento é tomar como ponto de partida o que reivindicavam os representantes dos trabalhadores no Grupo Tripartite.
De acordo com Nota Técnica do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) de 5 de março último, indicada no site da CUT, as reivindicações dos trabalhadores eram as seguintes:
1. Regulação tributária e trabalhista conforme setor de atividade ao qual a empresa está vinculada, ou seja, não se trata de empresa de tecnologia, mas de uma empresa que faz uso de uma tecnologia específica para organizar o seu negócio.
2. Prevalência dos acordos e convenções coletivas, bem como das regulações próprias, leis municipais e estaduais, que estabeleçam condições mais vantajosas ao(à) trabalhador(a).
3. Direitos sindicais garantidos conforme previsto nos artigos 8º e 9º da Constituição Federal de 1988 e dos demais dispositivos regulatórios, particularmente, os previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), cabendo aos sindicatos laborais ter acesso às informações sobre o algoritmo, no que diz respeito às relações de trabalho que estabelecem com os(as) trabalhadores(as), assegurando total transparência em suas atividades.
4. Negociação coletiva como caminho mais adequado para a regulação dos desdobramentos do que já existe em lei para o trabalho em empresas-plataforma.
5. Flexibilidade do(a) trabalhador(a) para poder definir seus horários de trabalho e descanso, dentro do limite diário e semanal da jornada de trabalho, com direito à desconexão e Descanso Semanal Remunerado (DSR).
6. Vínculo de trabalho definido conforme legislação atual, ou seja, vínculo indeterminado para trabalhadores(as) habituais e [vínculo] autônomo para trabalhadores eventuais, conforme disposto na CLT e demais regras definidas na mesa, utilizados os registros do CBO 5191-10 (Motofretista) e CBO 5191-05(Ciclista).
7. Jornada de trabalho compreendida como todo o tempo à disposição da empresa – plataforma, desde o momento do login até o logout na plataforma, independentemente da realização ou não de serviço, sendo limitada a oito horas diárias e quarenta e quatro [horas] semanais, com direito a hora extra, caso ultrapasse esse horário, conforme Constituição Federal de 1988.
8. Seguridade social, com filiação do(a) trabalhador(a) ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) como contribuinte obrigatório e recolhimento da parte patronal, conforme tributação pertinente atualmente, no setor de atividade ao qual a empresa está vinculada.
9. Remuneração mínima (piso mínimo mensal), bem como regras que garantam valor mínimo por corrida/serviço, paradas extras, taxas para cancelamentos realizados pelos usuários dos serviços e sua atualização anual, realizada por meio de negociação coletiva. Garantir reembolso de despesas com veículos.
10. Transparência nos critérios relacionados à remuneração, meios de pagamento, fila de ordem de serviço etc., garantindo-se que a alteração de qualquer tema relacionado só ocorra por negociação coletiva, bem como garantindo que os códigos e os algoritmos sejam regularmente submetidos à auditoria de órgãos especializados do Poder Público.
11. Saúde e segurança: condições garantidas conforme a atividade efetivamente realizada, seguindo as regulamentações já existentes pertinentes a cada atividade e respectivos acordos e convenções coletivas.
12. Exercício e processo de trabalho: as condições de trabalho devem seguir as definições previstas O acordo tripartite para regulamentação do trabalho em plataformas de transporte remunerado de passageiros 4 na CLT e demais regulamentações existentes. Regras específicas devem ser definidas em negociação coletiva com as empresas. Além disso, deve-se criar um cadastro único dos trabalhadores e trabalhadoras que executam atividades nas plataformas, para que o setor público e os sindicatos possam acompanhar as necessidades do setor e realizar ações de fiscalização pertinentes.
O texto do PLC proposto pelo governo federal enquadra os motoristas como trabalhadores autônomos, ou seja, sem vínculo pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), determina o pagamento de alíquota de 27,5% de contribuição no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Desses, 7,5% seriam pagos pelos trabalhadores, e 20%, recolhidos pelas empresas. O texto também estabelece pagamento de R$ 32,09 por hora trabalhada e remuneração de, ao menos, um salário mínimo (R$ 1.412). Segundo a proposta do governo, o tempo de trabalho do motorista não poderá ultrapassar 12 horas por dia, mas, é permitida essa jornada, o que contraria a jornada de 8 horas prevista na CLT.
Comparando a pauta inicial dos trabalhadores e o que propõe o PLC, fica claro que o projeto do governo fica muito aquém do que desejavam os representantes dos motoristas de aplicativos no Grupo Tripartite.
O Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, declarou a respeito da questão da opção pela denominação jurídica de autônomos para a categoria:
“Era exatamente o que os trabalhadores pediam: ‘Nós não queremos estar rígidos’. O problema é que essa liberdade era uma liberdade falsa, porque os trabalhadores estavam sendo escravizados com longas jornadas e baixa remuneração”.
Há certamente uma controvérsia entre o que diz o Ministro e o ponto 3 da pauta de reivindicações dos representantes dos trabalhadores no Grupo Tripartite, onde, segundo o DIEESE, eram requisitados “Direitos sindicais garantidos conforme previsto nos artigos 8º e 9º da Constituição Federal de 1988 e dos demais dispositivos regulatórios, particularmente, os previstos na CLT”.
Em outro momento, a fala de Marinho contradiz a ele próprio: “O que nós mais ouvimos dos trabalhadores de aplicativo: ‘Nós não queremos ser enquadrados na CLT, queremos coisa nova’. Mas também ouvimos trabalhadores que gostariam de ter a CLT” (grifo nosso).
Ora, se na pauta apresentada pelos representantes dos trabalhadores havia a reivindicação pela garantia dos direitos da CLT e o próprio ministro do Trabalho reconhece que há entre os milhares de trabalhadores quem queira isso, por que, no melhor estilo da democracia sindical não se consultou os trabalhadores para uma decisão final onde fosse respeitada a vontade da maioria?
As empresas de aplicativos, essas sim são unânimes em rejeitar os direitos inscritos na CLT uma vez que deste modo mantém o alto índice de exploração e suas gigantescas margens de lucro.
O PLC dos motoristas de aplicativos deve trazer dois tipos de preocupações sociais. A primeira delas diz respeito a que abre as portas para uma maior pressão das empresas de aplicativos de entregas (motoboys, etc) em arrancar um acordo rebaixado de regulamentação da profissão. A segunda, de ordem geral para todos os trabalhadores brasileiros, é a de servir de pretexto para escancarar as possibilidades de uma revisão geral da atual jornada de trabalho de 8 horas, aumentando-a para 12 horas em nome de suposto trabalho “autônomo”.
Se a CLT e seus direitos pode ser desconsiderada para um setor econômico, certamente servirá ao patronato em geral como um modelo para lastrear uma ofensiva política de generalização do abandono de sua aplicação. Isso num momento em que seria mais que providencial para a classe trabalhadora uma campanha pela redução da jornada de trabalho no país não é um bom sinal.
Numa parte de seu discurso na cerimônia de assinatura do PLC, o Presidente Lula afirmou: “Há algum tempo, ninguém neste país acreditava que seria possível estabelecer uma mesa de negociação entre trabalhadores e empresários, e que o resultado dessa mesa ia concluir uma organização diferente no mundo do trabalho”.
Concordamos com Lula que o PLC propõe uma “organização diferente no mundo do trabalho”, sobretudo diferente das garantias trabalhistas asseguradas na CLT. Caberia aos dirigentes sindicais e aos representantes dos motoristas de aplicativos convocar os trabalhadores deste setor para avaliar coletivamente o que fazer diante do PLC: apoiá-lo sem restrições, fazer emendas a ele no sentido das 12 reivindicações iniciais, apresentar-lhe uma outra proposta alternativa.
Evidentemente que qualquer avanço em relação ao texto proposto no PLC original só seria conquistado com a pressão de mobilizações. Será também a volta das mobilizações dos entregadores (motoboys) que fará empresas como a Ifood deixar a sua intransigência e negociar uma proposta de regulamentação benéfica aos trabalhadores deste setor.
Por fim, é questionável do ponto de vista jurídico se o PLC poderia legalizar o ilegal que hoje próspera na relação de trabalho entre os motoristas de aplicativos e as empresas de plataforma ao colocar de lado as regras da CLT em uma nítida relação de emprego. Como diz o ponto 1 da plataforma de 12 pontos apresentados pelos representantes dos trabalhadores no Grupo Tripartite: “Não se trata de empresa de tecnologia, mas de uma empresa que faz uso de uma tecnologia específica para organizar o seu negócio”.
Anísio Garcez Homem é escritor e autor de “LRF uma lei antisocial”
Cláudio Antônio Ribeiro é militante, foi dirigente bancário, opositor à ditadura militar, e advogado trabalhista.
O envolvimento das entidades sindicais no processo de monitoramento do cumprimento da regra de igualdade remuneratória de gênero é fundamental para que a dimensão institucional, coletiva e estrutural de tal desigualdade seja levada em consideração.
Mais um Dia Internacional das Mulheres, 8 de março – instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975 – se aproxima, e o tema recorrente é a desigualdade entre homens e mulheres. Publicado desde 2006, o Global Gender Gap Report [Relatório Global de Desigualdade de Gênero], divulgado pelo World Economic Forum [Fórum Econômico Mundial], aponta que nenhuma sociedade, dentre os 146 países que enviam informações para a composição do Relatório, alcançou a paridade entre homens e mulheres.
O relatório é feito a partir de um indicador – o Global Gender Gap Index [Indicador Global de Desigualdade de Gênero], que é composto pelas seguintes dimensões, ou subindicadores: (i) empoderamento político; (ii) participação econômica e oportunidades; (iii) nível educacional e (iv) saúde e expectativa de vida.
De acordo com o Relatório, se as taxas de progresso verificadas no período de 2006 – 2023 se mantiverem, a partir da amostra de 102 países, é possível estimar o tempo que será levado para preencher as lacunas produzidas por tal desigualdade. Em relação ao empoderamento político, serão 162 anos; quanto à participação econômica e oportunidades, serão 169 anos; 16 anos serão necessários para a igualdade em nível educacional; e, para o atingimento da igualdade no que diz respeito à saúde e à expectativa de vida, o tempo permanece indefinido.[i]
A partir dessas dimensões, o indicador varia entre 0 e 1, em que 1 seria a igualdade plena entre homens e mulheres. Para exemplificar, temos a Islândia, com o índice 0,912, ocupando a primeira posição no ranking, e Afeganistão, com o índice de 0,405, ocupando a 146ª posição. O Brasil ocupa a 57ª posição, com o índice de 0,726.[ii]
De acordo com o Relatório, na dimensão “Participação econômica e oportunidades”, a Libéria é o país que ocupa a primeira posição, com o índice de 0,895; e o Brasil ocupa a 86ª posição, com o índice 0,670.[iii] Em relação a esta dimensão, a partir dos estudos sobre igualdade de gênero produzidos nas diversas áreas do conhecimento, notadamente os de Helena Hirata[iv] e Flavia Biroli,[v] para o contexto brasileiro, é possível afirmar que tal desigualdade é um dos reflexos da divisão sexual do trabalho, que estrutura, primeiramente, a divisão das atividades do mundo entre homens e mulheres e, após essa divisão, estabelece uma hierarquia entre elas, sendo as atividades atribuídas aos homens mais valorizadas que aquelas atribuídas às mulheres.
Somada à divisão sexual do trabalho, temos a sobrecarga das mulheres com o trabalho do cuidado principalmente de crianças, resultado de uma dupla delegação de responsabilidade: em primeiro lugar, a delegação feita pelo Estado em relação às famílias; em segundo, das famílias em relação às mulheres.[vi]
O Estado brasileiro adotou uma importante medida em busca de acelerar o processo para o alcance da desigualdade de participação econômica e oportunidades entre homens e mulheres: a Lei nº. 14.611, de 3 de julho de 2023, que “dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens; e altera a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943”.[vii] Conhecida como “lei da igualdade salarial”, sua aprovação pode, para um analista apressado, ter parecido redundante ou inócua, uma vez que a igualdade entre homens e mulheres é estabelecida explicitamente no artigo 5º, inciso I da Constituição da República brasileira. Para além de um dispositivo jurídico, a previsão constitucional é um elemento fundacional das expectativas de realização da sociedade brasileira, estabelecidas em 1988.
Deixando de lado a pressa, lendo o texto da Lei nº 14.611/23, verifica-se que são determinadas providências para a aferição do cumprimento da regra republicana fundacional que estabelece a igualdade entre homens e mulheres no território brasileiro. Tais critérios serão definidos por meio das ações previstas no artigo 4º da Lei: (i) Estabelecimento de mecanismos de transparência salarial e de critérios remuneratórios; (ii) incremento da fiscalização contra a discriminação salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens; (iii) disponibilização de canais específicos para denúncias de discriminação salarial; (iv) promoção e implementação de programas de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho que abranjam a capacitação de gestores, de lideranças e de empregados a respeito do tema da equidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, com aferição de resultados; e (v) fomento à capacitação e à formação de mulheres para o ingresso, a permanência e a ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens.
Em tal Lei, poderia ser apontado como inadequado o ponto (v), que parte de um pressuposto de que as mulheres precisariam ser capacitadas para o mercado de trabalho, quando se sabe que, no contexto brasileiro, uma maior capacitação de mulheres não necessariamente reduz as desigualdades de gênero na remuneração pelo trabalho,[viii] e não há estudos que demonstrem menor aptidão das mulheres para o mercado de trabalho em cada posição específica. O que há, como anteriormente apontado neste texto, é uma divisão do trabalho, a qual importa em uma divisão ontológica das atividades humanas entre homens e mulheres e, após tal divisão, uma hierarquia entre essas atividades. Teto de vidro, labirinto de cristal, precarização do trabalho da mulher, profissões sub-remuneradas, como o trabalho doméstico, entre outras, são aspectos extremos da estrutura desigual que organiza o mundo do trabalho entre homens e mulheres.
Além disso, a Lei nº 14.611 utiliza os termos critérios e medidas, mas não menciona como será aferida a igualdade. O que a Lei faz é determinar providências e atribuições a serem adotadas e cumpridas por empresas e monitoradas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e, a partir do monitoramento dos dados produzidos por tais providências é que será possível a definição de medidas a serem adotadas para a constituição de critérios equânimes de remuneração.
A despeito destas críticas, a regulamentação da Lei nº 14.611 de 2013 apresentou diversos avanços que passam a ser destacados.
Em primeiro lugar, tal Lei estabeleceu a obrigatoriedade de publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios que, inicialmente, serão instrumentos de verificação da observância da regra geral republicana de igualdade entre homens e mulheres.
Em segundo lugar, a Lei prevê sanções às pessoas jurídicas que apresentarem dados que revelem desigualdade remuneratória entre homens e mulheres: além de multa, a pessoa jurídica empregadora deverá apresentar um plano de ação para mitigar a desigualdade, com metas e prazos, e elaborado a partir de processo que envolva as entidades sindicais. O envolvimento das entidades sindicais no processo de monitoramento do cumprimento da regra de igualdade remuneratória de gênero é fundamental para que a dimensão institucional, coletiva e estrutural de tal desigualdade seja levada em consideração, para além da reivindicação de direitos individuais. O propósito da Lei nº 14.611 de 2023 não diz respeito apenas ao direito que toda trabalhadora tem de não ser discriminada, mas também traça uma rota em direção à construção de ambientes de trabalho mais equânimes.
Em terceiro lugar, a Lei prevê a criação de uma plataforma digital unificada sobre mercado de trabalho e renda com dados desagregados por sexo, incluindo indicadores de violência contra a mulher, de vagas de creche e de acesso à saúde, além de outros dados que possam impactar o acesso a emprego. Neste ponto, no artigo 5º, § 1º, há a indicação de que dados sobre raça, etnia e nacionalidade, nacionalidade e idade também deverão ser coletados.
O Decreto nº 11.795, de 23 de novembro de 2023,[ix] regulamentou a Lei para dispor sobre o Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, a ser exigido pelo MTE, e sobre o Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens, a serem elaborados pelas pessoas jurídicas que não observarem a igualdade entre homens e mulheres, de acordo com a orientação do MTE. Em decorrência dessa regulamentação, é previsto no Decreto que cabe ao Ministério das Mulheres e ao Ministério do Trabalho e Emprego monitorar os dados e o impacto da política pública e a avaliação dos seus resultados. Neste Decreto, então, há uma aposta no monitoramento interministerial para o sucesso da política pública elaborada para o cumprimento da igualdade entre homens e mulheres do ponto de vista salarial.
Em cumprimento da atribuição designada no Decreto nº 11.795 de 2023, foi publicada a Portaria MTE nº 3.714, de 24 de novembro de 2023, na qual é determinado que os dados a serem prestados por empregadores serão obtidos a partir de duas plataformas, o eSocial e o Portal Emprega Brasil. Além de estabelecer as obrigações de empregadores diante do MTE, a portaria estabelece, em seu artigo 4º, a obrigação de que o Relatório de Transparência Salarial deverá seja publicado pelas empresas de forma a dar acesso ao público das políticas remuneratórias de cada uma.
O e-Social é um sistema informatizado da Administração Pública disponível para o empregador doméstico, o segurado especial e o Microempreendedor Individual (MEI), por meio da plataforma gov.br.[x] O Portal Emprega Brasil disponibiliza aos trabalhadores políticas e ações de emprego, tendo em vista o trabalho decente, e, às empresas, aplicações que possibilitam o “encontro mais rápido do trabalhador desejado”, além do auxílio no “atendimento das disposições trabalhistas”.[xi]
De acordo com o artigo 6º da Portaria MTE nº 3.714 de 2023, tal relatório será obrigatório após a disponibilização da aba de Igualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios, na área do empregador do Portal Emprega Brasil.
Na Portaria, ainda, há uma seção dedicada ao Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade salarial e de Critérios Remuneratórios entre mulheres e homens. Neste ponto, a portaria prevê que tal Plano deverá conter: (a) medidas a serem adotadas com escala de prioridade; (b) metas, prazos e mecanismos de aferição de resultados; (c) planejamento anual com cronograma de execução; e (d) avaliação das medidas com periodicidade mínima semestral.
Com esse enquadramento jurídico e administrativo, na implantação desta política pública, providências importantes já foram tomadas. No Portal Emprega Brasil, a aba para o preenchimento do Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios já está disponível para empresas com mais de 100 empregados(as).[xii] Esta primeira fase da implantação, anterior à abrangência de todas as pessoas jurídicas de direito privado empregadoras fornecerá informações não apenas apara a fiscalização de práticas discriminatórias, quanto para a criação de um sistema de dados a partir do qual se possa produzir conhecimento e construir estratégias para a mitigação da desigualdade entre homens e mulheres.
Buscando ilustrar o atual estágio da política pública de igualdade salarial entre mulheres e homens, podemos apresentar o seguinte fluxo:
O fluxo descrito anteriormente explicita o sentido e a direção da política pública formulada para a consecução da igualdade entre mulheres e homens do ponto de vista remuneratório no mundo do trabalho. Há outros pontos que permeiam o acerto da política que merecem ser notados: (1) a política pública de mitigação da desigualdade salarial tem um acerto já em seu nome. Ao escolher o termo mitigação, ao invés de promoção, está implícita a constatação de que não somente a equidade salarial é desejável, como também a desigualdade entre mulheres e homens, desempenhando e exercendo as mesmas funções, é um problema público a ser solucionado.
(2) Tal política leva a sério a regra constitucional sem, contudo, presumir que a sua existência já é suficiente para a resolução de um problema social. A política pública parte de uma pergunta acertada para a realidade: uma vez que já direcionamos nossa vida republicana para a observância da regra da igualdade entre mulheres e homens, por que ela não se realiza?
(3) A pergunta acima pode ser inferida a partir da seguinte descrição contextual existente na Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 1085/2023, que deu origem à Lei aprovada: “a proposta em questão dá continuidade ao processo de reconstrução e transformação do Brasil. A proposta tem o objetivo de atingir a igualdade de direitos no mundo do trabalho, preparando o País para a assunção de compromissos cada vez mais evidentes com o desenvolvimento social e o crescimento econômico, com a ampliação da igualdade entre mulheres e homens e com o combate à pobreza, ao racismo, à opressão sobre as mulheres, bem como à todas as formas de discriminação social que se refletem em desigualdades históricas”.[xiii]
(4) A partir da observação existente Exposição de Motivos do Projeto de Lei, descrita no item anterior, pode-se afirmar que, na elaboração da política, foi reconhecida a complexidade do problema público a ser resolvido, evidenciada em dados internacionais, nacionais e nos estudos especializados. A partir disso, a política pública abre a possibilidade de seu monitoramento tendo em vista a obtenção de insumos para a melhor especificação da orientação de condutas.
(5) A política pública tem como um de seus resultados a produção de dados que possibilitem políticas públicas mais específicas e precisas, para a solução de problemas públicos ainda mais complexos.
Diante dos acertos explícitos e implícitos da política pública de mitigação da desigualdade entre mulheres e homens, resta apontar possíveis caminhos a serem tomados a partir de sua implantação.
O primeiro é a formação de um sistema de dados que permita consolidar não apenas informações quantitativas sobre salários, como também permitam identificar práticas institucionais que têm impacto para além de indivíduos. Será interessante se a política adensar algo que é sugerido pela Lei: a construção coletiva de um ambiente propício para a mitigação da desigualdade de gênero e racial e a construção de um ambiente equitativo.
Em segundo lugar, é necessário apontar que, no desenho jurídico da política, não foi indicado o papel que as empresas – pessoas jurídicas de direito privado – cujo controle acionário é estatal podem exercer como pioneiras em práticas equitativas. Seria profícuo que as empresas com controle estatal não apenas avançassem no cumprimento da Lei, como também indicassem que práticas podem ser adotadas pelas demais empresas. Tais práticas podem reforçar o papel do Estado como agente de monitoramento, e não apenas de fiscalização.
Em terceiro, destaca-se que, além do papel evidente do Estado como fiscalizador e promotor da equidade, é importante que as entidades sindicais assumam o papel de contribuir para a construção de ambientes de trabalho mais equânimes, para além dos direitos individuais antidiscriminação. Aos demais atores sociais, cabe o exercício do papel de observação constante e crítica das mudanças que podem vir a ocorrer, a partir da publicação dos primeiros Relatórios de Igualdade Salarial e de Critérios de Remuneração, no próximo dia 8 de março.[xiv]
Deste processo, inicialmente experimental, podem emergir tanto os critérios para a atribuição justa de remuneração pelo trabalho, quanto a constatação de que tal justiça não é possível e que necessitamos, portanto, de outro sistema de valores socais, que resultem, inclusive, em uma outra noção de justiça. Para chegar a qualquer uma dessas etapas, precisamos resolver o problema público anterior, que é a desigualdade injusta de remuneração entre homens e mulheres. A resolução de problemas públicos não leva apenas ao aprimoramento de políticas públicas, como também ao refinamento de concepções de justiça aceitas e convencionadas socialmente.
Por fim, é necessário ter consciência daquilo que na Lei é insuficiente, como brevemente apontado nas críticas iniciais apresentadas neste texto, e reconhecer que é difícil a tarefa de qualificar atividades complexas desempenhadas por trabalhadores responsáveis como equivalentes e merecedoras da mesma remuneração.
O conhecimento a respeito de quais são as práticas e as atribuições de valor remuneratório a diferentes tarefas poderá ser de grande valia não apenas na busca da equidade de gênero, como também no conhecimento do sistema de valores e recompensas em vigência reiterada no mundo do trabalho em território brasileiro. A partir de tal conhecimento, podemos refinar a concepção de justiça que queremos realizar.
Notas
[i] Para acesso ao relatório completo, ver https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2023.pdf. Para verificar a estimativa do alcance da equidade, em anos, ver página 6 do Relatório.[ii] Ver página 11 do Relatório.
Antes a esquerda articulava visões radicais de futuro. Hoje, tenta restaurar a segurança do passado frente a precarização.
Steve Fraser
Fonte: Jacobin Brasil
Data original da publicação: 07/03/2024
Judy Wraight, uma trabalhadora veterana de trinta anos na indústria automobilística que trabalhou na fábrica River Rouge da Ford como membro do Local 600 do United Auto Workers (UAW), estava participando das linhas de piquete no outono de 2023. Em um relato da PBS Newshour em 21 de setembro, ela explicou por quê. “Tudo o que o UAW está pedindo é literalmente o que tínhamos antes”.
De volta para o futuro
“Looking Backward” foi um romance utópico mais vendido publicado em 1888, no auge da Era Dourada da América. Seu autor, Edward Bellamy, descreveu uma sociedade ideal um século no futuro (mais ou menos quando estamos vivendo agora) que olhava para trás naquela Era Dourada passada como um período bárbaro. Movimentos sociais e políticos de hoje, como são, em vez disso, olham para outros períodos, épocas mais antigas, e desejam estar de volta lá novamente, para recuperar o que foi perdido. A vida era melhor naquela época, ou assim presume-se. Em alguns aspectos, isso é transparentemente verdadeiro, como Judy Wraight seria a primeira a testemunhar.
Verdadeiro ou não, essa cultura política de restauração reconhece tacitamente que o futuro, da maneira como essa palavra tem sido costumeiramente usada, está morto. Ou se ele vive, é mantido vivo por aparelhos de suporte à vida.
Na esquerda, ele é mantido mal respirando por encantamentos à revolução que têm muito pouco a ver com os objetivos imediatos e até de longo prazo desses mesmos movimentos. A direita é mais direta. Desses setores, não há dúvida de que estão falando “de volta para o futuro”. Em ambos os casos, a história se torna ideologia, invocada para glorificar um passado e, assim, legitimar uma tentativa de transplantar esse passado para o presente.
O mundo MAGA anseia por voltar — muito, muito atrás. Imagina um tempo não contaminado pelas inversões culturais dos anos 60, um tempo em que o New Deal nunca foi realizado, para alguns, até mesmo um tempo em que a Guerra Civil e a Reconstrução foram caminhos não percorridos. Isso fica claro em suas fobias raciais e étnicas, sua ortodoxia sexual, sua sensibilidade patriarcal e bravata patriótica, sua piedade evangélica e sua aversão à interferência do governo.
Os adeptos do MAGA são ressentidos, e por muitas boas razões; eles são os milhões passados por cima, ignorados, desdenhados da ordem pós-industrial, vivendo nas ruínas. Seu sentido de futuro está azedo na bile de seu ressentimento. Esse futuro no passado é uma previsão tênue, uma reencarnação de um passado que nunca foi exatamente.
Ainda assim, ele agarra. Uma pesquisa recente com republicanos, relatada pelo Washington Post em 6 de julho, descobriu que 70% deles acreditavam que a vida piorou desde a década de 1950. Talvez a ordem familiar de antigamente não fosse exatamente sem atritos, mas em suas mentes, pelo menos, era ordenada, ao contrário da desordem e disfunção entrópica de hoje. Deus emprestava consolo e certeza moral, mesmo que Seu regime pudesse ser exigente, Sua misericórdia inefável justamente fora de alcance. Agora Deus é um refugiado social, exilado do mainstream.
Na época, a América musculosa emprestava sua vitalidade ao homem comum, portador de uma cultura de vitória vicária que oferecia recompensas psíquicas significativas. Qualquer semelhança de vitória hoje em dia desapareceu no abismo da “guerra ao terror”, uma guerra sem fim, com heroicidades infladas, frustrantemente elusiva quando se trata de inimigos e propósitos, enfraquecedora em vez de exaltante.
Antes de sustentar os alicerces da velha ordem, as discriminações raciais e étnicas funcionavam como uma espécie de rede de segurança social para aqueles que viviam apenas acima das submersas classes inferiores. Mas hoje, as classes trabalhadoras cercadas da natividade e raça favorecidas proferem a linguagem da consciência de casta para lembrar um privilégio do passado que sempre sobreviveu em rações curtas.
Portanto, a restauração atinge exatamente a nota certa na direita, não importa quão limitada e fantasiosa seja sua visão do passado. “Restaurar” tem sido um verbo favorito utilizado por políticos de direita há anos. Glenn Beck reuniu manifestantes no National Mall em 2010 para “Restaurar a Honra”; o super PAC de Mitt Romney em 2012 prometeu “Restaurar Nosso Futuro”; o livro de Mike Huckabee para sua campanha de 2012 foi subintitulado Restaurando a Grandeza da América.
Esperamos isso. Conservadores conservam. No entanto, nem sempre foi assim.
Pegue o fascismo. O medo do fascismo assombra a vida política contemporânea. O fascismo é visto como o desfecho da reação de direita. Se o MAGA está indo por esse caminho é uma questão em aberto. Do ponto de vista histórico, não é de forma alguma óbvio que o MAGAismo seja a antessala de um fascismo ao estilo americano. Sua afinidade é inegável. Mas as circunstâncias de seu surgimento diferem fundamentalmente. Enquanto a restauração é a raison d’être do MAGA, a situação com o fascismo era mais ambígua.
Onde surgiu no passado, o fascismo enfrentou e buscou vencer um movimento operário revolucionário de tamanho e peso político consideráveis. (De fato, elementos do movimento fascista surgiram de ou foram posteriormente recrutados nas fileiras de partidos socialistas e comunistas de massa.) Nenhum movimento de esquerda operário de influência substancial existe hoje, pelo menos não nos Estados Unidos.
Reacionários que eram de muitas maneiras, os movimentos fascistas também evocaram uma visão premente de um futuro transformado, até mesmo modernista. Sem dúvida, os espetáculos do fascismo italiano incluíam uma invocação pesada da antiga Roma (a saudação Mussolini, o nome do movimento lembrando os “fasces” ou feixes de varas circundando um machado carregado como símbolo de poder pelos funcionários romanos), sua grandeza imperial e heroísmo marcial. Mas desde o início, o movimento compartilhou uma infatuação com a velocidade, a interrupção, a inovação tecnológica e outras características fundamentais do modernismo celebrado pelos futuristas italianos.
Nesses círculos, a história era apenas uma matéria morta; todos os olhos estavam voltados para a nova era. De fato, Filippo Marinetti, fundador do Futurismo e seu Partido Político Futurista, logo foi absorvido pelo de Mussolini. Aqui é apropriada a noção de George Bataille de que, do ponto de vista psicológico, o fascismo era menos sobre ressurreição do que sobre invocar uma unidade social utópica futurista. Nesta terra do nunca, um “Novo Homem” nasceria — ao contrário do mundo do MAGA, uma mitologia ressuscitada dos dias de Horatio Alger.
Além disso, o fascismo, tanto na Itália quanto na Alemanha, envolveu a estetização da política, o que, pelo menos até agora, não define o núcleo existencial do mundo MAGA. A política como espetáculo dificilmente foi inventada pelo fascismo. E é verdade que o MAGA incorpora alguma dessa invocação dramática sem tração política substantiva. Mas sua imaginação é circunscrita pela execução de um passado histórico bastante específico, ou melhor, uma memória inventada desse passado; as reuniões em massa do MAGA podem ser confundidas com comícios de futebol; não assim os comícios de Nurembergue dos anos 1930.
Na Alemanha, o partido e regime nazista luxuriavam na mitologia teutônica e prometiam restaurar uma sociedade pastoril que nunca existiu, destruída pela ordem moderna, industrial e urbana. No entanto, na vida real, os nazistas construíram as autobahns, não aldeias tribais. O tecno-futurismo fazia parte de uma gestalt nazista que os historiadores chamaram de “modernismo reacionário”. E mesmo a parte “reacionária” dessa fórmula pode colocar facilmente em segundo plano o grau de perspectiva orientada para o futuro dos nazistas.
O Instituto Alemão para a Ciência do Trabalho era uma vasta agência de planejamento que imaginava um “Relatório Beveridge” para um estado de bem-estar pós-guerra. Apesar de sua antipatia pela burocracia, racionalização, taylorismo, etc., a engenharia social do futuro fazia parte do espírito nazista. Apesar de suas proclividades culturais antiurbanas e antiindustriais, o regime construiu cidades e fábricas, planejando-as para incluir recursos socialmente progressistas, como moradia acessível, medicina preventiva, seguridade social abrangente, igualdade salarial para trabalho igual e até a eliminação da distinção hierárquica entre trabalhadores manuais e de colarinho branco.
Por mais que se fale e aja de forma letal inspirada pela obsessão racial nazista com o Volk organicamente “puro”, na prática, o regime demonstrou uma preocupação duradoura com a função e integração racional. O coletivismo, algo profundamente alienígena ao espírito do mundo MAGA, focado como está na restauração do individualismo do passado, na Alemanha, combinou o arcaico e o moderno para incubar o “Novo Homem”.
Enaltecer a violência, inventar histórias míticas de origens, primitivismo racial, imaginar fantasias pastorais do passado eram, é claro, parte do repertório e estética política nazista. No entanto, o ponto aqui é que o fascismo surgiu quando o futuro ainda cativava a imaginação das insurgências políticas e sociais onde quer que surgissem. Por outro lado, o MAGA faz parte de uma sensibilidade política mais ampla que é essencialmente restauradora. É lá que o futuro morre.
A esquerda do presente
Os movimentos sociais recentes da esquerda exibem o mesmo instinto. Black Lives Matter, organizações de povos indígenas e aqueles que buscam justiça e igualdade de gênero e sexual olham para um futuro melhor. No entanto, esse futuro, onde os direitos de todos são respeitados e protegidos, está enraizado no passado. Seria considerado um grande feito se essa longa luta para cumprir uma promessa feita há muito tempo finalmente se concretizasse; ainda mais hoje, quando os direitos considerados assegurados meio século atrás estão em perigo, parte do retrocesso social agora característico da sociedade americana em geral.
A vitória nessa luta seria encorajadora e está longe de ser uma conclusão óbvia. No entanto, não constituiria uma transformação revolucionária da sociedade americana, baseada como é em promessas tradicionais do passado. As instituições econômicas e culturais predominantes, bem como as principais instituições políticas, estão “acordadas”, apoiando precisamente os avanços na igualdade racial, étnica e de gênero que antes ou se opunham ou retardavam. Isso é indicativo. A revolução não está em pauta. Pelo contrário: para as elites liberais, ser “acordado” proporciona um certo brilho à política de seu futuro. Como Georg Lukács observou uma vez, “o poder de luta de uma classe cresce com sua capacidade de cumprir sua própria missão com uma boa consciência”. Segundo um comentarista, o que agora é chamado de “responsabilidade social corporativa” é “fundamental para o utopismo neoliberal”.
Se a esquerda tradicionalmente tratava o capitalismo como inimigo, o capitalismo como estilo de vida não está sendo contestado neste caso. Pode ser um exagero retratar esses movimentos como restauradores – exceto na medida em que certas pessoas não podem mais contar com o direito de voto, ou se tornar cidadãs, ou serem protegidas contra formas anteriormente ilegais de exploração, ou obter tratamento médico ao qual tinham direito. Restaurador ou não, liderados por organizações declaradamente de esquerda ou por aqueles que se contentam em se considerar liberais sociais, são lutas para fazer o presente se conformar a um passado idealizado. Ninguém aqui está contemplando criar o “Novo Homem”. No entanto, tal mentalidade voltada para o futuro costumava definir a esquerda.
Presumivelmente, ainda faz para um socialismo americano recém-revivificado. O mundo evocado por Bernie Sanders, com uma grande assistência da Grande Recessão e Occupy Wall Street, é, por definição, anticapitalista. E, novamente, por direito de nascimento, ele olha para um futuro após o capitalismo, que não morrerá por conta própria, mas graças aos esforços revolucionários do movimento socialista. No entanto, na prática, seus olhos estão voltados para o passado. Como Judy Wraight, ele quer recuperar o que foi perdido nos últimos quarenta anos.
Bernie Sanders e a Democratic Socialists of America (DSA) – sem mencionar uma série de outros movimentos, revistas, think tanks liberais e políticos (muitos no Partido Democrata) – passam a maior parte do tempo tramando e agitando para trazer de volta o New Deal. Essa é a sua posição padrão. Sanders, assim como Alexandria Ocasio-Cortez, descrevem seus objetivos como um “New Deal atualizado”. Durante sua primeira campanha presidencial, o senador de Vermont definiu seu “socialismo” como equivalente ao que Franklin D. Roosevelt chamou de “uma declaração de direitos econômicos”. Hoje, o New Deal constitui o horizonte distante de suas esperanças políticas, independentemente de carregarem ou não credenciais socialistas.
No auge do New Deal, a renda e a riqueza eram distribuídas de forma muito mais equitativa do que hoje. O governo regulava os negócios; os direitos dos trabalhadores de se organizar eram respeitados; as pessoas que trabalhavam eram mantidas em alta estima cultural e exerciam uma influência política real; empregar crianças era um crime; a rede de segurança social foi inventada; empregos e vida após o trabalho eram seguros, ou pelo menos pareciam ser em comparação com os McJobs precários e pensões reduzidas de hoje. Em retrospectiva, vista da perspectiva tediosa dos dias de hoje, pode parecer idílico, como algo que vale a pena tentar restaurar.
Mesmo em sua aventura mais programática, o New Deal circunscreve a imaginação. O idealismo do New Deal não é isento de críticas. Muitos apontam suas deficiências. Fez as pazes com a segregação racial. Alguns argumentam que suas reformas sociais foram concebidas e executadas deliberadamente para excluir os afro-americanos. As mulheres eram tratadas como cidadãs de segunda classe. O estado de bem-estar institucionalizou o patriarcado. Suas disposições salariais mínimas eram tão insignificantes que sobreviver com elas era quase impossível. A habitação e a saúde pública eram apoiadas apenas fracamente. O status probatório das grandes empresas cessou rapidamente.
Tudo verdade, mas a implicação é que, se essas falhas tivessem sido corrigidas, a ordem do New Deal mereceria a devoção que agora comanda nos círculos liberais e de esquerda. É fácil simpatizar com essa visão dada a situação lamentável em que nos encontramos hoje. Para os liberais, isso é especialmente verdade. Historicamente, a persuasão liberal baseia sua causa em um capitalismo socialmente consciente, que é o que o New Deal era. E ela recua quando a consciência do que, no século XIX, era amplamente chamado de “questão social” ou “questão trabalhista” começa a interrogar as relações de propriedade do próprio capitalismo e a questionar em voz alta o que poderia substituí-las.
Em momentos de perigo como esse, como Walter Benjamin refletiu em suas “Teses sobre a Filosofia da História“, “cada época deve se esforçar novamente” para manter viva a centelha da esperança, para tirá-la “de um conformismo prestes a dominá-la”. Caso contrário, o movimento revolucionário corre o risco de “se tornar uma ferramenta das classes dominantes”.
Normalmente, é aí que o movimento socialista retoma a conversa sobre a vida após o capitalismo. Abstractamente, ele faz isso hoje, ou pelo menos a DSA faz. No entanto, mesmo em sua aventura mais programática, o New Deal circunscreve a imaginação.
Pegue o Green New Deal. A mudança climática não era uma questão nos dias de Roosevelt. Portanto, o Green New Deal é novo nesse sentido. No entanto, seus meios essenciais não são e estão totalmente à vontade na casa do New Deal. Empregos são criados por investimentos privados subsidiados pelo governo em energias renováveis e outras formas de mitigar as mudanças climáticas. Os empregos são destinados a ser bem remunerados e qualificados e vêm acompanhados de alguma retórica vaga sobre o direito de se organizar em sindicatos (embora seja um sinal de quão longe as coisas regrediram que a retórica é vaga e ineficaz, e que a maior parte dos novos investimentos está acontecendo, propositadamente, em locais não sindicalizados).
Um Green New Deal é melhor que nenhum acordo. Mas também pressupõe a acumulação ilimitada de capital em um futuro fundamentalmente semelhante ao que existia antes. E, como observou Rosa Luxemburgo, “se a acumulação ilimitada de capital puder ser assumida, então a viabilidade ilimitada do capitalismo deve seguir”. (Aqueles que afirmam que a mudança climática é uma barreira que o capitalismo é inerentemente incapaz de superar estão, acredito, errados. Refutações aparecem diariamente, incluindo o fato surpreendente de que o Texas produz mais energia renovável do que qualquer estado da união, e não por meio de empreendimentos públicos.)
Se a escolha é entre a extinção das espécies ou o capitalismo, então não há escolha. Mas a mente restauradora encerra a questão antes que seja feita.
No entanto, o fechamento de tais possibilidades é uma condição necessária para alianças entre o mundo liberal e socialistas (mais amplamente definidos para incluir os progressistas dispostos a enfrentar o capitalismo). Forjar uma linguagem comum é essencial. Isso já foi feito antes. Com isso em mente, a esquerda socialista contemporânea se baseia no passado, especialmente no universo metafórico do New Deal.
Bernie Sanders e o movimento que o apoiou como um todo acusam incansavelmente os senhores do sistema por sua ganância. Esta é uma censura moral que desfruta de grande tração política. O Occupy Wall Street forneceu o jargão com sua aritmética social de 1% e 99%. E ecoa a condenação de Roosevelt aos “realistas econômicos”, “trocadores de dinheiro” e saqueadores de “o dinheiro dos outros”. De fato, sua ascendência remonta muito mais longe. Referindo-se à pequena fração da população francesa autorizada a votar sob a monarquia de julho em virtude de suas propriedades, um radical francês na véspera da Revolução de 1848 alertou seus inimigos de classe: “Dormi, senadores dos 3%! Dormi em suas caixas de dinheiro; não vai demorar muito até que vocês sejam despertados novamente!”
A ganância existia muito antes de o capitalismo fazer sua aparição. Pode ofender a todos, desde clérigos até comunistas. No entanto, não é uma acusação sistêmica ao capitalismo.
O capital, como Marx apontou, é uma categoria social, enquanto os capitalistas são, como proprietários, privados e indiferentes às implicações sociais de seu comportamento. Eles podem ser glutões ou abstêmios; em qualquer caso, o capital pode viver e crescer. A linguagem da ganância lubrifica uma relação política entre aqueles supostamente opostos ao sistema e aqueles que não têm inclinação; é uma linguagem de restauração.
Historicamente, no entanto, a esquerda sempre tratou de criar novos mundos. Em vez de restaurar o passado, ela abordava a história como uma plataforma para inspirar o futuro. Criticar o New Deal por suas imperfeições, mesmo as mais condenáveis, é categoricamente diferente de lidar com suas conquistas aclamadas.
Afinal, o que fez a era ser uma era dourada – sua linha de montagem sindicalizada, sua seguridade social, seu padrão de vida decente – teve um preço alto: a monotonia esmagadora desse mesmo local de trabalho sindicalizado; trabalho vigiado, disciplinado e alienante; inibição política; auto-repressão social e sexual generalizada; a jaula de ferro da burocracia (a “noite polar de escuridão gélida” de Weber); a condescendência tutelar do aparato de bem-estar social; a dominação imperial disfarçada de democracia; um apetite insaciável por fantasias de consumo das quais o coração ficava cada vez mais doente; e uma decomposição enervante do organismo social e sua substituição por um individualismo narcisista e anômico. O New Deal foi um tratado de paz que, como muitos desses acordos, deixou as causas subjacentes da guerra sem solução.
Se o New Deal nasceu, em parte, de desejos revolucionários, ressuscitar seu cadáver não reacenderá essas aspirações. Apenas uma antecipação vibrante de uma maneira totalmente nova de vida, uma renovação do futuro, pode fazer isso. Mas o futuro está morto. Como isso aconteceu?
A Vida e a Morte do Futuro
Investir esperança no futuro não era uma preocupação exclusiva dos revolucionários da classe trabalhadora. O próprio capital também está igualmente preocupado, embora apenas no sentido mais abstrato. O retorno do investimento é o futurismo do capitalismo, uma busca incansável que leva o processo de acumulação sempre adiante em direção a um futuro sem características distintivas.
As questões são infinitamente mais concretas do ponto de vista da burguesia em si. O futuro inspirou todas as revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX. Liberdade e Progresso definiam o novo mundo que buscavam criar. A liberdade de pensamento, de expressão, de assembleia cívica, de engajamento político, de comércio, de trabalho, de religião, aconteceriam no futuro quando o ancien régime que proibia tudo isso fosse eliminado.
Graças à revolução, a humanidade desfrutaria de um futuro de Progresso ilimitado. Isso incluiria, mas não se limitaria, ao avanço técnico, econômico e científico. A revolução seria a parteira de um futuro de iluminação em constante desdobramento, sem ponto final, uma espécie de revolução permanente da mente e do espírito.
As revoluções originam-se e perpetuam justamente esse tipo de êxtase intelectual e emocional. O mundo é virado de cabeça para baixo e um futuro transformado se apresenta. Isso era verdade nas convulsões liberais do passado, mesmo que derivassem sua energia motriz das revoltas das classes subalternas, o que quase invariavelmente faziam. Heinrich Heine, por exemplo, capturou o espírito universalista na preparação para os movimentos revolucionários das décadas de 1830 e 40: “Qual é a tarefa do nosso tempo? É a emancipação. Não apenas a emancipação dos irlandeses, dos gregos, dos judeus de Frankfurt, dos índios ocidentais, dos negros, dos povos oprimidos desse tipo, mas sim a emancipação de todo o mundo e especialmente da Europa.”
De repente, a política como a arte do possível foi suspensa. Tudo parecia possível. Mesmo aqueles que se opunham ou ficavam à parte dos tumultuados acontecimentos nas ruas – pessoas como Gustave Flaubert e Alexis de Tocqueville – reconheciam a exaltação de “homens possuídos de eloquência frenética, do magnetismo da multidão entusiástica”. Flaubert continuou: “Os ódios estavam ocultos, as esperanças eram exibidas, a multidão está cheia de suavidade.” Tocqueville (membro da Assembleia da Segunda República), irritado contra seus instintos e crenças arraigados, viu a Revolução de 1848 como libertadora: “aqui está a salvação do país”.
Também verdadeiro na França em 1789, onde o insurrecionista Martin Bernard observou em suas memórias na prisão: “Ai daqueles que tentarem bloquear a carruagem do Progresso! Eles serão quebrados sob suas rodas.” E novamente em 1848, e novamente durante a Comuna de Paris de 1871. Mas, nessa época, a celebração do inimaginável tinha passado para as camadas inferiores. Henri Lefebvre observou: “Foi antes de tudo um festival imenso, grandioso… dos deserdados e dos proletários, um festival revolucionário e festival da Revolução.” A Comuna foi “uma abertura ilimitada em direção ao possível.”
O fato de que as classes médias também tinham medo de aonde essas revoltas plebeias poderiam levar e estavam preparadas para esmagá-las (elas iriam “até aqui e não mais além”) não altera o fato de que a burguesia era arquiteta do futuro, moldadora de um Novo Homem, à sua maneira. Afinal, uma abertura ao novo, ao inovador, compunha o DNA dos revolucionários burgueses. O vórtice do futuro os cativava de maneiras que não capturava suas vítimas.
No entanto, vale ressaltar que, se no início as reformas liberais tendiam a ceder lugar a medidas mais radicais, ou a um grande temor sobre onde essas medidas poderiam levar, em nossos tempos, o radicalismo tem sido mais apto a ceder à grande sonolência do liberalismo. Essa mudança gradual no centro de gravidade entre os instintos burgueses e plebeus é uma forma de compreender o fechamento do futuro. O liberalismo nascente da longa era da revolução, engajado com o futuro, dependia das energias irradiadoras que emitia; O neoliberalismo de hoje, mesmo o seu mais vanguardista social, está correndo vazio.
O sagrado secular
O pensamento utópico e os sonhos permeavam a atmosfera antes e durante esta longa era de futurismo revolucionário. Charles Fourier e Henri de Saint-Simon deixaram sua marca não apenas na França, mas em toda a Europa e no Novo Mundo também. Além disso, muito tempo depois que as comunidades inspiradas por Fourier já haviam cumprido seu curso na América pré-guerra civil, experimentos análogos e uma vasta literatura utópica acompanharam as grandes agitações da classe trabalhadora e agrária da Era Dourada. Mesmo Eugene Debs pertenceu a um novo assentamento cooperativo antes de se mudar para ajudar a estabelecer o Partido Socialista. Longe na Rússia, os camponeses evocavam suas próprias utopias, lugares mágicos, cidades subaquáticas e reinos subterrâneos, que em breve se fundiram com os levantes terrenos dos despossuídos e empobrecidos.
De fato, o próprio significado de utopia como conceito mudou. Antes, digamos, no tempo de Thomas More, significava um lugar impossível (uma ilha fictícia em Utopia de More ou “nenhum lugar”), imaginado no presente, vagamente se assemelhando a um mosteiro perfeito. Após a Revolução Francesa, a utopia apontava para um lugar possível, mas que seria em algum momento no futuro.
O sentimento religioso também foi infectado pela febre revolucionária. Sem contar a vida após a morte, o cristianismo não tinha um lugar para um futuro aqui na Terra diferente do que sempre foi – apenas uma reciclagem perpétua até chegar o momento além do tempo. São Agostinho, por exemplo, condenou a astrologia como um pecado por se atrever a prever o futuro, um dom estritamente reservado ao Divino. Uma razão pela qual a religião oficial (tanto católica quanto protestante) censurava a especulação financeira (e o jogo em geral) era por sua arrogância em mexer com o futuro.
Homens e mulheres da esquerda na Europa, nos Estados Unidos e em todo o mundo apropriaram-se de sentimentos que outrora pertenciam à autoridade eclesiástica e os utilizaram em prol da emergente nova sociedade. O revolucionário francês Louis Blanc anunciou que “a tarefa de nossa época é trazer de volta o fervor ao sentimento religioso, combater a insolência do ceticismo”. Socialistas judeus na América e em outros lugares comparavam a revolução à vinda do Messias: uma salvação terrena. Outras comunidades imigrantes faziam o mesmo. Até mesmo os Trabalhadores Industriais do Mundo (IWW), irreverentes e anticlericais em sua essência, inspiravam as fileiras ao lembrar do “carpinteiro vagabundo de Nazaré”, cujo sonho “vestido com a roupa original do comunismo e da fraternidade continua soando intermitentemente através das eras”.
Ressonando nessas invocações religiosas estava uma lembrança da história que parece se assemelhar aos ritos realizados pelos movimentos restauracionistas da direita e da esquerda na atualidade. O que eles buscam é ressuscitação. Mas essa aparente semelhança é uma percepção equivocada. A consciência histórica entre as classes revolucionárias – burguesa, artesã, proletária, camponesa – informava e inspirava visões de futura transformação social até o século XX. Eles estavam olhando para trás para saltar para frente.
Já na Guerra dos Camponeses Alemães de 1525, o desafio à autoridade estabelecida (tanto feudal quanto eclesiástica) enunciado nos “Doze Artigos” dos camponeses suábios imaginava uma “nova ordem mundial” radicalmente democrática. A história, tanto quanto a teologia, era sua justificação; Jesus havia redimido tanto o pastor quanto o nobre, então era “lamentável” que “fôssemos tratados como servos”. Desde então, lembrar do passado, seja expresso em linguagem religiosa ou em termos puramente seculares, proporcionou um ponto de referência e um trampolim para remodelar o presente.
Os abolicionistas, por exemplo, baseavam seu caso para a emancipação, em parte, em uma Declaração de Independência que nunca deveria sugerir tal futuro. Ex-escravos ajudaram a dar à luz uma república agrária no sul reconstruído – uma vitória revolucionária, embora breve, sobre o capitalismo – sustentada pela mesma tradição emancipatória e igualitária. Populistas americanos invocavam repetidamente memórias da Revolução, da mesma Declaração de Independência e dos escritos de Tom Paine – não para recriar esse passado, mas para mobilizar a luta por uma nova república cooperativa.
Seus irmãos da classe trabalhadora nos Cavaleiros do Trabalho faziam o mesmo. Assim também fez o Partido Socialista de Eugene Debs, que recorreu à herança democrática do país para acender a luta por uma futura democracia socialista. O movimento pelos direitos civis do meio do século XX contava com um cristianismo negro impregnado de previsões de liberação, míticas e reais. Mesmo os círculos liberais que ajudaram a engenhar as reformas da era progressista e do New Deal conceberam genuinamente seu trabalho como inovação com base no precedente histórico sob circunstâncias sem precedentes.
Todo 1º de maio celebra os anarquistas de Haymarket. Memórias de Emiliano Zapata ou Augusto César Sandino ou Forabundo Martí energizam seus descendentes revolucionários. O calor emanado de uma explosão social pode alquimizar a tradição histórica, transformando o que um dia foi a base do ancien régime em seu executor, abrindo caminho através do muro que separa o presente de sua alternativa.
Quando os soldados do czar russo massacraram 1.500 manifestantes no gelo do rio Neva no “Domingo Sangrento” de 1905, o padre Georgy Gapon, o “paizinho” que os levou a implorar ao czar que poupasse o povo de seus “exploradores capitalistas”, ficou horrorizado: “Não temos czar”, foi sua conclusão portentosa. Embora Walter Benjamin tenha sido o mais severo crítico do Deus do Progresso, ele se esforçou para reconhecer que “não pode haver luta pelo futuro sem uma memória do passado”.
A história, então, pode se tornar uma ativista. Como? Todas as lembranças de explorações e opressões passadas, cofres cheios de insultos, aviltamentos e rasuras se abrem para campos de raiva e indignação – uma sede de vingança, é certo, mas também desejos de redenção e libertação. Benjamin inverte a lógica convencional; Revoluções “são alimentadas pelas imagens de antepassados escravizados e não pelas de netos libertos”.
Uma escatologia revolucionária permanece terrestre na medida em que seu anticapitalismo se baseia em histórias, em parte míticas, em parte reais, que antecederam o capitalismo. Isso pode ser traduzido como uma memória inventada do comunismo primitivo, como indiscutivelmente Marx postula quando olha para o futuro. Lá, na pré-história, ele encontra uma vida anterior antiautoritária e não hierárquica.
Se não esse tipo de passado pré-histórico, então os pré-capitalistas também serviram à causa. Isso foi verdade para vários movimentos da classe trabalhadora de base artesanal: para os Cavaleiros do Trabalho e para o Partido Populista e o IWW nos Estados Unidos, para as insurreições camponesas na América Latina e na Europa, muitas vezes impregnadas de teologia liberacionista. Durante todo o século XIX, levantes revolucionários foram acompanhados de demandas para restaurar os direitos consuetudinários de tempos anteriores.
Como observa um historiador, sempre que os sistemas tradicionais feudais de uso da terra foram substituídos por “formas mais homogêneas de propriedade e exploração comercial, as comunidades responderam com protestos, ações judiciais, ocupações ilegais e ataques a funcionários executores”. O mesmo aconteceu em vilas e cidades onde, por exemplo, as greves de tecelões em Lyon e na Silésia nas décadas de 1830 e 40 tiraram sua energia de experiências históricas de vida “pré-moderna”, a vida antes do ethos racionalista-utilitarista da era moderna degradou o trabalho e fez máquinas de homens. Estavam em jogo “liberdades antigas”. Nesses casos, entre muitos outros, o passado enriquece e é portador de esperanças utópicas.
Assim, o passado pode ser prólogo – não apenas para o presente, mas para um desfazer do presente. Leon Trotsky apreendeu a história, incluindo a história da revolução, como um “desenho de diferentes etapas da jornada (…) um amálgama do arcaico com formas mais contemporâneas.” No entanto, como sugere nossa situação contemporânea, a história pode, ao contrário, ser uma armadilha.
Marx, entre outros, fez esse ponto, observando em seu Décimo Oitavo Brumário de Luís Napoleão que a esquerda deve escapar do campo gravitacional do passado ou então corre o risco de se tornar sua imitação. Igualmente mortíferas, mais mortíferas de fato, as contrarrevoluções que convocam o passado para impedir um futuro indesejado podem liberar uma paisagem noturna de medos: xenofobia, misoginia, luxúria de sangue e bodes expiatórios raciais.
A relação é volátil. Isso é especialmente verdadeiro em um momento em que um senso de futuro está vivendo com rações curtas, pairando perto da morte, e sua visão tornou-se tão míope que o “futuro” é difícil de distinguir de onde vivemos agora.
O progresso e a morte do futuro
“Distópico” caracteriza muito do pensamento recente sobre o que está por vir. O futuro é sombrio. Catástrofes climáticas, pandemias, caos social e massacres prenunciam o fim. O grito de guerra do punk era “No Future”. Na virada do novo século, bandas populares cantaram “Planetary Burial“, “Pure Fucking Armageddon” e “Final Sickness“. Até o New York Times noticiou em outubro passado que os Estados Unidos pararam de “gastar com o futuro”. Esse é o destino do Antropoceno ou, como alguns chamariam, do “Capitaloceno”.
Isso é sentido como um destino porque um sentimento de impotência para impedir que tudo aconteça se aproxima. O progresso, durante séculos a fé secular do mundo moderno, perdeu seu poder de inspiração, foi esvaziado ou, pior, transformou o sonho no longo sono. O progresso está cometendo ou já cometeu suicídio.
Mas não é bem assim. Para alguns, as tecno-utopias mantêm viva a esperança. A tecnologia da informação, em geral, e a inteligência artificial (IA), em particular, renovam a promessa do Progresso. Ou será que sim? Erik Byrnjolfsson e Andrew McAfee em The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies nos pedem para contemplar um substituto robótico para o trabalho humano em que o robô “possa trabalhar o dia todo sem precisar de sono, almoço ou coffee breaks”. Melhor ainda, “não exigirá assistência médica de seu empregador ou aumentará a carga tributária sobre a folha de pagamento”. Um universo social sem atritos nos espera.
Indiscutivelmente, este é um caso clínico de declinação utópica que se aproxima perigosamente de uma espécie de distopia gerencial. Quando olhadas mais de perto, essas “digitopias” parecem mais sobre vigilância e controle, retratando um mundo de auto-repressão internalizada, camuflada como “likes”. E o mundo “olha ma, sem mãos” da IA, e da tecnologia da informação em geral, é subscrito pelo trabalho escravo em locais como as minas de cobalto do Congo. Não só isso, mas tal investimento em alta tecnologia pressupõe a automação de mão de obra qualificada e semiqualificada, degradada e barata e intensamente vigiada. Além disso, a premissa de que a nova tecnologia de máquinas eliminará a necessidade de trabalhadores é desmentida pelo crescimento das classes trabalhadoras globais em dois a três bilhões de pessoas nas últimas duas décadas.
As utopias sobre a libertação do trabalho – uma vida de lazer perpétuo como forma perversa de salvação – são ofuscadas por presságios. Filmes, teledramas, romances e graphic novels, para não falar das profecias fundamentadas nas ciências sociais, estão repletos de ansiedades sobre o trabalhador lobotomizado, vigiado, medicamente rearranjado, objeto de manipulação das elites. Simplificando, estes podem ser vistos como a descendência cultural dessa transição para o capitalismo cognitivo.
No entanto, o que a princípio prometia abrir um caminho para o empoderamento do trabalho, o trabalho cerebral, se transformou em seu oposto. Sob o reinado da propriedade privada e da acumulação de capital, o novo trabalhador do conhecimento precisava ser resubordinado e os domínios do conhecimento comum mercantilizados, privatizados e monopolizados, se possível. O admirável mundo novo do trabalhador do conhecimento é tão programado quanto qualquer coisa sonhada por Frederick Taylor. As declarações de independência, inscritas nas bandeiras dos tecnofuturistas, escondem uma forma atualizada de proletarização.
Além disso, esse futuro tecno tem seus colaboradores humanos trabalhando em departamentos de gestão de recursos humanos, que, nas palavras de um analista, são como “extraterrestres que planejam colher a humanidade”, aperfeiçoando sua ciência para detectar e eliminar as patologias de funcionários incapazes de se adaptar. A distopia é a realidade. Lá, o trabalhador é minerado e monitorado e corre o risco de perder o senso de si mesmo.
A corporação reabilitada surge como uma presença opaca, mas onisciente e proibitiva. Laqueado por fora com boa vontade desarmante, mestre de bloviações banais sobre auto-realização, seu lado sombrio distópico não serve para nada. Na medida em que essa última onda de Progresso idealizado, o capitalismo cognitivo, coloniza toda a vida, onde todos em todos os momentos (não apenas no trabalho) são produtores de informações capitalizadas, a distopia de hoje expande o alcance da proletarização para reinos infinitos e íntimos.
Tudo isso equivale a Progresso com uma vingança. Antes inspirador, agora esgotado, ou pior, o Progresso tornou-se uma ameaça: não tanto uma promessa de um futuro diferente, mas como o que já temos, só que mais.
Quem matou o futuro?
O futuro tem história. Nasceu há várias centenas de anos. Foi como o surgimento de um sexto sentido; que havia um tempo e um lugar em que o desconhecido se inventaria, onde a natureza revelaria todos os seus segredos, onde os poderes da humanidade esfoliariam sem fim, quando os antagonismos sociais desapareceriam, tornou-se parte da urdidura e do desgaste do que chamamos de modernidade.
É verdade que, mesmo em sua vida formativa, o futuro revelou seu lado sombrio: uma insinuação furtiva de que algo de valor poderia ser deixado para trás na esteira do Progresso. Para alguns, como Benjamin, o lado sombrio do Progresso era seu único lado. O capitalismo industrial havia transformado essa insinuação em uma realidade angustiante. Ainda assim, o futuro mostrou notável resistência, graças primeiro à destruição criativa da burguesia, com a tocha foi passada para o proletariado revolucionário.
Mas mesmo os mais sanguinários sabiam que o progresso dificilmente estava assegurado. Lênin, por exemplo, reconhecia que não havia situação da qual o capitalismo não pudesse escapar, encontrar uma solução. A crise pode levar a um novo capitalismo, ao socialismo ou a uma nova barbárie de destruição mútua. O próprio Marx cogitava a possibilidade: “A barbárie reaparece, mas criada no colo da própria civilização, e a ela pertencendo, daí a barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização”.
Quem são os portadores da tocha agora? Podem ser novamente as classes trabalhadoras?
Hoje, os missionários estão em silêncio. Este poderia ser o plano de um baby boomer envelhecido. Na verdade, a minha geração (ou melhor, aquele fragmento dela apanhado na turbulência dos anos 60) pode ter sido a última a acreditar no futuro. Nos termos mais básicos, eles eram herdeiros da reconfiguração do capitalismo pelo New Deal; 90% ganhariam mais do que seus pais (uma porcentagem que foi reduzida pela metade para as faixas etárias subsequentes, de acordo com Fintan O’Toole na New York Review of Books).
Então, o futuro acenou. No entanto, a Nova Esquerda e o universo cultural mais amplo em que foi alimentada não era de forma alguma revolucionária, ou mesmo socialista, em geral. Ainda assim, sentiu-se compelido a imaginar algum tipo de alternativa ao Estado burocrático-administrativo de bem-estar e guerra, ao seu apartheid interno e ao imperialismo no exterior. O liberalismo, e não apenas o liberalismo da Guerra Fria, era seu inimigo. O liberalismo não era apenas uma ideologia, mas um modo de vida cuja subestrutura era o capitalismo corporativo. (Quão claramente diferente do que as coisas são agora, quando grande parte da esquerda putativa passou anos defendendo o liberalismo, de várias formas, das investidas da direita).
O capitalismo venceu. Mesmo que se admita que os “boomers” iniciantes vislumbraram um novo caminho, ele era frágil, evanescente e muito enredado nas teias do individualismo competitivo e da cultura de consumo que sustentavam a ordem vigente. O capitalismo ajudou a inventar o futuro. Depois, matou-o.
O assassinato não aconteceu de uma só vez, nem por desígnio, no entanto; era administrado sem previsão e funcionava mais como um veneno de ação lenta. E se o capitalismo, em sua distinta forma neoliberal, foi o culpado, ele teve muitos cúmplices.
O que é comumente chamado de neoliberalismo poderia ser melhor caracterizado de um ponto de vista materialista como a era da desindustrialização e da desacumulação, como uma economia de bolha de ativos com pouco investimento produtivo. Indiscutivelmente, uma devolução econômica tão prolongada ditou uma política de retrocesso.
A desindustrialização não foi apenas destrutiva, mas desmoralizante. Modos de vida inteiros foram por água abaixo. Indústrias, sindicatos, cidades, igrejas, sociedades fraternas, comércios de rua, hospitais locais, escolas, centros comunitários, cinemas e dezenas de locais de encontro social, de restaurantes a pistas de boliche, morreram ou permaneceram como restos fantasmagóricos. A partir do final dos anos 1990, o que um livro chamou de “mortes de desespero” se tornou uma epidemia. Essas mortes por suicídios, ou suicídios por drogas e fígados saturados de álcool, ocorreram desproporcionalmente entre pessoas brancas de meia-idade, aquelas supostas beneficiárias do Progresso: principalmente a classe trabalhadora, sem educação superior, muitas vezes desempregada, com medo das novas tecnologias da era da informação, com mobilidade descendente, vinda de casamentos fracassados e famílias desfeitas e redes de apoio social cada vez menores.
As capacidades de resistência, especialmente o movimento operário, tornaram-se defensivas, estreitas e murchas. Ambos os partidos governistas fizeram sua parte para minar o movimento trabalhista, no caso dos republicanos, ou abandoná-lo em favor do mercado, no caso dos democratas.
Todas as outras instâncias de resistência também falharam. O que um autor descreveu como os “Setenta Subversivos“, citando revoltas locais da França e Itália à Turquia e Argentina, são pouco lembrados hoje. As manifestações mundiais contra as maquinações financeiras e comerciais do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio, inauguradas em Seattle em 1999, pouco mudaram. Assim como os protestos ainda mais massivos contra a guerra no Iraque.
A ocupação, acontecendo à sombra da Grande Recessão, parecia sinalizar uma revolta global contra “o sistema” (definido como um sistema de má distribuição). No entanto, também expirou rapidamente. É verdade que deixou para trás uma preocupação contínua com a desigualdade econômica que ajudou a tornar Bernie Sanders um ícone político. No entanto, no que diz respeito à visão de um futuro radicalmente novo, o movimento permaneceu cativo do passado, por mais bem-vindo que fosse um nivelamento econômico sério. E, afinal, Sanders perdeu, enquanto no estrangeiro também o Syriza na Grécia, durante algum tempo o desafio mais emocionante à eurobancarização. A ordem neoliberal manteve o curso, enfraquecida, seus mandarins talvez um ácaro menos confiante, mas íntegro.
Seattle, Sanders, a ascensão meteórica de um movimento socialista nos Estados Unidos e os desafios políticos à ordem global em outros lugares mudaram o zeitgeist, no entanto. O anticapitalismo, fora da agenda há mais de uma geração, encontrou voz. Se o futuro quiser voltar à vida, ele pode ser alimentado por energias desencadeadas por esses surtos, mesmo em suas derrotas. Ainda assim, derrotados, foram.
Que maneira mais decisiva de obliterar qualquer sentido de futuro revolucionário do que derrotar e derrotar novamente todas as instâncias de resistência ao modo como as coisas são? Após o massacre de junho dos trabalhadores parisienses em 1848, George Sand se desesperou: “O que há para dizer? O futuro parece tão sombrio que sinto um grande desejo e uma grande necessidade de explodir meus cérebros… Não acredito na existência de uma república que comece por matar os seus proletários.” Quase um século depois, Bertolt Brecht ecoaria Sand: “Nós também estamos decepcionados e / incertos / Ao ver nossas perguntas todas ainda / abertas após a queda da cortina”.
Quão melhor, através da punição derrota após derrota, incutir um clima de rendição a um presente sombrio e eterno? Esta parece ser uma pergunta retórica. Mas não é. Algo ainda mais fatal do que a derrota contagia nosso estado atual de coisas. São antes as operações normais da própria ordem neoliberal, para além dos seus triunfos sobre quaisquer inimigos externos, que geram uma sensação de estagnação, de “este é o fim”.
Isso foi anunciado por Francis Fukuyama em seu best-seller O Fim da História e o Último Homem, publicado em 1992: um epitáfio para o futuro falecido. Seu pronunciamento incluiu uma nota de pesar pelo falecimento de todas as grandes visões de mundo apaixonadas sobre os futuros transcendentes que viriam e que definiram o Ocidente moderno por séculos. Foi, notou com alguma melancolia, “um tempo muito triste”, o fim das lutas ideológicas mundiais que exigiam “ousadia, coragem e imaginação”. Mas morreram; enfaticamente assim com o colapso da União Soviética pouco antes do livro sair. A democracia liberal provou ser a resposta ao enigma da história sobre o destino da humanidade.
As questões que ficaram foram essencialmente de natureza técnica e gerencial. Todos os partidos poderiam agora concordar com isso, incluindo aqueles bastiões da social-democracia, como o Partido Democrata New Deal nos Estados Unidos. Foram cúmplices na construção de uma esfera política limpa de questões perturbadoras sobre a natureza da ordem social. O ajuste, a estabilização, a manipulação desse mecanismo fiscal ou desse fluxo monetário, elevando ou baixando a rede de proteção social, tomaram conta da substância e da linguagem da política, esvaziando-a de qualquer significado mais profundo.
O liberalismo, ao se transformar em neoliberalismo, traiu-se ao abandonar o futuro. Como Christopher Lasch apontou décadas atrás, isso implicou abrir mão de sua própria tradição humanista, seu point d’honneur e a base de sua legitimidade em favor de uma promessa mal cumprida de entregar os bens. Tornara-se sua própria refutação; ao mesmo tempo aplaudindo um individualismo extremista, causando estragos aqui, ali e em todos os lugares em nome da liberdade, ao mesmo tempo em que lamenta a perda da comunidade e da família que seus próprios imperativos tornaram inevitáveis.
À exceção dos jogadores dessa farsa, todo mundo deu um passe, foi AWOL na hora de votar, para não falar daquelas formas menos passivas de participação política. A política neoliberal não era política. Tornara-se estreito, mundano e mesquinho, insistia na mudança sem drama. Em uma palavra, era chato.
E o tédio era o menor deles. As ramificações culturais e psicológicas penetraram em domínios mais íntimos. Mark Fisher zerou todas as zonas mortas. A ironia passou a dominar o estilo, o tom e o humor, um mecanismo de distanciamento que congelava a crítica no útero. O cinismo ficou para trás. Nominalmente em desacordo com o status quo, o resultado desse conhecimento foi uma resignação passiva.
O hip-hop passou da alienação para a incorporação, tornando-se uma imagem espelhada do mundo de vencedores e perdedores do capitalismo, brutal como qualquer enxugamento corporativo magro e mesquinho. A indústria cinematográfica mostrou sua elasticidade, acolhendo em seu abraço cinematográfico a crescente animosidade contra a corporação maligna; Os filmes ganharam dinheiro gesticulando contra o capitalismo. A sabedoria das ruas ecoava a da academia, do ateliê político e dos corredores do poder; não há alternativa.
A própria realidade parecia decadente, velha e senil. A fuga podia ser encontrada na nostalgia, na saudade do passado, num pastiche de imagens e mitos que poderiam, talvez, sedar a sensação de impotência e perda, a sensação assustadora de que o futuro havia sido cancelado. Transcrições românticas de momentos liberados anteriores (os anos 60 em particular) funcionavam como cathexes entorpecendo a dor do fracasso. (O movimento Occupy no campus da Universidade da Califórnia em Santa Cruz emitiu um “comunicado de um futuro ausente”.)
No plano emocional, as correntes neoliberais permeavam o self alimentando-se de desejos anteriores à sua hegemonia política. O indivíduo autossuficiente, o trabalho como redentor, mas desvinculado de horários rígidos, a frustração com o governo corrupto, as ansiedades igualitárias gratificadas pela meritocracia, o ressentimento com os freeloaders, os anseios primordiais por independência adequada por meio de hipotecas colateralizadas: tudo isso equivalendo a se apaixonar pelo opressor talvez, mas ao mesmo tempo compelido a sucumbir às tensões do capitalismo cognitivo, sua ansiedade crônica, medos, fixações no trabalho, seus impulsos competitivos implacáveis, isolamento social e narcisismo.
Uma ambição empreendedora revivida impulsionou o universo neoliberal, produzindo, no entanto, uma sensação generalizada de risco, de fracasso iminente que levou ao auto-escrutínio crônico e crises de depressão. William Gibson, em seu romance Pattern Recognition, observou apropriadamente: “Não temos futuro porque nosso presente é muito volátil. A única possibilidade que resta é a gestão do risco.” Se o futuro existisse, era de se temer.
E em tempos tão precários, a resposta natural tem sido restaurar a segurança do passado (como foi). Será esta a dialética do nosso momento, preenchido como se tornou com agitações revolucionárias insurgentes na esquerda não vistas há mais de uma geração? É para ser o New Deal 2.0? A observação frequentemente citada por Marx do XVIII Brumário parece aplicar-se:
A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos. E assim como parecem ocupar-se em revolucionar a si mesmos e às coisas, criando algo que não existia antes, justamente em tais épocas de crise revolucionária evocam ansiosamente os espíritos do passado a seu serviço, emprestando-lhes nomes, slogans de batalha e trajes para apresentar essa nova cena da história mundial com disfarces consagrados pelo tempo e linguagem emprestada.
Irving Howe, de todas as pessoas, uma vez caracterizou a liderança do antigo Partido Socialista, como foi envolvido pelo New Deal de Roosevelt, desta forma: “Suas mentes ainda funcionavam, mas suas imaginações haviam se fechado”. Alguns na esquerda estão contentes ou resignados por estarem tão envoltos; outros nem tanto. O que é lembrado com carinho como o “solavanco de Sanders” canalizou um desejo pelo socialismo. Existe uma plataforma de transição (para tomar emprestada uma velha noção), uma forma transitória de consciência social, uma alternativa a uma crença comatosa no Progresso que atenda a esse impulso?
Steve Fraser é um escritor e historiador cujo último livro é Mongrel Firebugs and Men of Property: Capitalism and Class Conflict in American History (Verso).
Relações de trabalho em plataforma de transporte regulada na negociação coletiva. O primeiro passo de uma longa caminhada.
A Pauta da Classe Trabalhadora 2023-2026, documento no qual as centrais sindicais apresentam diretrizes para o desenvolvimento do Brasil, destaca a proposta de implementar um marco regulatório de ampla proteção social, trabalhista e previdenciária a todas as formas de ocupação e emprego e de relações de trabalho, com especial atenção aos autônomos, conta-própria, trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores mediados por plataformas e aplicativos.
A proposta apresentada pelas centrais sindicais ao presidente Lula e ao ministro do Trabalho, Luiz Marinho, foi encaminhada através do Decreto Nº 11.513 (1/5/2023), que criou o Grupo de Trabalho Tripartite, com 15 representantes de cada bancada, com a finalidade de elaborar propostas de “regulamentação das atividades de prestação de serviços, transporte de bens, transporte de pessoas e outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas”.
Esse GT se desdobrou em dois subgrupos, um para tratar do transporte de pessoas e outro de mercadorias. As centrais sindicais indicaram dirigentes que representam os/as trabalhadores/as para compor os GTs, coordenaram atividades, prestaram assessoria jurídica e acompanhamento técnico através do DIEESE.
As centrais sindicais saúdam o resultado alcançado pela representação sindical dos/as trabalhadores/as mediados por plataformas no transporte de pessoas que construíram, durante um ano, na mesa de negociação com o governo e as empresas, um conjunto normativo traduzido no Projeto de Lei Complementar 12/2024, que trata dos direitos trabalhistas, previdenciários, sindicais e de negociação coletiva do trabalho em plataforma de transporte remunerado de passageiros.
Construir esse projeto no espaço tripartite de negociação foi uma demanda das centrais sindicais e uma inovação que o governo do presidente Lula proporcionou e que já orienta outras iniciativas para tratar das questões que afetam o mundo do trabalho e o sistema de relações laborais.
O resultado construído trata a questão de forma inovadora, como resposta ao contexto atual e frente às adversidades e, principalmente, diante dos desafios do mundo do trabalho e da ampla desproteção existente.
A regulação tributária e trabalhista, a representação coletiva através do sindicato e o direito à negociação coletiva abrem caminho para os próximos passos e a contínua construção de direitos e proteções na relação de trabalho por meio da contratação coletiva.
O tipo de trabalho autônomo demandado pelas partes será agora qualificado com direitos equivalentes àqueles que tenham vínculos assalariados, tais como o limite de jornada de trabalho, seguridade social (com auxílio maternidade e auxílio doença) e direitos à aposentadoria, piso de remuneração, medidas de saúde e segurança, bem como regras de transparência de informações para os/as trabalhadores/as, hoje sob controle das empresas.
O desafio agora é qualificar o debate no Congresso, aprovando esse PLC 12/2024 e informar bem a sociedade sobre o conteúdo do projeto.
Consideramos essencial investir na negociação para concluir o processo negocial do GT que trata das mesmas questões para os/as trabalhadores/as em plataforma de transporte de mercadoria.
O sucesso desta e de outras iniciativas também dependerão do fortalecimento das entidades sindicais e a própria negociação coletiva, orientadas pelas melhores práticas internacionais, moderno e que valorize o acordo entre as partes.
As centrais sindicais afirmam que foi dado um primeiro passo, importante e necessário, para tratar das complexidades e das graves desproteções laborais, sociais e previdenciárias. Será por meio da organização sindical e da negociação coletiva que a produção do direito e da proteção se efetivara permanentemente, respondendo aos novos desafios que todos os dias se apresentam às trabalhadoras e aos trabalhadores.
Antonio Neto, presidente da CSB (Central dos Sindicatos Brasileiros)
Sérgio Nobre, presidente da CUT (Central Única dos Trabalhadores)
Miguel Torres, presidente da Força Sindical
Ricardo Patah, presidente da UGT (União Geral dos Trabalhadores)
Adilson Araújo, presidente da CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil)
Moacyr Tesch Auersvald, presidente da Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST)