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JUSTIÇA SOCIAL

Decisão judicial estabelece parâmetros para aferir dignidade humana à profissão de coletor de recicláveis. Mudança gera impasse na obtenção de benefício do INSS

A Justiça decidiu recentemente que catadores de papel que não trabalham em cooperativas e não recebem pelo menos um salário mínimo mensal estão submetidos a uma situação que fere a dignidade humana. Nesse contexto, não haveria um parâmetro válido para medir a capacidade laboral dessas pessoas, um dos requisitos básicos para a concessão de benefício assistencial pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
O impasse surgiu a partir da anulação de uma sentença e de um acórdão (decisão em segundo grau) de um processo de Curitiba. A Turma Nacional de Uniformização da Juris­prudência dos Juizados Espe­­ciais Federais determinou que uma nova decisão seja tomada, considerando que a atividade desempenhada em condições precárias de trabalho não pode ser parâmetro para a não concessão do benefício.

No processo em questão, o autor sofre de incapacidade parcial para o trabalho, o que não o impediria de exercer a atividade de catador de papel. Desse modo, pelo entendimento anterior, ele não seria merecedor do benefício assistencial pago pelo INSS. “As decisões que o consideraram apto, ainda que com capacidade reduzida, para sua atividade habitual, o fizeram em referência a uma atividade inválida para esse fim”, diz o relatório da nova decisão.

As decisões da Turma Na­­cional de Uniformização são responsáveis por unificar a jurisprudência dos juizados especiais federais e são válidas para todo o país. “Esta decisão inovou porque considerou que o cidadão parcialmente capaz para as atividades habituais, que exerce a atividade de catador de papelão nas ruas sem ser cadastrado em cooperativas e aufere renda inferior a um salário mínimo, não pode ser considerado possuidor de capacidade laboral para fins de concessão de benefício assistencial”, explica o defensor público federal, Roberto Venâncio Júnior.

Desencadeamento

Com a decisão, a tendência, segundo Venâncio Júnior, é que os catadores de papel que vivem na pobreza extrema, que tenham problemas de saúde que os incapacitem parcialmente para as atividades habituais, não estejam inseridos em cooperativas que lhes garanta renda de ao menos um salário mínimo mensal e não tenham possibilidade de inserção no mercado de trabalho, possam pleitear o benefício assistencial ao INSS, no valor de um salário mínimo.

Para a procuradora do trabalho Margareth Matos de Carvalho, porém, a nova decisão é prejudicial aos catadores, pois confunde profissão indigna com condições indignas de trabalho. “A profissão de catador de papel é reconhecida por lei. Não pode o juiz dizer que ela não é válida. Essa decisão reforça o preconceito e reproduz uma discriminação”, opina.

Estima-se, hoje, que em Curitiba e região metropolitana existam entre 30 e 40 mil catadores de papel. Desses, apenas 3 mil são cooperados. “Quem não é cooperado vive na miséria e é explorado. Não ganha mais de R$ 200 por mês. Os cooperados ganham em média R$ 800”, conta o presidente da Cooperativa de Catadores e Catadoras de Material Reciclável de Curitiba, região metropolitana e litoral (Catamares) e militante do movimento nacional de catadores de recicláveis, Waldomiro Ferreira da Luz.

Serviço:

Catadores deficientes ou doentes, parcialmente incapazes de trabalhar e que vivem em condição de extrema pobreza, sem possibilidade de inserção no mercado de trabalho, nem em cooperativas, devem formular um pedido de benefício assistencial ao INSS. Caso seja negado, devem procurar a Defensoria Pública da União, localizada na Rua Voluntários da Pátria, 547 (Curitiba), entre às 9 e 17 horas.

Apenas 7,5% fazem parte de cooperativas

O Brasil conta hoje com 800 mil coletores de lixo reciclável, bem mais do que os 700 mil advogados e os 350 mil médicos em atividade no país. Desse total, apenas 7,5%, ou 60 mil deles, estão organizados em cooperativas e associações, segundo o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCMR). Mas a despeito da presença massiva nas ruas, os carrinheiros seguem invisíveis a sina diária à frente de um carrinho. Atirados na espiral da miséria, eles vivem sob uma atmosfera de silêncio, medo, desconfiança e conformismo. Mo­­tivos não faltam.

A jornada diária de 20 quilômetros puxando uma carga de 300 quilos se estende das 6 às 22 horas, tudo por míseros 15 ou 20 reais. Para conhecer os motivos que os empurra nessa cruzada exaustiva é preciso compreender seu contexto. Desemprego, miséria, baixo grau de alfabetização e especialização alimentam o fluxo de carrinheiros nas grandes cidades. A coleta de recicláveis tornou-se oportunidade de fonte regular de renda a essa classe excluída do mercado formal de trabalho. Para muitos, é a primeira atividade remunerada, talvez a única por toda a vida.

Em 2009, a Gazeta do Povo revelou como funciona a exploração de mão de obra dos carrinheiros, lançando-os um nível abaixo nessa atividade já degradante. Barracões suspeitos se multiplicam nas favelas de Curitiba, lotados de coletores em regime de servidão, a maioria sem se dar conta disso. A retenção dos documentos pessoais, o atrelamento a um só atravessador, o aluguel do carrinho, as ameaças, tudo contribui para fazer dessa gente escravos do lixo. Nos depósitos clandestinos, hospedagem e carrinho são dívidas pagas às custas de muito trabalho.

Sozinhos eles são alvo de exploração, mas há resistência em se organizar. Preferem a liberdade de não ter patrão, nem horários e regras, além de receber diariamente pelo serviço, mesmo que em quantia irrisória.

Ainda que não se queira enxergá-los, eles existem. E são muitos, como revela o cotidiano das ruas. O problema é que, quando rompem a cortina da invisibilidade, os coletores são tidos apenas como estorvo na paisagem urbana. Não só isso os torna invisíveis. Do tipo discreto, os atravessadores agem de forma a acobertar o negócio sujo em lugares distantes das vistas, geralmente no interior de favelas.

Embora pouco valorizados, os carrinheiros respondem, em média, por 90% do lixo reciclável coletado em Curitiba e região, algo em torno de 500 toneladas por dia. Eles retiram das ruas, dez vezes mais que os 170 servidores e os 27caminhões dos dois programas da prefeitura, o Lixo que não é Lixo e o Câmbio Verde. Sendo a coleta algo necessário e o poder público incapaz de recolher todo o resíduo que se produz, os coletores tornaram-se, portanto, indispensáveis.

Fonte: Gazeta do Povo