NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

OPINIÃO

Por Geraldo Furtado de Araújo Neto

É sabido o caos sanitário, econômico e social provocado pela Covid-19 em 2020 e que assolou o país por mais de dois anos. Em março de 2020, ainda no início da pandemia e com a incerteza gerada por um vírus desconhecido e que já matava milhares, principalmente na Europa, o Brasil adotou cautela. Isolamentos, confinamentos e lockdowns foram feitos no país todo a fim de proteger a nação de uma pandemia que seria sem precedentes na história.

 

Nesse começo pandêmico, autorizou-se o funcionamento de atividades essenciais à população, como hospitais, farmácias, supermercados e indústrias alimentícias, por exemplo.

 

Em Mato Grosso do Sul, a atividade frigorífica é um importante ramo que emprega milhares, com produção muito significativa e exportação da carne brasileira para o mundo todo. Por ser atividade essencial, vários empregados dessa indústria continuaram a trabalhar durante a pandemia.

 

Todavia, é de se pensar, também, que vários empregados se contaminariam com a Covid, pela particularidade de que os obreiros de frigoríficos laboram próximos uns aos outros e em ambiente propício para a circulação do vírus[1].

 

Em estudo feito no estado do Paraná com esse tipo de indústria, chegou-se à conclusão que o número de casos de trabalhadores infectados era significativo. Enquanto a prevalência dos casos entre a população geral era da ordem de 1,9%, nos trabalhadores de frigoríficos era da ordem de 7,21%. O estudo concluiu que esses empregados apresentam maiores chances de contágio por Covid-19[2].

 

Ainda que algumas medidas tenham sido tomadas por esses frigoríficos, a fim de mitigar a contaminação da Covid-19, restou impossível evitar por completo que os empregados ficassem doentes.

 

Enquanto muitos trabalhadores no país foram para o trabalho remoto ou, dentro das possibilidades da MP 936/2020, ficaram afastados do emprego com o recebimento do auxílio emergencial, os empregados de frigoríficos ficaram expostos ao vírus em um período delicado do Brasil e do mundo, ainda que para satisfazer a um interesse alimentar coletivo.

 

As contaminações dentro dos frigoríficos, bem como outras indústrias do país, eram inevitáveis. Veja que isso não quer dizer que todos os empregados ou um determinado obreiro tenha se infectado com a doença, necessariamente, na empresa empregadora. Quando se fala em “contaminações inevitáveis” está se falando que, probabilisticamente, era natural que houvesse contágio de empregados de forma aleatória, ainda que a empregadora fosse muito diligente em seu manejo da doença dentro da sua propriedade. Claro que uma empresa cuidadosa e que tomou as precauções que tinha a seu alcance teve menos casos da doença que as outras mais relapsas.

 

Após as contaminações, pulularam na Justiça do Trabalho ações de obreiros pedindo indenizações por danos morais/materiais e reconhecimento de acidente de trabalho pelo suposto contágio nesse tipo de indústria. Em Mato Grosso do Sul, houve muitas demandas contra os frigoríficos.

 

Para fins de responsabilização, conforme a doutrina, seria necessário averiguar o dano, nexo causal e ato ilícito ou abusivo[3].

 

O dano é inequívoco quando se fala de contrair a doença. Ainda que não haja o evento morte, seria tranquilo sustentar que o dano se dá in re ipsa, isto é, presumindo o constrangimento, dor e temor ao contrair uma doença como a Covid-19, principalmente no início da pandemia, quando não havia vacina e diante das notícias aterrorizantes vindas da Europa.

 

Ademais, em vista do tipo de atividade industrial dos frigoríficos, é certo que pela dinâmica empresarial ela expunha seus trabalhadores a esse tipo de doença, bem mais do que a média (conforme estudo acima destacado). Seria o caso, então, de reconhecer a aplicação do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil e a responsabilidade objetiva no caso, retirando a necessidade de comprovação de culpa/dolo do ato.

 

De outro lado, haveria razoável dúvida sobre a questão do nexo causal. Com efeito, não há teste microscópio disponível a fim de detectar, com precisão, quando o vírus, pela primeira vez, entrou no corpo do indivíduo.

 

Nesse sentido é recente decisão proferida pelo TST e com publicação em 3 de junho desse ano. No RR-491-34.2020.5.12.0038, da relatoria da Ministra Maria Cristina Peduzzi, a 4ª Turma reformou decisão do TRT da 12ª Região, ressaltando que “não há como determinar o local e o momento exatos em que cada indivíduo entra em contato com o vírus e adquire a doença, exceto em casos bastante específicos”, retirando o nexo causal entre a infecção pela Covid-19 do trabalhador e o labor realizado nas dependências do frigorífico[4].

 

Vale ressaltar que na própria decisão mencionada acima do TST, também se entendeu que a Lei 14.128/2021 fixou o nexo causal apenas para profissionais da área de saúde que atuam de forma direta no atendimento de pacientes com Covid e incluiu serviços administrativos, de copa, de lavanderia, de limpeza, de segurança e de condução de ambulâncias, entre outros, além de necrotérios e cemitérios. Logo, por uma interpretação restritiva, estariam fora do âmbito da norma empregados de frigoríficos e outras empresas.

 

Em um contexto normal, a prova do nexo causal seria do reclamante, diante da negativa esperada da empresa reclamada. Contudo, em face da imensa dificuldade (para não dizer, impossibilidade) de demonstração do nexo, atribuir ônus neste sentido ao autor seria dar-lhe verdadeira prova diabólica.

 

Nesse diapasão, em julgamento plenário da ADI 6.342 (e demais ADIs sobre a mesma matéria, julgadas em conjunto) sobre a liminar de suspensão da eficácia do artigo 29 da MP 927, a maioria dos ministros do STF fixou entendimento de que tal artigo era “ofensivo” aos trabalhadores dos serviços essenciais, notadamente os obreiros da saúde, bem como outros de farmácias e entregadores. A Suprema Corte entendeu que exigir de tais trabalhadores tal tipo de prova equivaleria a conferir-lhes prova diabólica. Isto é, a imputação de um ônus desta espécie ao reclamante impediria ressarcimento em juízo, indo contra o direito à proteção da saúde e segurança do trabalhador, bem como de redução dos riscos de acidentes de trabalho[5].

 

Ademais, admitida a responsabilidade objetiva, não faz sentido reconhecer a atividade como de risco (para os fins do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil) para depois afirmar a impossibilidade de se reconhecer o nexo causal. Os dois requisitos, neste caso, andam juntos.

 

Ressalte-se que o artigo 20, §1º, alínea “d”, da Lei 8.213/91 deixa claro que não se considera doença do trabalho aquela endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho. Aqui não vale fazer diferenciação entre pandemia e endemia, por entendê-la desnecessária e por este não ser um estudo sobre biologia. Todavia, veja que a própria lei entende ser possível determinar a ligação necessária do trabalho com a doença quando o labor for desenvolvido expondo o trabalhador ao contágio (como é o caso dos empregados de frigorífico, por exemplo). Neste caso de exposição, não há necessidade de comprovação de nexo.  Ou vai ser exigido de um pesquisador sobre a malária que foi à Amazônia estudar o protozoário que ele demonstre, cabalmente, que pegou a doença enquanto trabalhava e não enquanto estava de folga em casa?

 

Em ensaio sobre a contaminação de trabalhadores nos frigoríficos durante a pandemia, o professor e juiz do Trabalho José Antônio Ribeiro bem entendeu:

 

“Com efeito, o que deve atenuar a situação jurídica do empregador diante da concausalidade é o arbitramento da indenização, pois se o ambiente laboral não foi a causa única da doença, deve-se mensurar, com apoio nos princípios da proporcionalidade e da solidariedade, qual a contribuição negativa desse ambiente para o surgimento da doença, podendo ser aplicado, por analogia, também o artigo 945 do Código Civil”[6].”

 

Isso é o que se chama de causalidade probabilística, identificável em teses e artigos sobre o assunto e principalmente no âmbito do Direito Ambiental, que é usada quando houver dificuldades para o estabelecimento do nexo causal. Para isso, são utilizáveis como fundamentos os princípios da reparação integral, dignidade da pessoa humana e solidariedade social. Seria uma abertura possível nas hipóteses de dificuldade de se provar a existência da relação de causalidade da vítima, de modo que os dados estatísticos serviriam para indicar uma probabilidade de que certa atividade seria fundamental para os danos acometidos[7].

 

Com efeito, em casos de contaminação em série dentro de indústrias que geram aglomeração, seria desarrazoado afirmar que nenhum obreiro se contagiou na empresa, ao passo que falar que todos os empregados com Covid foram infectados na empregadora seria um exagero (não é crível que um ou alguns deles não tenham se contaminado em casa ou enquanto faziam atividades essenciais, como compras de supermercado). O entendimento “tudo ou nada” poderia gerar uma injustiça com os trabalhadores e fazer com que a empresa não responda por seu risco do negócio (artigo 2º da CLT) ou fazer com que a empresa seja uma “garantidora universal”, o que não se intenta em nome do princípio da livre iniciativa.

 

Assim, em casos de grandes contaminações, o juiz poderia — de modo bem fundamentado, com base nas notícias veiculadas, grau de culpa da empresa na condução da pandemia e, se possível, se utilizando de perito médico para ajudá-lo a estabelecer a percentagem — indicar um percentual de probabilidade para aqueles empregados terem se infectado dentro da empresa. Isso, ao fim, afetaria o cálculo da indenização. Exemplificadamente, se para um caso de nexo causal certo a indenização razoável seria de R$ 10 mil, para uma empresa em que o percentual de probabilidade de contaminação fosse 70% a indenização baixaria para R$ 7.000 e assim por diante.

 

Caso isso seja negado, ao admitir a impossibilidade de se fixar a existência de nexo como alguma parte do Judiciário Trabalhista vem fazendo, poder-se-ia pensar em um grau absurdo de erros pelo juiz/tribunal prolator da decisão. No caso acima, para uma empresa que tem 70% de chance de contaminação, a cada dez sentenças improcedentes, em sete o juiz teria errado.

 

Ainda há outras ações a serem julgadas envolvendo o contágio por Covid dentro da empresa empregadora na Justiça do Trabalho e muitos casos chegarão ao TST via recurso para uma deliberação da Corte. Talvez uma lição jurídica advinda da pandemia no tema de acidente de trabalho seja a possibilidade de utilização do nexo causal probabilístico no futuro, ainda que para outras doenças.

 

Por isso, o caminho correto rumo à uma prestação jurisdicional justa é a fixação de nexo causal probabilístico para os casos em que a relação de causalidade se mostrar incerta quanto a determinada vítima, mas estatisticamente possível de ter acontecido.

 


[1] Nesse sentido: “Esse modo diferente pode ser atribuído ao fato de que, nos ambientes laborais dos frigoríficos, ocorrem grandes concentrações de trabalhadores em ambientes fechados, com pouca renovação de ar, baixas temperaturas, umidade e com postos de trabalho sem o distanciamento mínimo de segurança, além da presença de diversos pontos de aglomeração de trabalhadores, tais como transporte coletivo, refeitórios, salas de descansos, salas de pausas e vestiários” (GARCIA, Simone Domingues; CARVALHO, Manoela de; BALTAZAR, Mariângela. COVID-19 em trabalhadores de frigoríficos: relação entre saúde do trabalhador e segurança alimentar. In: Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, v. 20, n. 1, 2022).

 

[2] GARCIA, Simone Domingues; CARVALHO, Manoela de; BALTAZAR, Mariângela. COVID-19 em trabalhadores de frigoríficos: relação entre saúde do trabalhador e segurança alimentar. In: Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, v. 20, n. 1, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2022.

 

[3] CASSAR, Volia Bomfim. Direito do Trabalho. São Paulo: Método, 18ª ed., p. 890, 2021.

 

[4] Disponível aqui. Acesso em 29 set. 2022.

 

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo na medida cautelar da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 6.342/DF. Relator: Min. Marco Aurélio. Redator: Min. Alexandre de Moraes. Julgamento em 29 de abril de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2022.

 

[6] In: A COVID-19 como doença ocupacional: nexo causal e concausal. In: Revista do TRT 10, v. 24, n. 2, p. 33, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2022.

 

[7] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Nexo causal probabilístico: elementos para a crítica de um Conceito. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 08, jul./set., p. 04, 2016. Disponível aqui.  Acesso em: 29 set. 2022.

 

 é juiz do Trabalho substituto no TRT da 24ª Região, mestre em Direitos Humanos pela UFMS e doutorando em Direito do Trabalho pela USP.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-out-02/nexo-causal-probabilistico-acidentes-trabalho