Está começando a se tornar rotina em São Paulo esse tipo de notícia… Por um lado, isso é bom, pois significa que estamos conseguindo remexer um pouco as entranhas e resgatar minimamente a cidadania. Por outro, triste – pelo óbvio. Desta vez, envolveu a marca de roupas 775. Trouxe trechos da reportagem de Bianca Pyl e Maurício Hashizume, da Repórter Brasil, que tratou do assunto com exclusividade:
O Estado brasileiro concluiu uma fiscalização que resultou no resgate efetivo de imigrantes submetidos à escravidão em ambiente urbano. Em nenhuma das operações anteriores com flagrante de trabalho escravo de estrangeiros nas cidades, houve a retirada dos trabalhadores dos locais em que foram encontrados. Desta vez, a decisão dos agentes públicos foi pelo resgate para proteger os direitos das vítimas.
Atraídas pela tentadora promessa de bons salários, duas trabalhadoras bolivianas atravessaram a fronteira e acabaram obrigadas a enfrentar um cotidiano de violações à dignidade humana, que incluía superexploração, condições degradantes, assédio e ameaças. A fiscalização coordenada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo assim definiu o que encontrou: cerceamento à liberdade de ir e vir (por meio de ameaças de deportação, com o intuito claro de inibir eventuais denúncias do que estava ocorrendo), coerção e violência morais (a fim de pressionar pelo aumento da carga de trabalho), salários aviltantes e condições precárias, além de jornada exaustiva.
A oficina em que as bolivianas foram criminosamente exploradas confeccionava peças de roupa da marca de moda jovem Sete Sete Cinco (775). “As carteiras de trabalho foram emitidas, as rescisões foram integralmente pagas, o Seguro Desemprego [do Trabalhador Resgatado] liberado e sacado. As trabalhadoras foram encaminhadas para o abrigo do Estado e para a requalificação profissional para futura reinserção no mercado de trabalho”, descreve Renato Bignami, da SRTE/SP. “Buscamos, dessa maneira, devolver um pouco da dignidade que foi roubada dessas trabalhadoras ao serem traficadas e escravizadas na oficina de costura que trabalhava para a 775″. A fiscalização ocorreu durante o mês de agosto, contudo a informação foi divulgada só agora enquanto tentava-se garantir os direitos das trabalhadoras e enquanto era investigado os vínculos comerciais dos envolvidos.
A oficina era uma das subcontratadas da intermediária W&J Confecções Ltda. que, apenas formalmente, mantinha um contrato de licenciamento de aparências com a Sete Sete Cinco Confecções Ltda. Não por acaso, a W&J tem como sócia Ivaneide Gomes dos Santos, que foi funcionária da Induvest, empresa-mãe da 775 durante a década de 1990.
A moradia e o local de trabalho se confundiam. A casa que servia de base para a oficina chegou a abrigar, no início de 2010, 11 pessoas divididas em apenas três quartos. Além do trabalho de costura, eram forçadas a preparar as refeições e a limpar a cozinha. E, devido ao controle rígido, tinham exatamente uma hora para fazer todos esses serviços (das 12h às 13h) e voltar ao trabalho de costura. Até o tempo e a forma do banho dos empregados, que era com água fria, seguiam as regras estabelecidas pelo dono da oficina. Obrigatoriamente, o banho era tomado em duplas (junto com outra colega de trabalho), durante contados cinco minutos, para poupar água e energia.
O dono da oficina aumentava a pressão declarando que a contratante Sete Sete Cinco cobraria multas pelos atrasos nas entregas dos lotes de roupas. A humilhação, contam as costureiras, era diária: as duas amigas eram culpadas por vários problemas e ouviam ofensas e xingamentos na frente dos colegas de trabalho. Ainda segundo as empregadas, o dono da oficina fazia distinção entre o serviço prestado pelas mulheres, desvalorizando o trabalho feminino. As ameaças eram pesadas e ininterruptas: ele anunciava que poderia convocar a Polícia Federal (PF) para que Eliana e Fernanda fossem deportadas.
O ambiente de trabalho era extramemente precário e colocava em risco a saúde e segurança dos empregados. Não havia extintores de incêndio, mesmo com o risco iminente, já que as instalações elétricas são feitas de forma irregular e clandestina. A ausência de janelas fazia com que a ventilação também fosse completamente inadequada nos espaços. As instalações sanitárias também eram sofríveis, sem nenhum padrão aceitável de higiene. Além de toda essa situação de precariedade, os trabalhadores, ao serem entrevistados, confirmaram a prática de jornadas exaustivas e o problemas graves quanto ao pagamento de salários. Os valores relativos à alimentação e ao aluguel eram descontados de forma indireta, reduzindo ainda mais os já baixos salários dos trabalhadores.
A Sete Sete Cinco Confecções Ltda. foi responsabilizada pela situação das duas trabalhadoras resgatadas. A SRTE/SP lavrou 23 autos de infração contra a empresa. Cada auto se refere à uma infração cometida pela empresa, desde a falta de registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), passando pelo excesso de jornada, pelo pagamento de salário inferior ao salário mínimo e ao piso da categoria, e chegando até às irregularidades relacionadas à Saúde e Segurança do Trabalho.
A empresa, fundada por David Shammas que está há 30 anos no mercado da moda, foi procurada pela Repórter Brasil. O advogado da empresa se comprometeu a enviar uma nota sobre o caso. Até o fechamento desta matéria, contudo, nenhum documento foi recebido. A marca, que apresenta um histórico de parcerias com artistas e atletas, patrocina atualmente o nadador César Cielo, campeão olímpico nos Jogos de Pequim (2008).
A Repórter Brasil também entrou em contato com a assessoria de imprensa da Polícia Federal para ouvir a posição do órgão público a respeito da conduta de agentes que autuaram e multaram as costureiras bolivianas uma semana antes da fiscalização e não se prontificaram a checar a situação de violência a que estavam submetidas. Até o fechamento da matéria, contudo, não houve nenhuma manifestação.
Apesar de todo o apoio recebido após a operação, uma das resgatadas acabou sendo oficialmente deportada para a Bolivia no momento em que deixava o país por livre e espontânea vontade, com o objetivo de visitar seus familiares. A outra resgatada ainda se encontra sob a proteção do Estado brasileiro e já deu início ao seu pedido de regularização (com base no Acordo de Residência do Mercosul, que inclui Bolívia e Chile), ainda não foi analisado.