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Trabalho doméstico e os germes da escravidão. Entrevista é de Silvana Olinda Mendes

Trabalho doméstico e os germes da escravidão. Entrevista é de Silvana Olinda Mendes

Casos de domésticas escravizadas subiram em 32%, entre 2021 e 2023. Nordeste e Sudeste lideram índices. Perfil das vítimas não choca: 86% são mulheres; 70% negras. Crime se soma ao racismo e estupro. Conheça a história de Silvana, resgatada após 35 anos.

Os casos de escravização de trabalhadoras domésticas aumentaram 32% entre 2021 e 2023, de acordo com dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego em 2024. Segundo Lívia Miraglia, Maria Carolina Oliveira e Carlos Henrique Haddad, 86% das vítimas do trabalho doméstico análogo à escravidão são mulheres e quase 70% delas são negras. O estudo que elas coordenaram, O que escondem as casas grandes no século XXI, indica que, em média, os casos duram 27 anos — um período bem mais extenso quando comparado com os outros tipos de trabalho forçado.

Outro dado apontado na publicação é que a maior parte dos resgates de trabalhadoras domésticas nessas condições aconteceu na região Nordeste do Brasil (33%); seguida pelo Sudeste, com 32%. A região Norte contabiliza 7% dos resgates e o Centro-Oeste teve 4% dos casos.

O trabalho doméstico análogo à escravidão é um crime previsto no artigo 149 do Código Penal, que o tipifica como trabalho forçado, condições degradantes de trabalho, entre outras situações. Esses casos costumam ser um conglomerado de violação de direitos que envolvem estupro, crimes contra pessoas idosas, sequestro e cárcere privado, além do crime de racismo.

O estado brasileiro passou a documentar os casos de trabalho doméstico análogo à escravidão apenas em 2017, mas sabemos que esse é um problema de longa data no Brasil. Esse tipo de crime é resultado da articulação entre os resquícios da escravidão e a liberdade precária que impõe uma situação de profunda vulnerabilidade para a população negra no presente.

Histórias conhecidas

Quem nunca ouviu a história de uma menina que saiu do contexto familiar e foi morar com uma família desconhecida para ter oportunidade de estudar ou “viver em condições melhores” e nunca mais voltou? Certamente, muitas delas foram submetidas ao trabalho forçado, como foi o caso de Sônia Maria de Jesus, que foi resgatada e devolvida ao cativeiro após os escravizadores Jorge Luiz de Borba e Ana Cristina Gayotto, solicitarem à justiça o reconhecimento da paternidade e da maternidade afetiva”.

Devido à gravidade desse caso, eu passei acompanhar com mais atenção o trabalho doméstico análogo à escravidão. A convite de pessoas comprometidas com essa questão, comecei a me envolver em ações para apoiar as lutas das trabalhadoras domésticas contra esse tipo de prática. Foi assim que eu conheci Silvana Olinda Mendes, uma mulher de 53 anos que foi escravizada em São Paulo, no ano de 1986.

Silvana permaneceu na casa que ela foi escravizada até o ano de 2021 e, agora, está escrevendo a autobiografia dela. Fiz uma entrevista com ela para que mais pessoas pudessem conhecer as suas perspectivas e entender a gravidade do trabalho doméstico análogo à escravidão. A seguir, compartilho uma parte da nossa conversa.

Eis a entrevista.

Silvana, me conte sobre você. Como foi a sua vida antes de ter sido submetida ao trabalho doméstico forçado?

 Eu fui criada numa creche, Baroneza de Limeira, desde pequenininha. Eu fui criada até os meus 11 anos lá. A minha tristeza na creche era porque a minha mãe não ia me visitar. Eu não cheguei a conhecer ela. De resto, pra mim foi tudo de bom.

Depois de muito tempo, eu fui adotada por 3 famílias, só que eu não fiquei muito tempo com aquelas famílias. A freira falava que eles iam achar as minhas irmãs. Eles acharam 2 irmãs minhas: Simone e Soraia. Elas foram me visitar lá na creche. Eu era muito tímida. Na última vez que a Simone foi me visitar, ela foi para me levar pra ir na praia, na casa da patroa que ela trabalhava. Só que, quando eu fui, eles tinham uma caminhonete que era aberta atrás e eles me colocaram na parte de trás da caminhonete junto com as malas nessa viagem. Ai, eu passei o ano novo, tudo e, no dia seguinte, ela me trouxe de volta para a creche.

E a freira falou que tinha que ficar na creche até eu completar 15 anos, só que ela (Simone) me tirou antes de eu completar 15 anos. Aí, foi o momento que ela me levou pra essa casa onde eu trabalhei 35 anos. Cheguei na casa e estava toda a família lá, né? O pai, as crianças, porque as meninas ainda eram adolescentes, tinha um bebezinho que era a Karina e a Beth. A Beth era a mais velha. Era uma família que gritava muito, então eu ficava meio assim.

Quando eu cheguei nessa casa, a Simone — minha irmã do meio — se identificou muito comigo e eu me identifiquei muito com ela. No começo era tudo diferente. Não sei se era por causa das minhas irmãs, no começo, eles me tratavam como filha. E eu fui ganhando a confiança da família. Só que aí, depois, eles começaram: “pega água”, “arruma isso”, “arruma aquilo”. Daí, eu tive que começar a cuidar da Karina que era bebezinha. Então, para cuidar da Karina era eu e a minha irmã Soraia.

Luci era a patroa?

Isso. Aí, depois que as minhas irmãs falaram que elas não queriam ficar lá e que elas queriam ganhar um salário, o patrão queria dar do jeito que ele achava que tinha que dar. Só que a Simone queria me levar e a Luci não deixou, porque elas não tinham um lugar fixo para eu ficar. Ai, eu tive que ficar na casa com a Luci. E a Soraia ainda não tinha ido embora. Ficou eu e a Soraia.

Depois de um bom tempo, eu tinha 14, 15 anos, a Soraia foi embora. Com 11 anos, eles já estavam me pedindo para fazer essas coisas: arrumar as camas pra eu aprender tudo, ajudar na cozinha, ajudar a arrumar a casa… Depois que as minhas irmãs foram embora, eu acabei arcando com os serviços das minhas irmãs, que era limpar a casa, fazer comida, tudo isso aí. Entendeu?

Pra mim era tudo difícil, porque era só eu. E assim… quando eu pensei que eu tinha uma família de verdade, eu não tinha, né? Eu peguei um afeto muito grande porque eu nunca imaginei que eu era uma pessoa escravizada. Eu achava que eu tinha família. Só que, depois, eu comecei a fazer as tarefas mais pesadas. Nós não tínhamos lugar para dormir. A gente dormia com as filhas da patroa, só que a gente dormia no chão. A gente não tinha o nosso quarto.

Vocês dormiam no quarto para cuidar delas?

Sim, também. A gente dormia lá. Depois que elas começaram a ter namorado, eu comecei a dormir na sala. Só que era muito difícil pra mim. Porque foi o momento que o meu patrão começou a abusar de mim.

Abuso sexual?

Isso. Ele abusou muito. Muito mesmo. Então, era assim, pra mim era muito pesado isso daí, porque ele não me deixava em paz um minuto. Ele não deixava eu sair. Nem ele, nem ela. Se eu tivesse que fazer uma compra, eu tinha que fazer com elas. Eu não podia ter contato com ninguém na rua.

E você não recebia salário, Silvana?

Não. Não recebia nada. Assim, as roupas que eles me davam eram as roupas que não serviam mais nas filhas e eles passavam pra mim. Sapato, qualquer coisa assim, eles passavam pra mim.

Uma pergunta, na creche você estudava?

Estudei até a quinta série.

E como você vê as consequências dessa experiência na sua vida?

É uma experiência que machuca a gente. Eu cuidei tanto daquela família, eu acho que dei tudo de mim. Eu cuidava da mãe, das filhas. Pra mim, foi muito difícil. Principalmente, quando eu comecei a ficar doente. No momento que eu mais precisei, nenhuma delas me deu apoio. Eu não podia ir pra lugar nenhum, eles me davam remédio e falavam que eu estava mentindo quando eu reclamava de dor.

Eu operei a hérnia umas duas vezes e ainda estava na casa, acho que foi o momento de mais sofrimento que eu tive. O médico disse que eu precisava ficar de repouso e eu não fiquei de repouso. Cheguei do hospital, a casa estava bagunçada e eles mandaram eu limpar a casa, preparar a comida, porque era só eu lá. Ninguém fazia nada. Eu não tinha mais o contato das minhas irmãs. Eu não sabia onde elas estavam e foi o momento que me doeu mais. Porque, vamos dizer assim, o trabalho escravo vem da cor, né? E eles me colocaram apelidos que eu não sabia, mas a minha irmã falava que eles estavam me xingando de gorila… macaco. Eu não aceitava tudo isso aí.

Depois foi vindo as crianças da casa, a minha patroa foi adoecendo e, mesmo assim, ficava num serviço que eu não descansava. Eram 24 horas trabalhando. Como eu dormia na sala, eu tinha que esperar eles saírem da sala para poder descansar, mas às 8h, eu tinha que estar de pé. Então, no trabalho escravo, eles não têm noção. Você ficar presa na casa o tempo todo, quando eu ia viajar com eles, era só para trabalhar. Quando ia pra praia, eu ia para ficar dentro do apartamento, preparar as coisas todas para eles.

Depois que a mãe das meninas faleceu, eu achei que eu ia ficar mais tranquila, mas eu passei a ser mais maltratada ainda.

Quando eu caí da escada, eles não me ajudaram em nada. Eu trabalhei muito e fiquei com trombose nas duas pernas, subindo e descendo escada. Eu não queria que ninguém passasse o que eu passei.

O número de casos de trabalho doméstico análogo à escravidão tem crescido consideravelmente no país. Na sua visão, o que faz com que casos como o seu ainda existam?

Eu acho que as pessoas devem ser fortes e denunciar que estão sendo escravizadas. Só que, pela situação que o Brasil vive e pela situação que a gente vive, a gente tem medo. Eu não denunciava, porque eu não tinha nem telefone, eu não podia sair de casa. Eu estava no hospital e tinha muito medo de denunciar. Porque eu achei que eles viriam atrás de mim pra falar que eu era a errada. Eles me culparam de tudo, como se eu tivesse culpa de ter trabalhado lá e ter aceitado tudo o que passei. Eu aceitei, porque eu não tinha ninguém. Eu saí da creche e fui direto para aquela casa, eu não conhecia nada de São Paulo.

Agora eu estou estudando, e fiz uma entrevista na escola e tinha muitas mulheres que estavam passando pela mesma situação que eu. Aí, eu falei: vocês têm que denunciar. Mas, tem muitas que são analfabetas e não sabem como fazer isso. São pessoas que sofreram bastante. Agora, estão começando a ir pra escola e ver o que é uma liberdade depois de tudo que passaram.

Quais são as mudanças que você acredita que precisam ser feitas para que as trabalhadoras domésticas sejam respeitadas e tenham os direitos garantidos?

Em primeiro lugar, os patrões precisam ter respeito pelas pessoas que vão limpar as casas deles. Elas precisam poder sair, poder passear. Fazer os seus deveres e ir embora. Mas, eu acho que tem gente que mora na casa em que trabalham, porque não tem lugar pra ficar e é onde os patrões acabam abusando. Eu acho que todas as empregadas domésticas têm o direito de liberdade, de estar recebendo o seu dinheirinho.

Faz cerca de quatro anos que você saiu das condições de trabalho análogo à escravidão. Como está a sua vida hoje e quais foram os principais desafios que você enfrentou após o resgate?

Pra mim foi muito difícil. Eu me sentia muito sozinha. Eu não sei se é porque eles mexeram tanto com a minha cabeça, mas eu achava que eu ainda tinha que ficar com aquela família. Então, eu não aceitava de jeito nenhum. Só que, agora, eu vendo o meu lado, eu me saí muito bem. Conquistar o meu espaço, conhecer o resto dos meus irmãos que eu não conhecia. A coisa boa que aconteceu comigo foi eu ter conversado com a médica no hospital e eu ter me libertado disso aí. Eu consegui uma coisa que eu achava que eu não ia conseguir, que é, aos poucos, caminhar sem a bengala. Eu estou conquistando coisas que eu nunca imaginei… Assistir peça de teatro (que eu gostei muito), ir no parque Ibirapuera. Ainda tem várias coisas que eu quero e vou conseguir.

Você está escrevendo a sua autobiografia. O que te motivou a querer escrever a sua história e qual é a contribuição dela?

Eu acho que a minha história pode contribuir muito. Eu sempre sonhei em escrever um livro. Eu lia muitos livros. Eu tinha os almanaques do Paulo Coelho e eles estragaram todos os meus livros. E os da Zíbia Gasparetto também. Como eu gostava muito de ler esses livros, eu tive uma inspiração e falei: um dia, eu quero ser escritora que nem eles. E esses dias, enquanto eu estava pegando uber, eu ouvia cada história, então pensei assim: se eu começar a contar a história de cada uber que eu pego, vai virar um livro maravilhoso. O meu sonho é escrever contos românticos também, porque eu sou muito romântica.

Para denunciar qualquer caso de escravização de trabalhadoras domésticas, procure o Ministério Público do Trabalho da sua região, acesse o Sistema Ipê e acione o Disque 100.

IHU – UNISINOS

https://www.ihu.unisinos.br/657181-trabalho-domestico-e-os-germes-da-escravidao-entrevista-e-de-silvana-olinda-mendes

Trabalho doméstico e os germes da escravidão. Entrevista é de Silvana Olinda Mendes

Governo notificará mais de 80 mil patrões sobre atraso no pagamento do FGTS de trabalhadoras domésticas

Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) informou que enviará notificações a mais de 80 mil empregadores por conta de indícios de débitos no recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) de trabalhadoras domésticas.

💰O montante devido ao FGTS ultrapassa R$ 375 milhões.

Segundo o governo, os avisos começarão a ser enviados a partir da próxima quarta-feira (17) por meio do Domicílio Eletrônico Trabalhista (DET).

“As notificações foram elaboradas a partir do cruzamento de dados do eSocial com as guias registradas e pagas à Caixa Econômica Federal, que apontam indícios de débitos no recolhimento do FGTS”, informou o Ministério do Trabalho.

As notificações fazem parte de uma ação nacional voltada à regularização do FGTS de trabalhadoras e trabalhadores domésticos.

▶️De acordo com o Ministério do Trabalho, a iniciativa terá um “caráter orientativo neste primeiro momento”.

“O objetivo é alertar os empregadores sobre possíveis irregularidades no cumprimento da legislação trabalhista e estimular a regularização voluntária até 31 de outubro de 2025. Encerrado o prazo, os empregadores que não regularizarem sua situação poderão ter os processos encaminhados para notificação formal e levantamento oficial dos débitos”, explicou o governo.

Veja os números

Segundo o Ministério do Trabalho:

  • No total, 80.506 empregadores estão registrados no DET, responsáveis por 154.063 postos de trabalho doméstico em todo o país.
  • O montante devido ao FGTS ultrapassa R$ 375 milhões, “o que evidencia não apenas a dimensão dos vínculos empregatícios no setor, mas também a relevância da regularização e do cumprimento das obrigações trabalhistas junto a esses profissionais”.
  • São Paulo lidera em números absolutos, com 26.588 empregadores, 53.072 trabalhadores e uma dívida de R$ 135 milhões.
  • Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia também apresentam valores expressivos, refletindo sua concentração populacional e econômica.
  • Já estados como Roraima, Amapá e Acre registram os menores volumes, com débitos inferiores a R$ 1 milhão.

Perfil dos trabalhadores domésticos e principais problemas

Em dezembro de 2024, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de trabalhadores domésticos atingiu 6 milhões.

A Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) apontou, em abril deste ano, que ainda persistem desafios significativos para a categoria, como a elevada taxa de informalidade, a precarização das condições de trabalho, a falta de informação e a desvalorização da profissão.

Cerca de 90% dos trabalhadores domésticos são mulheres.

  • Os dados oficiais mostram que o salário médio do empregado doméstico no país foi de R$ 1.189 em 2024, abaixo do salário mínimo no período — que estava em R$ 1.412.
  • De acordo com o Instituto Doméstica Legal, a informalidade continua sendo uma realidade para cerca de 70% das trabalhadoras domésticas, privando-as de direitos básicos.
  • Sem carteira assinada, as trabalhadoras domésticas não têm acesso ao FGTS, seguro desemprego, férias e outros direitos garantidos por lei.

A Fenatrad informou que, entre as demandas da categoria, estão:

  • medidas de combate ao trabalho análogo à escravidão;
  • campanhas de valorização do trabalho doméstico;
  • participação das trabalhadoras no Plano Nacional do Cuidados;
  • fortalecimento dos programas de formação;
  • medidas para cumprir as leis trabalhistas para as profissionais.

A entidade reforçou a importância de campanhas de conscientização e de informação sobre o registro CLT da trabalhadora doméstica.

G1

https://g1.globo.com/economia/noticia/2025/09/15/governo-notificara-mais-de-80-mil-patroes-sobre-atraso-no-pagamento-do-fgts-de-trabalhadoras-domesticas.ghtml

Trabalho doméstico e os germes da escravidão. Entrevista é de Silvana Olinda Mendes

Condenação de 27 anos torna Bolsonaro inelegível até 2060

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pode ficar fora da disputa eleitoral pelos próximos 35 anos. A condenação de Jair Bolsonaro (PL) pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta-feira (11), não apenas marca um divisor de águas na trajetória pessoal do ex-presidente, mas também redesenha o futuro político da direita no Brasil. Ao ser sentenciado a 27 anos e três meses de prisão por crimes relacionados à tentativa de golpe de Estado, Bolsonaro carrega agora uma inelegibilidade que, pela regra atual da Lei da Ficha Limpa, se estenderá até 2060.

Mais do que a pena de prisão, o impacto político é profundo. A decisão judicial retira de cena o líder que estruturou, desde 2018, um campo conservador mobilizado em torno de sua figura e de seu estilo de confronto com as instituições.

Da condenação à inelegibilidade

Pela Lei da Ficha Limpa, a inelegibilidade de oito anos começa a contar somente após o cumprimento da pena, acrescentando oito anos ao período. Dessa forma, Bolsonaro, hoje com 70 anos, estaria impedido de disputar eleições até 2060, quando teria 105 anos de idade — uma impossibilidade prática.

Isso se soma à inelegibilidade já imposta pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), válida até 2030, pela reunião com embaixadores em que atacou o sistema eletrônico de votação. Agora, os obstáculos jurídicos não apenas se acumulam, mas se tornam praticamente intransponíveis.

A disputa sobre a Lei da Ficha Limpa

Há, porém, variáveis em aberto. Na semana passada, o Senado aprovou o PLP 192/2023, que altera o marco da inelegibilidade. Pela nova regra, o prazo de oito anos passaria a contar a partir da data da condenação em colegiado, e não mais após o cumprimento da pena. Caso Lula sancione a nova lei, Bolsonaro poderia voltar a ter direitos políticos em 2033, com 78 anos.

Essa alteração, embora geral e aplicável a todos os casos, é lida nos bastidores como uma forma de reabrir a porta do jogo para o ex-presidente. O Planalto, no entanto, avalia o desgaste político de sancionar uma medida que beneficiaria diretamente seu principal adversário.

O discurso da anistia

Apesar da possibilidade de mudança na lei, aliados do ex-presidente já falam em buscar uma saída política mais direta: uma anistia aprovada pelo Congresso. Deputados da base bolsonarista devem iniciar, na próxima semana, articulações para pressionar o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), a pautar uma proposta de perdão coletivo aos envolvidos na trama golpista.

Essa seria a única via capaz de reabilitar o ex-presidente mais rapidamente. O problema é o custo político: anistiar um condenado por tentativa de golpe de Estado significaria tensionar ainda mais a relação com o STF e aprofundar a percepção de impunidade em casos de ataque à democracia.

Se o Congresso aprovar uma anistia ampla para os envolvidos na trama golpista — e essa lei abranger Jair Bolsonaro — os efeitos da condenação no STF (27 anos e 3 meses de prisão, com inelegibilidade até 2060) desapareceriam imediatamente.

Nesse cenário, Bolsonaro ficaria apenas com a condenação já existente no TSE (inelegibilidade até 2030). Ou seja, ele poderia disputar eleições novamente a partir de 2030 (quando completará 75 anos).

Em resumo: a anistia funciona como um “atalho jurídico”, apagando os efeitos da pena criminal, mas não teria impacto sobre a condenação eleitoral do TSE — a menos que o Congresso também aprovasse uma anistia eleitoral específica, algo ainda mais improvável juridicamente.

A direita sem Bolsonaro

Com Bolsonaro afastado do horizonte eleitoral, o bolsonarismo enfrenta um dilema: como manter sua força política sem o líder centralizador. A eventual ascensão de figuras como Tarcísio de Freitas (Republicanos), Michelle Bolsonaro ou até outsiders que busquem herdar a base conservadora dependerá de como o campo da direita se reorganizará nos próximos anos.

O vácuo deixado pelo ex-presidente pode abrir espaço para disputas internas e fragmentação, mas também para uma tentativa de renovação da pauta conservadora em moldes menos personalistas.

Com duas inelegibilidades acumuladas, Bolsonaro vive seu momento de maior fragilidade política desde 2018. Entre depender de uma eventual mudança na Lei da Ficha Limpa ou de uma anistia no Congresso, o ex-presidente fica à mercê de decisões institucionais que podem consolidar ou encurtar seu afastamento da arena eleitoral.

A inelegibilidade até 2060 não apenas encerra, na prática, as ambições eleitorais de Jair Bolsonaro: ela também obriga a direita brasileira a se repensar. Entre a aposta em mudanças legislativas, o risco de desgaste com uma eventual anistia e a busca por novas lideranças, o campo conservador entra em um período de transição turbulento.

Seja qual for o desfecho, o episódio confirma que os efeitos da tentativa de golpe de 2022 continuarão reverberando por muito tempo na política nacional.

VERMELHO

https://vermelho.org.br/2025/09/13/condenacao-a-27-anos-de-prisao-torna-bolsonaro-inelegivel-ate-2060/

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Senadores propõem redução gradativa da jornada para 36 horas semanais

Parlamentares, representantes dos trabalhadores e de empresários debateram nesta terça-feira (2), na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, a proposta de emenda à Constituição (PEC 148) que reduz gradativamente de 44 para 36 horas semanais a jornada de trabalho no Brasil.

O texto da proposta, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), tramita na comissão com o parecer favorável do senador Rogério Carvalho (PT-SE).

Paim disse que há unanimidade entre as pessoas que defendem condições decentes de trabalho que não há mais como manter a jornada 6×1.

“No Congresso tem inúmeras propostas. Nós temos que ter unidade para aprovar um único projeto. Não importa o mais antigo, projeto bom é aquele que é aprovado”, defende o senador.

Leia mais: Governo Lula sinaliza maior apoio à redução da jornada de trabalho

Para ele, a intenção é reduzir as jornada de trabalho para 40 horas, até chegar a meta de 36 horas. “[Isso] gerando mais empregos, aumentando a produtividade, com diminuição dos acidentes de trabalho e melhorando a qualidade de vida do trabalhador, que terá mais condições de se preparar para o novo mundo, o mundo da inteligência artificial”, disse.

A proposta é que, no primeiro ano, a jornada passaria para 40 horas, chegando a 36 horas no período de cinco anos.

“Quando foi para abolir a escravidão, diziam que o país ia acabar. Quando reduziram uma jornada de 48 para 44, disseram que a gente ia quebrar as empresas. Agora, o argumento continua o mesmo e ninguém leva em consideração todas as transformações que o mundo está passando”, justifica Rogério Carvalho.

Para ele, a incorporação da inteligência artificial e de novas tecnologias aumenta a produtividade, justificando a redução da jornada. Carvalho criticou o argumento de que reduções de jornada podem ser decididas a partir de negociações entre trabalhadores e patrões.

Por meio de um trabalho da equipe técnica das suas assessorias, os senadores apresentaram no encontro os potenciais impactos positivos da medida na economia e na saúde.

Confira os pontos:

 Emprego: a redução da jornada para 40 horas poderá gerar até 3,6 milhões de novos postos, enquanto a redução para 36 horas elevaria o número para 8,8 milhões.

 Saúde: a diminuição da carga horária pode reduzir gastos previdenciários e de saúde, já que o excesso de trabalho foi responsável por 209 mil afastamentos por transtornos mentais em 2022.

Igualdade de Gênero: a medida também beneficiaria as mulheres, que, ao somar trabalho remunerado e doméstico, chegam a ter uma jornada de até 67 horas semanais.

DM TEM DEBATE

https://www.dmtemdebate.com.br/senadores-propoem-reducao-gradativa-da-jornada-para-36-horas-semanais/

Trabalho doméstico e os germes da escravidão. Entrevista é de Silvana Olinda Mendes

Capitalismo de plataforma: trabalhadores recebem centavos para treinar inteligência artificial

Ganhar centavos para realizar tarefas repetitivas, e muitas vezes incompreensíveis, é a realidade de milhares de trabalhadores brasileiros ligados ao chamado microtrabalho. Plataformas digitais bilionárias contratam pessoas para classificar imagens, transcrever áudios curtos ou moderar conteúdos. A denúncia é do psicólogo e professor da Universidade Estadual de Maringá, Matheus Viana Braz, em entrevista ao BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato.

“Em 2020, nós mapeamos mais de 54 plataformas em operação no Brasil. Hoje, os estudos que temos feito mostram que o país se tornou um grande conservatório dessa força de trabalho precária, voltada sobretudo à produção de inteligência artificial”, afirma. Segundo ele, cerca de 80% do tempo de um projeto de machine learning (aprendizado de máquina) é destinado a essas tarefas invisíveis, realizadas longe dos holofotes e sem direitos trabalhistas.

O professor relata casos emblemáticos, como o de uma trabalhadora brasileira contratada para fotografar fezes de cachorro em casa, material usado para treinar robôs aspiradores a identificar sujeiras. Ela tirou 250 fotos em dois dias e recebeu menos de R$ 0,15 por imagem. Outro projeto pedia vídeos de crianças dormindo ou brincando, sem que os trabalhadores soubessem qual empresa utilizaria esse material.

“Essas tarefas são chamadas de ‘estranhas’ ou ‘confusas’ pelos próprios trabalhadores. Eles não sabem para quem estão trabalhando, nem qual é a finalidade do que fazem”, revela Braz. “O que vemos hoje é um novo estágio do capitalismo, onde empresas multibilionárias lucram a partir de uma exploração selvagem, invisível e sem garantias mínimas de direitos”, critica.

Impactos na saúde mental

Além da baixa remuneração, que em média não passa de R$ 600 por mês no Brasil, o isolamento e a repetição das tarefas provocam sofrimento, relata o psicólogo. “Há queixas de ansiedade, crises relacionadas à instabilidade financeira e perda de sentido no trabalho. A situação é ainda mais grave entre quem atua na moderação de conteúdos violentos e pornográficos, atividade extremamente nociva à saúde psíquica”, explica.

Pesquisas internacionais já identificaram casos de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e burnout entre moderadores de conteúdo. No Brasil, segundo Braz, estudos estão em andamento para mapear esses impactos.

Falta de proteção e exploração global

Para o pesquisador, a precarização é acentuada porque muitas plataformas não têm sequer representação legal no país, dificultando a responsabilização judicial. Além disso, há uma lógica global de desigualdade. “Para uma mesma tarefa, um trabalhador brasileiro ganha US$ 3,50 por hora, um holandês US$ 12,50 e um filipino US$ 0,80”, compara.

Essa assimetria, observa, revela como o sul global subsidia com mão de obra barata o desenvolvimento tecnológico bilionário do norte do mundo. “Não existe inteligência artificial no mundo que prescinda de trabalho humano precário”, alerta.

Braz defende que a regulação não pode ser apenas nacional. “É preciso criar regras de compliance globais, para que as big techs sejam responsabilizadas por toda a sua cadeia produtiva, assim como já ocorre em setores, como o têxtil”, declara. Ele indica que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Parlamento Europeu já avançam em propostas nessa direção.

DM TEM DEBATE

https://www.dmtemdebate.com.br/capitalismo-de-plataforma-trabalhadores-recebem-centavos-para-treinar-inteligencia-artificial/