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Epistemologias do Sul e o trabalho decente como categoria emancipatória

Epistemologias do Sul e o trabalho decente como categoria emancipatória

Pensar o trabalho decente na Amazônia a partir das Epistemologias do Sul é, antes de tudo, um gesto de insurgência intelectual. É reconhecer que a produção de conhecimento sobre o trabalho — suas normas, valores e políticas — foi historicamente construída a partir de um centro geopolítico de saber, que impôs à periferia mundial não apenas formas de exploração econômica, mas também formas de pensar [1].

As Epistemologias do Sul, tal como formuladas por Boaventura de Sousa Santos, propõem uma alternativa radical a essa lógica: valorizam saberes subalternizados e invisibilizados e reivindicam um diálogo horizontal entre diferentes formas de conhecimento. Trata-se, em essência, de uma convocação à prática de uma sociologia das ausências e de uma sociologia das emergências — isto é, de transformar o que foi silenciado em voz e o que foi negado em possibilidade, restituindo dignidade epistêmica a modos outros de existir e de compreender o trabalho.

Esse horizonte teórico permite deslocar o olhar do Norte global para as experiências, saberes e práticas do Sul — entendido não como mera categoria geográfica, mas como metáfora das zonas de sofrimento, resistência e reinvenção. No campo do trabalho, referido deslocamento implica questionar as racionalidades hegemônicas que definem o que é digno, produtivo ou moderno, e reconhecer a pluralidade de formas de vida e de labor que compõem o universo amazônico [2].

A cultura eurocêntrica, como se sabe, instituiu uma “monocultura do saber científico” [3], que marginalizou epistemologias populares, indígenas, quilombolas, femininas e comunitárias. Por isso mesmo, mostra-se incapaz de abarcar formas de trabalho fundadas na reciprocidade, na solidariedade, na oralidade e na espiritualidade — dimensões vitais em muitas comunidades amazônicas, andinas, africanas e latino-americanas.

Esses modos de trabalhar não se organizam em torno do lucro, mas da vida. São trabalhos que reproduzem o comum, que sustentam a existência coletiva e que, embora desconsiderados pelo sistema capitalista, são essenciais à preservação do tecido social e ambiental da região e, em última instância, à própria possibilidade de futuro.

Trabalho decente: entre paradigma normativo e horizonte emancipatório

O conceito de trabalho decente, formulado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1999, constitui um marco normativo global voltado à promoção de condições mínimas de dignidade, compreendendo o acesso a emprego produtivo, liberdade, equidade e segurança. Trata-se de um paradigma que busca compatibilizar crescimento econômico com justiça social, tendo-se consolidado como eixo estruturante das políticas públicas laborais e de desenvolvimento sustentável.

Contudo, sob a lente das Epistemologias do Sul, exige-se uma reapropriação e ressignificação do conceito. Conforme propõe Boaventura de Sousa Santos, não há justiça social global sem justiça cognitiva global, e, portanto, categorias universais devem ser interrogadas a partir de seus contextos de produção [4].

Na Amazônia, pensar o trabalho decente implica mais do que o cumprimento formal de normas trabalhistas: exige a incorporação de um projeto de justiça social enraizado nos territórios, nas culturas locais e nas relações ecológicas. O que é “decente” para uma comunidade ribeirinha, para um povo indígena, para uma mulher extrativista ou para um jovem atuante no comércio informal não pode ser medido pelos mesmos parâmetros industriais ou urbanos concebidos no Norte global.

Assim, o trabalho decente, quando interpretado à luz das Epistemologias do Sul, deixa de ser apenas um direito a ser assegurado e passa a configurar-se como categoria crítica — capaz de desnaturalizar a colonialidade do trabalho, isto é, o regime de produção e de sentido que submete corpos, saberes e naturezas a uma lógica de extração, exploração e invisibilização [5].

A noção moderna de trabalho que estrutura as relações econômicas e jurídicas contemporâneas nasce no contexto da modernidade europeia, fortemente marcada pela ascensão do capitalismo, do individualismo e da racionalidade instrumental [6].

Mesmo que formulada sob distintas perspectivas — como nas teorias liberais de John Locke e Adam Smith ou na crítica marxiana à alienação do trabalho —, essa concepção compartilha uma matriz epistêmica comum: a do homem europeu como sujeito do trabalho e a do trabalho como atividade produtiva, disciplinada e transformadora da natureza.

A partir dessa racionalidade, o trabalho passou a ser medido, quantificado e hierarquizado segundo critérios de produtividade e eficiência, convertendo o tempo em mercadoria, o corpo em força produtiva e o sujeito em capital humano [7].

Entretanto, enquanto o trabalho europeu se erigia como sinônimo de dignidade e progresso, as formas de trabalho praticadas fora do centro geopolítico do saber — comunitárias, espirituais, simbólicas, de cuidado e reciprocidade — foram sistematicamente invisibilizadas, desqualificadas e exploradas [8].

A colonialidade não apenas subjugou povos, mas também impôs uma epistemologia do trabalho que deslegitimou outras ontologias e modos de produção do comum. Reconstituir o sentido de trabalho decente na Amazônia, portanto, requer o rompimento com a monocultura epistêmica e o reconhecimento de que há múltiplas racionalidades laborais que, embora marginalizadas, são centrais à sustentabilidade da vida e à resistência civilizatória.

Colonialidade do trabalho e resistências na Amazônia

A colonialidade do trabalho consiste na persistência das formas de dominação e exploração engendradas durante o período colonial, agora reconfiguradas sob os discursos da modernização, do desenvolvimento e do progresso. Como observa Aníbal Quijano, a colonialidade constitui a face oculta da modernidade: uma estrutura de poder que articula a produção econômica, a dominação política e a hierarquização epistêmica a partir de um centro eurocêntrico [9].

No campo do trabalho, essa colonialidade se traduz na subalternização das populações periféricas e na imposição de um modelo de trabalho que perpetua desigualdades históricas.

Na Amazônia, suas manifestações são múltiplas e concretas: (1) a persistência do trabalho análogo à escravidão, especialmente nas cadeias produtivas do agronegócio e da extração madeireira; (2) a precarização estrutural do trabalho rural e extrativista, marcada pela informalidade e pela ausência de proteção social; (3) a invisibilidade das mulheres e dos povos tradicionais, cujas formas de trabalho — vinculadas ao cuidado, à coleta e à reprodução da vida — seguem marginalizadas nos indicadores oficiais; e (4) a subordinação dos modos de vida amazônicos a projetos econômicos exógenos, pautados em lógicas extrativistas e desenvolvimentistas.

Não obstante, as resistências também se multiplicam, produzindo alternativas econômicas, políticas e epistêmicas. Em meio à colonialidade persistente, emergem formas de reexistência — cooperativas extrativistas, redes de economia solidária, práticas de autogestão, articulações intercomunitárias e movimentos indígenas e ribeirinhos que redefinem o trabalho como cuidado do território, reciprocidade e pertencimento [10].

Movimentos sociais como o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e a Via Campesina expressam essa potência decolonial ao articular gênero, território e soberania alimentar [11].

Essas práticas são expressões das epistemologias vivas do Sul, pois produzem conhecimento e justiça a partir da experiência.São epistemologias enraizadas no cotidiano e sustentadas por relações de solidariedade, espiritualidade e comunalidade — fundamentos de uma política do comum que, ao reinventar o sentido de trabalho, também reencanta a própria ideia de desenvolvimento.

Papel do Direito e da Justiça do Trabalho

Sob esse prisma, o Direito do Trabalho — e, em particular, a Justiça do Trabalho — é convocado a descolonizar suas próprias categorias analíticas e institucionais. Como observa Santos, a descolonização do saber jurídico demanda romper com o monopólio da ciência moderna e reconhecer a pluralidade de racionalidades normativas existentes nas margens do sistema [12]. Assim, reivindicar o trabalho como categoria emancipatória significa resgatar sua dimensão ética, coletiva e transformadora, em oposição à racionalidade instrumental que o reduz a mero fator de produção.

Essa perspectiva desloca o foco do trabalho como valor econômico para o trabalho como ato de criação e reconhecimento, fundamento ontológico da vida social. Nesse sentido, não basta aplicar o conceito de “trabalho decente” como uma fórmula universal e descontextualizada; é necessário reconhecer a diversidade ontológica do trabalho e a pluralidade de seus sentidos.

Isso implica, concretamente: (1) incorporar saberes locais e comunitários nos processos de mediação, conciliação e inspeção do trabalho, valorizando as formas não estatais de resolução de conflitos; (2) dialogar com experiências de autogestão, cooperativismo e economia solidária, que expressam racionalidades econômicas alternativas; (3) reinterpretar o princípio da dignidade da pessoa humana em chave ecossocial e intercultural, reconhecendo o entrelaçamento entre pessoa, território e natureza; e (4) ouvir as vozes amazônicas, historicamente marginalizadas nos espaços de decisão e de formulação normativa.

Impõe-se, por conseguinte, a reinvenção das políticas públicas, da educação e da economia sob outros parâmetros — os da solidariedade, da justiça e do bem viver (sumak kawsay, suma qamaña). Esse giro epistemológico requer: (1) uma educação emancipadora e formação crítica, inspirada na pedagogia da libertação; (2) o fortalecimento das economias comunitárias e solidárias, como expressão da autogestão e da reciprocidade; (3) a redefinição dos conceitos de progresso e desenvolvimento, incorporando dimensões culturais e ambientais e (4) a consolidação de uma ecologia dos saberes como horizonte político para o Direito e para as instituições da Justiça do Trabalho.

Em síntese, pensar o trabalho decente na Amazônia a partir das Epistemologias do Sul é transformar o valor social do trabalho em campo de reconstrução civilizatória, pelo qual o conhecimento jurídico se abre ao diálogo intercultural e à escuta dos territórios.

Trabalho como ponte entre o humano e o mundo

As Epistemologias do Sul constituem um chamado à desobediência epistêmica — um convite a reaprender o mundo a partir dos lugares e sujeitos que a modernidade colonial tentou silenciar.

Na Amazônia, o trabalho transcende sua dimensão produtiva: é expressão de cuidado com a vida, gesto de reciprocidade e afirmação de pertencimento. Trabalhar, nesse contexto, é participar da continuidade da existência, em diálogo com a floresta, os rios e os saberes ancestrais.

Ressignificar o trabalho decente, portanto, significa restituir à categoria jurídica sua força emancipatória — não como instrumento de padronização global, mas como um direito insurgente, que reconhece a pluralidade de modos de vida, de tempos e de economias É politizar o conceito de trabalho, compreendendo-o como um campo de disputa por reconhecimento, redistribuição e emancipação.

Pensar o trabalho decente a partir do Sul — e, mais especificamente, a partir da Amazônia — é propor um novo pacto civilizatório, no qual a dignidade humana não se dissocie da dignidade da Terra. Trata-se de imaginar um horizonte em que o trabalho não seja mera imposição econômica, mas expressão de liberdade e solidariedade — um trabalho que cuida, sustenta e recria o comum.


Referências bibliográficas:

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Amazônia: território, povos e conflitos. Manaus: UEA, 2018.

DUSSEL, Enrique. 1492: O encobrimento do outro. Petrópolis: Vozes, 1993.

ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

MACHADO, Maria Isabel. Mulheres, território e agroecologia: feminismo e resistência no campo brasileiro. Brasília: MDA, 2020.

OIT. Relatório Global sobre Trabalho Decente. Genebra, 1999 e seguintes.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. CLACSO, 2000.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

_________________. Epistemologies of the South: Justice Against Epistemicide. Routledge, 2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2004.

[1] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2010. p. 23–71.

[2] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

[4] SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

[5] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201–246.

[6] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2004.

[7] FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[8] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.

[9] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201–246.

[10] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.

[11] MACHADO, Maria Isabel. Mulheres, território e agroecologia: feminismo e resistência no campo brasileiro. Brasília: MDA, 2020.

[12] SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

  • é pós-doutoranda em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal),doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, pesquisadora e autora de livros e artigos.

CONJUR

https://www.conjur.com.br/2025-out-22/epistemologias-do-sul-e-o-trabalho-decente-como-categoria-emancipatoria/

Epistemologias do Sul e o trabalho decente como categoria emancipatória

A pejotização é a nova face da precarização do trabalho

Marcos Verlaine*

A audiência pública realizada no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a pejotização revelou o núcleo do impasse deixado pela Reforma Trabalhista de 2017: o conflito entre o direito social e o avanço da lógica de mercado sobre o trabalho humano.

O Supremo está em cena. É o “dono da bola” neste momento. Mas o trabalhador não pode ser a “bola da vez”.

O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, tem diante de si mais que um processo jurídico. A decisão dele tocará o próprio alicerce da cidadania no Brasil: o reconhecimento de que o trabalho não é mera mercadoria — é direito e valor civilizatório.

Da modernização à precarização

Sob o discurso da “modernização” e da “flexibilização”, eufemismo que significa retirar direitos, a pejotização vem se consolidando como forma de redução de custos e evasão de direitos.

Empresas contratam profissionais não mais como empregados, mas como pessoas jurídicas — expediente que elimina 13º, férias, FGTS, contribuição previdenciária e qualquer traço de estabilidade social.

O vínculo de emprego desaparece; o trabalhador é empurrado à condição de “prestador de serviço”.

Na aparência, trata-se de autonomia. Na realidade, é a precarização institucionalizada — o desmonte do Direito do Trabalho construído ao longo de quase 1 século.

Números da desproteção

Os dados mostram o tamanho do abismo. Segundo a Rais (Relação Anual de Informações Sociais) e o IBGE, o País perdeu 12% dos contratos formais nos últimos 5 anos, enquanto as formas “alternativas” de vínculo cresceram rapidamente.

Hoje, mais de 25 milhões de brasileiros sobrevivem em condições precárias: motoristas de aplicativo, entregadores, professores, jornalistas e técnicos. A suposta liberdade da pejotização esconde o fato de que a maioria vive sem direitos, sem segurança social e sem renda estável.

Trabalhador não é empresa

A pejotização transfere o risco do negócio para o trabalhador, e assim rompe o princípio fundamental da relação de trabalho: a subordinação.

Se alguém depende de um único contratante, cumpre ordens, segue metas e horários, não é empresário — é empregado. Quem tem de arcar com o custo do negócio é o dono do negócio. É relação de troca, em que o dono custeia e o trabalhador vende a força de trabalho dele.

A forma jurídica não pode se sobrepor à realidade material do trabalho. Como ensina a clássica doutrina trabalhista, “o contrato não cria o fato social; apenas o reconhece”.

Fenda previdenciária

Além de desproteger o trabalhador, a pejotização corrói o sistema de Seguridade Social, que sustenta a Saúde Pública (SUS)1, a Previdência Social (INSS)2 e a Assistência Social3.

Ao reduzir as contribuições sobre a folha, o modelo compromete a sustentabilidade da Previdência e empurra milhões para a contribuição mínima, individual e irregular, que enfraquece o sistema e vulnera o conceito de Previdência, que é prevenção para os momentos de infortúnios.

O resultado é duplo: menos arrecadação para o Estado e mais insegurança para quem trabalha. O risco da velhice, da doença e do desemprego volta a ser problema privado — exatamente o que o sistema público buscou superar ao longo do século 20.

Ou seja, essa “modernidade” que apregoam é falsa, porque na verdade trata-se de um “grande salto para trás”. É a volta ao passado, que outrora havia sido superado com a materialização dos direitos.

O que está em jogo no Supremo

O julgamento no STF será decisivo. Se a Corte considerar legítima a pejotização ampla, estará legalizando a precarização estrutural do trabalho.

Será um marco de ruptura — o momento em que o Estado, em vez de proteger o trabalhador, passará a sancionar juridicamente a vulnerabilidade desse sujeito, sem direitos, sem perspectivas e sem futuro.

O Brasil corre o risco de redefinir o que é trabalho e quem é trabalhador. A dúvida que paira, ao fim e ao cabo é: queremos um país de cidadãos ou de prestadores de serviço descartáveis?

Sentido social do trabalho

O trabalhador não é empresa. É sujeito de direitos, produtor de riqueza, pilar da economia real. Reduzi-lo a um CNPJ é negar sua humanidade, apagar o valor social do trabalho e corroer a base moral sobre a qual se ergue o Estado Democrático de Direito.

O trabalho organiza o trabalhador como sujeito social, econômico e político. Transformá-lo em empresa tem o objetivo de desmantelá-lo como esse sujeito.

A verdadeira modernização não é a que enfraquece o trabalho, mas a que o valoriza — com direitos, dignidade e reconhecimento.

Em defesa do trabalho como valor civilizatório

O que será do trabalhador se a pejotização for chancelada pelo STF?

A resposta pode nos levar de volta ao século 19, quando o trabalho era apenas mercadoria, e o trabalhador, número sem rosto.

A sociedade brasileira precisa decidir se aceita esse retrocesso. Esse grande salto para trás da vida humana.

Proteger o trabalho é proteger o futuro — é afirmar que a democracia começa, de fato, no reconhecimento de quem trabalha como sujeito de direitos, e não como custo empresarial.

(*) Jornalista, analista político e assessor parlamentar do Diap

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1 Garantida pelo SUS, cujo princípio é a universalidade, ou seja, acesso à saúde pública e gratuita para todos os cidadãos, sem necessidade de contribuição direta.

2 Seguro social para o trabalhador, que garante renda em casos de inatividade, como aposentadoria, doença, acidente, maternidade e morte. Sistema de caráter contributivo, gerenciado pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), em que os benefícios são pagos aos que contribuem e seus dependentes.

3 Direcionada a quem dessa necessitar, independentemente de contribuição. Objetivo é apoiar indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade, risco social ou pessoal. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), por exemplo, é uma das principais ações.

DIAP

https://diap.org.br/index.php/noticias/artigos/92484-a-pejotizacao-e-a-nova-face-da-precarizacao-do-trabalho

Epistemologias do Sul e o trabalho decente como categoria emancipatória

O falso milagre do recorde de empregos

Marcos Verlaine*

Os recordes que escondem as desigualdades. O Brasil acaba de alcançar a marca de mais de 102 milhões de pessoas ocupadas, segundo o IBGE1 — o maior número da série histórica.

A taxa de desemprego caiu para 5,8%, no segundo trimestre, resultado que, em aparência, deveria ser motivo de celebração. No primeiro trimestre era 7%. No entanto, quando se olha além dos números, o quadro é menos alentador: informalidade, rotatividade e baixos salários continuam sendo a regra no mercado de trabalho brasileiro.

Por trás da queda no desemprego, há recomposição de postos majoritariamente precários, intermitentes e mal remunerados.

O trabalhador volta a ter ocupação, mas não necessariamente emprego digno. A renda média real segue estagnada, a desigualdade permanece alta e a segurança trabalhista é cada vez mais frágil.

Herança da Reforma Trabalhista

A Reforma Trabalhista — Lei 13.467/17 —, aprovada no governo Michel Temer (MDB) sob a promessa de modernizar as relações de trabalho e gerar milhões de empregos formais, abriu caminho para o abrandamento de direitos e ampliação de formas precárias de contratação.

O negociado sobre o legislado, pilar da contrarreforma, que necessita ser revista, enfraqueceu a proteção legal ao trabalhador e deu às empresas poder desproporcional nas negociações.

Assim, 8 anos depois da contrarreforma, o saldo é inequívoco: o mercado de trabalho se tornou mais volátil, mais desigual e menos protegido. Era tudo que o mercado e o capital desejavam com a “reforma”.

A formalização não cresceu como o previsto, quase uma década depois da “reforma”, e o emprego com carteira assinada ainda representa menos de 40% da força de trabalho total.

Enquanto isso, mais de 39 milhões de brasileiros atuam na informalidade — sem direitos, sem Previdência e sem garantias mínimas na relação laboral.

Trabalhar mais, ganhar menos

A suposta modernização também trouxe novas formas de exploração. Cresceu o número de trabalhadores sob contratos intermitentes, em plataformas digitais e serviços por demanda, modalidades que disfarçam relações de subordinação com o rótulo de autonomia.

O que se vendeu como liberdade virou instabilidade permanente, em que o trabalhador é chamado apenas quando convém ao empregador e assim arca sozinho com os riscos e custos do trabalho. É o caso do contrato intermitente de trabalho.

O resultado: compressão da renda média e queda na qualidade de vida. O País tem mais gente trabalhando, mas com menos poder de compra e menor proteção social.

Desafio de reverter a precarização

Os dados do IBGE confirmam que quantidade não é sinônimo de qualidade. O desafio agora é reconstruir modelo de emprego que concilie crescimento econômico com valorização do trabalho e proteção social.

Isso passa por revisar pontos da Reforma Trabalhista, fortalecer a fiscalização das relações de trabalho e revalorizar a negociação coletiva equilibrada, com sindicatos fortes e representativos.

Sem isso, o recorde de ocupação permanecerá um número vazio — expressão de um país que emprega mais, mas garante cada vez menos aos que produzem a riqueza.

Debate que volta às urnas

O cenário atual recoloca o tema do trabalho digno no centro da disputa política que se desenha para as eleições de 2026.

De um lado, o projeto neoliberal — representado pela direita e extrema-direita — que defende mais abrandamento da legislação trabalhista, sob o argumento da competitividade. De outro — esquerda, centro-esquerda e progressistas de modo geral —, o campo que defende o Estado regulador, capaz de equilibrar as forças entre capital e trabalho.

Mais do que questão meramente econômica, trata-se de projeto de sociedade: decidir se o Brasil continuará aceitando modelo que normaliza a precarização ou se buscará nova agenda de desenvolvimento com inclusão, proteção e dignidade laboral. Isto é, trata-se de economia política.

(*) Jornalista, analista político e assessor parlamentar do Diap

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1 Desemprego/IBGE – https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php – dados acessados em 17.10.25.

DIAP

https://diap.org.br/index.php/noticias/artigos/92479-o-falso-milagre-do-recorde-de-empregos

Epistemologias do Sul e o trabalho decente como categoria emancipatória

Jornadas de 14h: auditores-fiscais do trabalho resgatam 36 bolivianos em situação análoga à escravidão

Auditores-fiscais do Trabalho da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), que integra o Ministério de Trabalho e Emprego (MTE), resgataram 36 trabalhadores bolivianos de condições análogas à escravidão em oficinas de costura na cidade de São Paulo.

Eles cumpriam jornadas que chegavam a mais de 14 horas por dia, sem registro em carteira, e viviam em alojamentos precários, com presença de ratos e instalações inseguras, segundo auditores-fiscais.

As ações, que ocorreram entre os dias 6 e 17 de outubro, também contaram com o apoio da Defensoria Pública da União (DPU) e da Polícia Federal (PF).

De acordo com os registros de fiscalização, 23 trabalhadores foram encontrados em duas oficinas de costura na Zona Leste da capital. Em uma segunda diligência, outros 13 trabalhadores foram resgatados de uma oficina que também servia como alojamento, em São Paulo, totalizando 36 pessoas em situação de exploração.

No primeiro caso, segundo os fiscais, as pessoas encontradas viviam e trabalhavam no mesmo local, em ambientes sem as condições básicas de higiene e segurança. Os quartos eram pequenos, com pouca ventilação e iluminação natural, e a maioria não possuía armários.

As instalações sanitárias, conforme os auditores, apresentavam condições precárias de limpeza e não havia separação entre sexos. Também foi constatada a inexistência de extintores de incêndio e a presença de instalações elétricas desprotegidas, com fios desencapados e ligações improvisadas para acionar as máquinas de costura.

De acordo com os trabalhadores, a jornada diária começava às 7h da manhã e se estendia até 21h30, podendo chegar a 22h30 ou 23h30 em dias de maior demanda.

As pausas eram curtas: cerca de meia hora para o café da manhã, outra meia hora à tarde, uma hora para o almoço e mais meia hora para o jantar — o que, segundo a fiscalização, resultava em jornadas de até 14h30 diárias, de segunda a sexta-feira, e mais cinco horas aos sábados.

Os fiscais apontaram que nenhuma hora extra era remunerada e que não havia vínculo formal de emprego. Alguns trabalhadores informaram não possuir documentos brasileiros, como o CPF.

Já na segunda diligência — realizada no dia 16 de outubro e na qual foram resgatados 13 trabalhadores bolivianos —, os dormitórios ocupavam o térreo e o quarto andar, enquanto os andares intermediários abrigavam a produção.

Nesse caso, dizem os auditores, os quartos eram pequenos e sem janelas, e os pertences pessoais estavam espalhados de forma desorganizada.

Ainda segundo a equipe de fiscalização, foram identificadas fezes de ratos em cômodos e corredores. Além disso, alimentos — como batatas e batatas-doces — estavam armazenados diretamente no chão.

O local de preparo das refeições apresentava risco de incêndio, segundo os fiscais. Isso porque além de o botijão de gás estar localizado dentro da cozinha, que não tinha janelas, o extintor de incêndio estava vencido e o depósito de lixo, sem tampa, ficava ao lado do fogão.

Nesta segunda diligência, os fiscais identificaram que os trabalhadores também não tinham vínculo formal de emprego.

A empresa responsável alegou que apenas comprava as peças produzidas, mas os fiscais identificaram que toda a produção era comercializada exclusivamente por ela e que a suposta terceirização não estava dentro dos parâmetros legais.

Na diligência do dia 16 de outubro, as verbas rescisórias apuradas somaram R$ 79.172,18. Nos dois primeiros resgates, realizados em oficinas da Zona Leste da capital, foram apuradas verbas rescisórias de R$ 138.606,66 em uma oficina e R$ 187.966,09 na outra.

Todas as vítimas foram encaminhadas à rede de proteção social, com acesso ao seguro-desemprego para resgatados, acolhimento emergencial e encaminhamento para autorização de residência permanente no país, conforme a legislação vigente.

Casos de trabalho análogo à escravidão podem ser denunciados de forma anônima e segura pelo Sistema Ipê ou pelo Disque 100, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana, inclusive com atendimento por WhatsApp, Telegram e videochamada em Libras.

G1
https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/10/21/mte-resgata-trabalhadores-em-situacao-analoga-a-escravidao.ghtml

Epistemologias do Sul e o trabalho decente como categoria emancipatória

Caseiro não consegue se beneficiar de convenção coletiva

Por maioria, a Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho decidiu que um empregador doméstico de São Paulo (SP) não terá de pagar diferenças salariais a um caseiro com base em uma convenção coletiva de trabalho. Segundo o colegiado, não se pode reconhecer os empregadores domésticos como uma categoria econômica.

Caseiro disse que empregador descumpria convenção coletiva

O empregado foi contratado em fevereiro de 2003 para trabalhar num sítio de veraneio em Piracaia (SP). Ele entrou com a ação em abril de 2021, com pedido de rescisão indireta do contrato de trabalho (justa causa do empregador) e anexou uma convenção coletiva de trabalho firmada em 2016 entre o Sindicato dos Empregados Domésticos de Campinas e Região e o Sindicato dos Empregadores Domésticos. Segundo ele, diversas cláusulas eram descumpridas, como as que tratavam de horas extras, seguro de vida e trabalho aos domingos.

Empregador disse que nunca participou de sindicato

Em sua defesa, o empregador disse que a convenção era uma norma unilateral, já que não houve negociação coletiva para sua criação. Lembrou, ainda, que é pessoa física e não participa de nenhum sindicato.

O juízo de primeiro grau rejeitou a aplicação da convenção coletiva, mas a sentença foi reformada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas/SP), que deferiu ao caseiro diferenças salariais do piso normativo da categoria, que não teria sido observado pelo empregador. Para o TRT, o conceito de categoria econômica sofreu modificações após a PEC das Domésticas (Emenda Constitucional 72/2013), que equiparou os direitos trabalhistas de trabalhadores domésticos aos dos demais.

Empregador doméstico não é categoria econômica

No TST, o voto do relator, ministro Sérgio Pinto Martins, foi para afastar a aplicação da convenção coletiva. O ministro observou que o empregador doméstico não é considerado categoria econômica, pois não visa ao lucro nem explora atividade econômica. Para corroborar esse entendimento, o relator assinalou que a classe de empregados domésticos não faz greve nem pode ajuizar dissídios coletivos para obter novas condições de trabalho.

Por fim, o relator lembrou que a formalização de uma convenção coletiva está condicionada à bipolaridade de partes, ou seja, é necessário que haja uma categoria profissional e uma categoria econômica. “Com a inexistência de qualquer uma dessas partes, é inviável a negociação e a formalização desses instrumentos normativos”, concluiu.

Ficou vencido o desembargador convocado José Pedro de Camargo. A decisão já transitou em julgado.

(Ricardo Reis/CF)

O TST tem oito Turmas, que julgam principalmente recursos de revista, agravos de instrumento e agravos contra decisões individuais de relatores. Das decisões das Turmas, pode caber recurso à Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1). Acompanhe o andamento do processo neste link:

Processo: RR-11495-35.2021.5.15.0140