por NCSTPR | 23/10/25 | Ultimas Notícias
Um retrato detalhado da trajetória socioeconômica do Brasil entre 1995 e 2024, compilado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), revela um cenário de contrastes marcantes, com significativos avanços em indicadores sociais convivendo com persistentes desafios macroeconômicos e estruturais.
No front social e do mercado de trabalho, a evolução foi notável em alguns aspectos. O salário mínimo experimentou uma consistente valorização real ao longo do período, ampliando seu poder de compra. Esse movimento teve impacto direto na redução da desigualdade, medida pelo Índice de Gini, que apresentou melhora, embora o país continue entre os mais desiguais do mundo. O estoque de empregos formais também cresceu substancialmente, saltando de patamares inferiores a 20 milhões em meados dos anos 90 para mais de 50 milhões em 2023, refletindo uma formalização gradual do mercado de trabalho.
Entretanto, o desemprego permanece como uma variável crítica, com picos alarmantes, como a taxa de 12% registrada em 2016. A insegurança alimentar emergiu como um grave problema, afetando parcela significativa da população em anos recentes, um retrocesso em um aspecto fundamental das condições de vida. A participação dos salários na renda nacional, um termômetro da distribuição entre capital e trabalho, também não apresentou uma trajetória linear de crescimento, indicando que os ganhos de produtividade nem sempre se converteram em melhorias salariais generalizadas.
Na esfera macroeconômica, a performance foi mais volátil. O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu em termos reais, porém com taxas médias anuais que variaram conforme o período, denotando uma expansão interrompida por ciclos de recessão e estagnação. Um dado preocupante é a desindustrialização, evidenciada pela queda contínua da participação da indústria de transformação no PIB, setor estratégico para inovação e geração de empregos de qualidade.
A inflação, após ser controlada nos anos 2000, voltou a apresentar picos em períodos de instabilidade, corroendo o poder de compra das famílias. A taxa de câmbio, por sua vez, depreciou-se fortemente ao longo das décadas, com o real perdendo valor frente ao dólar, o que impacta o custo de importações e exerce pressão sobre os preços internos.
A sustentabilidade das contas públicas e externas apresentou seus próprios desafios. O país fortaleceu sua posição internacional, acumulando robustas reservas em moeda estrangeira, que atingiram valores superiores a US$ 350 bilhões. Contudo, a dívida líquida do setor público manteve-se em níveis elevados como porcentagem do PIB, onerando os cofres públicos com despesas volumosas com juros. A taxa básica de juros (Selic), instrumento de controle inflacionário, flutuou drasticamente, refletindo os ciclos de aperto e afrouxamento monetário.
Em síntese, as últimas três décadas desenham um Brasil que conseguiu progressos inegáveis na esfera social, com melhorias na renda, formalização e redução da desigualdade, ainda que insuficiente. No entanto, a economia patina em questões crônicas como a baixa resiliência do crescimento, a erosão do parque industrial, a vulnerabilidade fiscal e a incapacidade de gerar emprego de forma estável. O estudo do DIEESE sublinha que o desenvolvimento pleno do país permanece um objetivo a ser conquistado, demandando políticas que harmonizem o crescimento econômico sustentável com a contínua melhoria do bem-estar social.
DIAP
https://diap.org.br/index.php/noticias/noticias/92486-brasil-mostra-avancos-sociais-e-revezes-economicos-em-tres-decadas-aponta-estudo-do-dieese
por NCSTPR | 23/10/25 | Ultimas Notícias
Por unanimidade, a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho reafirmou seu entendimento de que o monitoramento da conta corrente de bancários pelo banco empregador não configura violação do direito à privacidade nem quebra de sigilo bancário. Segundo o colegiado, a medida é um dever legal, inerente às funções institucionais dos estabelecimentos financeiros.
Bancária alegou monitoramento e controle
A ação foi apresentada por uma bancária do Bradesco em Floresta Azul (BA). Segundo ela, o banco fiscalizava se o limite do cheque especial era utilizado e monitorava os valores dos cheques emitidos, os depósitos recebidos, a origem de cada um deles e os gastos efetuados por ela com seu cartão de crédito. De acordo com seu relato, as normas internas exigiam que os empregados centralizassem toda a sua movimentação em apenas uma conta na agência em que trabalhassem.
Para a trabalhadora, sua vida pessoal sofreu “verdadeira devassa”, pois o empregador, a qualquer momento, tomava conhecimento de todos os seus gastos em atividades não profissionais, como escola, restaurantes, lojas ou viagens.
O banco, em sua defesa, sustentou que, além de empregada, a bancária era também correntista, e que as informações decorrentes dessa relação nunca foram utilizadas indevidamente. Segundo o Bradesco, os bancos registram todas as movimentações financeiras dos correntistas, e o acesso a essas informações faz parte da própria essência da atividade bancária.
Para o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, a conduta extrapolava o poder diretivo do empregador. Por isso, condenou o banco a pagar indenização de R$ 80 mil. Essa condenação, porém, foi afastada pela Segunda Turma do TST, levando a bancária a apresentar recurso (embargos) à SDI-1.
Monitoramento é exigido por lei para identificar atividades suspeitas
Segundo o relator dos embargos, ministro Alberto Balazeiro, o monitoramento das movimentações financeiras de empregados correntistas é um dever legal imposto às instituições financeiras e previsto em lei. O objetivo é que os bancos tenham mecanismos de controle para identificar atividades suspeitas, como a lavagem de dinheiro.
Balazeiro ressaltou que a jurisprudência já está pacificada no TST no sentido de que o monitoramento pelo banco empregador, para fins de controle legal e institucional, não gera indenização por danos morais.
A decisão, unânime, já transitou em julgado.
(Ricardo Reis/CF)
A Subseção I Especializada em Dissídios Individuais é o órgão revisor das decisões das Turmas e unificador da jurisprudência do TST. Ela julga, principalmente, recursos (embargos) contra decisões em que há divergência entre as Turmas ou entre a Turma e a própria SDI-1. De suas decisões, pode caber recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF). Acompanhe o andamento do processo neste link:
Processo: Ag-E-ED-ARR-1011-22.2013.5.05.0462
TST JUS
https://www.tst.jus.br/en/-/tst-afasta-ilegalidade-em-monitoramento-de-conta-de-bancaria
por NCSTPR | 23/10/25 | Ultimas Notícias
O que se anuncia como a modernidade do trabalho por aplicativos é, na verdade, a legalização de um arcaísmo social, onde a flexibilidade significa a morte lenta de direitos e, literalmente, a morte de trabalhadores.
O artigo é de Ricardo Antunes, professor titular de sociologia na Unicamp, publicado por Jornal da Unicamp, 21-10-2025.
Eis o artigo.
1.
Da fraude da “empregabilidade” ao contorcionismo do “empreendedorismo”, estamos presenciando uma fase de profunda derrelição dos direitos e das condições de trabalho no Brasil.
Podemos recordar o engodo da falta de “empregabilidade” como pretexto para as demissões no passado recente. Quem perdia seu emprego recebia esta justificativa: não havia empregabilidade! Nem o dicionário do mestre Aurélio conhecia esta inusitada palavra, inventada pelo ideário desprezível dos CEOs.
Para eliminar trabalho, era preciso ter uma “explicação”. Esperar que as grandes corporações exibissem coágulos de sinceridade é como imaginar que no deserto do Saara se possa ter gelo o ano inteiro! É por isso que, mesmo quando trabalhadores e trabalhadoras faziam cursos de todo tipo, das especializações às pós-graduações, não tinha jeito: sem “empregabilidade”, uma hora vinha a demissão!
Mas a classe trabalhadora percebeu, algum tempo depois, que seu emprego estava de fato sendo eliminado pelos novos inventos tecnológicos, que são preferencialmente programados para eliminar trabalho vivo. Era preciso, então, “culpar” a classe trabalhadora e responsabilizá-la pelo desemprego, na passagem do taylorismo-fordismo para o toyotismo e sua empresa flexível e enxuta (lean production).
Adentramos, então, uma nova era de financeirização do capital (do arcabouço fiscal que tem a face de calabouço social) impondo a demolição do trabalho regulamentado. Fenômeno global, basta recordar o trabalho contingente e dos jovens que compreendem os cyber-refugiados no Japão, sem esquecer os imigrantes nos Estados Unidos, as maquiladoras no México, o “trabalho atípico” na Itália ou os recibos verdes em Portugal, só para dar alguns exemplos.
No Brasil, vimos esparramarem-se as “falsas” cooperativas, depois a terceirização, inicialmente das atividades-meio e depois das atividades-fim. Todas concebidas, moldadas e calibradas pelo mundo do capital, visando à sistemática corrosão dos direitos do trabalho, que dilapidou ainda mais as condições de trabalho e de remuneração da classe trabalhadora, intensificando os níveis de exploração e de precarização da força de trabalho, da qual cerca de 40% trabalha na informalidade.
2.
Com o neoliberalismo entrelaçado à financeirização, impôs-se também a privatização dos serviços públicos, turbinada pelas novas tecnologias digitais. Os objetivos e os resultados se evidenciam: quanto mais trabalho morto, com algoritmos e inteligência artificial, melhor. Mas como é impossível a eliminação completa do trabalho humano – e este é o calcanhar de Aquiles do capital – urge devastá-lo e depauperá-lo ao limite, eliminando tudo que um dia significou algum direito real.
Para que tal empreitada fosse efetivada, o léxico do capital ganhou uma impulsão frenética: era preciso adulterar profundamente o sentido etimológico original das palavras pelo novo dicionário empresarial: trabalhadores(as) tornaram-se “parceiros(as)”, “colaboradores(as)”; assalariados(as) converteram-se em “empreendedores(as)”.
A cada nova onda corporativa, a enxurrada de adulterações ganhava mais lustre catártico: “líder”, “times”, “metas”, “gestão de pessoas”, “inovação”, “sinergia”, “resiliência”.
Assim, proliferou-se o “novo” palavrório obrigatório da desmedida empresarial. Tudo cuidadosamente concebido para obliterar o assalariamento, como se vê na pejotização e no trabalho uberizado, de modo a recuperar modalidades de trabalhos vigentes nos séculos XVIII e XIX, agora recheadas com sabor algorítmico e digital e, “coincidentemente”, cada vez mais com menos direitos do trabalho.
O resultado é explosivo: mais informalidade, precarização, subemprego, desemprego, trabalho intermitente etc. A terceirização – que no fordismo se restringia à setores como limpeza, segurança, transporte, alimentação –, de exceção, vem se tornando regra (até mesmo no trabalho público) e se amplificando na era da inteligência artificial, “abrindo a porteira” para formas de contratação como PJ, MEI, microtrabalhos, crowdwork, à margem da legislação protetora do trabalho.
3.
Suas consequências são profundas: como as “metas” são interiorizadas cotidianamente na subjetividade da classe trabalhadora (em substituição ao também nefasto cronômetro taylorista), aflora um resultado assustador: aproximadamente 30% da força de trabalho ocupada no Brasil sofre de burnout, doença que se caracteriza “pelo esgotamento físico e mental relacionado ao trabalho” (conforme dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho – ANAMT), o que nos coloca em segundo lugar no ranking mundial desta doença, que tristemente singulariza nosso tempo.
Adoecimentos mentais, assédios, depressões, suicídios, então, não podem ser efetivamente compreendidos se não se considera a realidade do trabalho precarizado no Brasil atual. O exemplo do trabalho em plataformas é também desolador: na cidade de São Paulo, em média, mais de um entregador por aplicativo morre por dia por acidente de trabalho. E a pesquisa recém-divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 17 de outubro de 2025, mostra que a jornada de trabalho realizada pelos trabalhadores de plataformas vem se ampliando: em 2024 ela foi, em média, 5,5 h mais extensa que a dos demais trabalhadores. É essa a dura realidade do trabalho “moderno” no Brasil.
É nesse cipoal que o STF terá que refletir e decidir, seja ao tratar do Tema 1389, sobre a pejotização, seja ao julgar as demandas do IFood e da Uber que pretendem legitimar essa modalidade de trabalho uberizado e sem direitos no Brasil, desconsiderando tanto as decisões do TST, como o princípio protetor do trabalho que consta do artigo 7º da Constituição de 1988.
Como procederá o Supremo? Será seu nome escrito em maiúsculo, como tem feito na luta contra o golpismo em nosso país, ou será escrito em minúsculo, tornando-se diretamente responsável por uma irreversível regressão na legislação protetora do trabalho no Brasil?.
IHU – UNISINOS
https://www.ihu.unisinos.br/658888-empregabilidade-e-empreendedorismo-artigo-de-ricardo-antunes
por NCSTPR | 23/10/25 | Ultimas Notícias
Pensar o trabalho decente na Amazônia a partir das Epistemologias do Sul é, antes de tudo, um gesto de insurgência intelectual. É reconhecer que a produção de conhecimento sobre o trabalho — suas normas, valores e políticas — foi historicamente construída a partir de um centro geopolítico de saber, que impôs à periferia mundial não apenas formas de exploração econômica, mas também formas de pensar [1].
As Epistemologias do Sul, tal como formuladas por Boaventura de Sousa Santos, propõem uma alternativa radical a essa lógica: valorizam saberes subalternizados e invisibilizados e reivindicam um diálogo horizontal entre diferentes formas de conhecimento. Trata-se, em essência, de uma convocação à prática de uma sociologia das ausências e de uma sociologia das emergências — isto é, de transformar o que foi silenciado em voz e o que foi negado em possibilidade, restituindo dignidade epistêmica a modos outros de existir e de compreender o trabalho.
Esse horizonte teórico permite deslocar o olhar do Norte global para as experiências, saberes e práticas do Sul — entendido não como mera categoria geográfica, mas como metáfora das zonas de sofrimento, resistência e reinvenção. No campo do trabalho, referido deslocamento implica questionar as racionalidades hegemônicas que definem o que é digno, produtivo ou moderno, e reconhecer a pluralidade de formas de vida e de labor que compõem o universo amazônico [2].
A cultura eurocêntrica, como se sabe, instituiu uma “monocultura do saber científico” [3], que marginalizou epistemologias populares, indígenas, quilombolas, femininas e comunitárias. Por isso mesmo, mostra-se incapaz de abarcar formas de trabalho fundadas na reciprocidade, na solidariedade, na oralidade e na espiritualidade — dimensões vitais em muitas comunidades amazônicas, andinas, africanas e latino-americanas.
Esses modos de trabalhar não se organizam em torno do lucro, mas da vida. São trabalhos que reproduzem o comum, que sustentam a existência coletiva e que, embora desconsiderados pelo sistema capitalista, são essenciais à preservação do tecido social e ambiental da região e, em última instância, à própria possibilidade de futuro.
Trabalho decente: entre paradigma normativo e horizonte emancipatório
O conceito de trabalho decente, formulado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1999, constitui um marco normativo global voltado à promoção de condições mínimas de dignidade, compreendendo o acesso a emprego produtivo, liberdade, equidade e segurança. Trata-se de um paradigma que busca compatibilizar crescimento econômico com justiça social, tendo-se consolidado como eixo estruturante das políticas públicas laborais e de desenvolvimento sustentável.
Contudo, sob a lente das Epistemologias do Sul, exige-se uma reapropriação e ressignificação do conceito. Conforme propõe Boaventura de Sousa Santos, não há justiça social global sem justiça cognitiva global, e, portanto, categorias universais devem ser interrogadas a partir de seus contextos de produção [4].
Na Amazônia, pensar o trabalho decente implica mais do que o cumprimento formal de normas trabalhistas: exige a incorporação de um projeto de justiça social enraizado nos territórios, nas culturas locais e nas relações ecológicas. O que é “decente” para uma comunidade ribeirinha, para um povo indígena, para uma mulher extrativista ou para um jovem atuante no comércio informal não pode ser medido pelos mesmos parâmetros industriais ou urbanos concebidos no Norte global.
Assim, o trabalho decente, quando interpretado à luz das Epistemologias do Sul, deixa de ser apenas um direito a ser assegurado e passa a configurar-se como categoria crítica — capaz de desnaturalizar a colonialidade do trabalho, isto é, o regime de produção e de sentido que submete corpos, saberes e naturezas a uma lógica de extração, exploração e invisibilização [5].
A noção moderna de trabalho que estrutura as relações econômicas e jurídicas contemporâneas nasce no contexto da modernidade europeia, fortemente marcada pela ascensão do capitalismo, do individualismo e da racionalidade instrumental [6].
Mesmo que formulada sob distintas perspectivas — como nas teorias liberais de John Locke e Adam Smith ou na crítica marxiana à alienação do trabalho —, essa concepção compartilha uma matriz epistêmica comum: a do homem europeu como sujeito do trabalho e a do trabalho como atividade produtiva, disciplinada e transformadora da natureza.
A partir dessa racionalidade, o trabalho passou a ser medido, quantificado e hierarquizado segundo critérios de produtividade e eficiência, convertendo o tempo em mercadoria, o corpo em força produtiva e o sujeito em capital humano [7].
Entretanto, enquanto o trabalho europeu se erigia como sinônimo de dignidade e progresso, as formas de trabalho praticadas fora do centro geopolítico do saber — comunitárias, espirituais, simbólicas, de cuidado e reciprocidade — foram sistematicamente invisibilizadas, desqualificadas e exploradas [8].
A colonialidade não apenas subjugou povos, mas também impôs uma epistemologia do trabalho que deslegitimou outras ontologias e modos de produção do comum. Reconstituir o sentido de trabalho decente na Amazônia, portanto, requer o rompimento com a monocultura epistêmica e o reconhecimento de que há múltiplas racionalidades laborais que, embora marginalizadas, são centrais à sustentabilidade da vida e à resistência civilizatória.
Colonialidade do trabalho e resistências na Amazônia
A colonialidade do trabalho consiste na persistência das formas de dominação e exploração engendradas durante o período colonial, agora reconfiguradas sob os discursos da modernização, do desenvolvimento e do progresso. Como observa Aníbal Quijano, a colonialidade constitui a face oculta da modernidade: uma estrutura de poder que articula a produção econômica, a dominação política e a hierarquização epistêmica a partir de um centro eurocêntrico [9].
No campo do trabalho, essa colonialidade se traduz na subalternização das populações periféricas e na imposição de um modelo de trabalho que perpetua desigualdades históricas.
Na Amazônia, suas manifestações são múltiplas e concretas: (1) a persistência do trabalho análogo à escravidão, especialmente nas cadeias produtivas do agronegócio e da extração madeireira; (2) a precarização estrutural do trabalho rural e extrativista, marcada pela informalidade e pela ausência de proteção social; (3) a invisibilidade das mulheres e dos povos tradicionais, cujas formas de trabalho — vinculadas ao cuidado, à coleta e à reprodução da vida — seguem marginalizadas nos indicadores oficiais; e (4) a subordinação dos modos de vida amazônicos a projetos econômicos exógenos, pautados em lógicas extrativistas e desenvolvimentistas.
Não obstante, as resistências também se multiplicam, produzindo alternativas econômicas, políticas e epistêmicas. Em meio à colonialidade persistente, emergem formas de reexistência — cooperativas extrativistas, redes de economia solidária, práticas de autogestão, articulações intercomunitárias e movimentos indígenas e ribeirinhos que redefinem o trabalho como cuidado do território, reciprocidade e pertencimento [10].
Movimentos sociais como o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e a Via Campesina expressam essa potência decolonial ao articular gênero, território e soberania alimentar [11].
Essas práticas são expressões das epistemologias vivas do Sul, pois produzem conhecimento e justiça a partir da experiência.São epistemologias enraizadas no cotidiano e sustentadas por relações de solidariedade, espiritualidade e comunalidade — fundamentos de uma política do comum que, ao reinventar o sentido de trabalho, também reencanta a própria ideia de desenvolvimento.
Papel do Direito e da Justiça do Trabalho
Sob esse prisma, o Direito do Trabalho — e, em particular, a Justiça do Trabalho — é convocado a descolonizar suas próprias categorias analíticas e institucionais. Como observa Santos, a descolonização do saber jurídico demanda romper com o monopólio da ciência moderna e reconhecer a pluralidade de racionalidades normativas existentes nas margens do sistema [12]. Assim, reivindicar o trabalho como categoria emancipatória significa resgatar sua dimensão ética, coletiva e transformadora, em oposição à racionalidade instrumental que o reduz a mero fator de produção.
Essa perspectiva desloca o foco do trabalho como valor econômico para o trabalho como ato de criação e reconhecimento, fundamento ontológico da vida social. Nesse sentido, não basta aplicar o conceito de “trabalho decente” como uma fórmula universal e descontextualizada; é necessário reconhecer a diversidade ontológica do trabalho e a pluralidade de seus sentidos.
Isso implica, concretamente: (1) incorporar saberes locais e comunitários nos processos de mediação, conciliação e inspeção do trabalho, valorizando as formas não estatais de resolução de conflitos; (2) dialogar com experiências de autogestão, cooperativismo e economia solidária, que expressam racionalidades econômicas alternativas; (3) reinterpretar o princípio da dignidade da pessoa humana em chave ecossocial e intercultural, reconhecendo o entrelaçamento entre pessoa, território e natureza; e (4) ouvir as vozes amazônicas, historicamente marginalizadas nos espaços de decisão e de formulação normativa.
Impõe-se, por conseguinte, a reinvenção das políticas públicas, da educação e da economia sob outros parâmetros — os da solidariedade, da justiça e do bem viver (sumak kawsay, suma qamaña). Esse giro epistemológico requer: (1) uma educação emancipadora e formação crítica, inspirada na pedagogia da libertação; (2) o fortalecimento das economias comunitárias e solidárias, como expressão da autogestão e da reciprocidade; (3) a redefinição dos conceitos de progresso e desenvolvimento, incorporando dimensões culturais e ambientais e (4) a consolidação de uma ecologia dos saberes como horizonte político para o Direito e para as instituições da Justiça do Trabalho.
Em síntese, pensar o trabalho decente na Amazônia a partir das Epistemologias do Sul é transformar o valor social do trabalho em campo de reconstrução civilizatória, pelo qual o conhecimento jurídico se abre ao diálogo intercultural e à escuta dos territórios.
Trabalho como ponte entre o humano e o mundo
As Epistemologias do Sul constituem um chamado à desobediência epistêmica — um convite a reaprender o mundo a partir dos lugares e sujeitos que a modernidade colonial tentou silenciar.
Na Amazônia, o trabalho transcende sua dimensão produtiva: é expressão de cuidado com a vida, gesto de reciprocidade e afirmação de pertencimento. Trabalhar, nesse contexto, é participar da continuidade da existência, em diálogo com a floresta, os rios e os saberes ancestrais.
Ressignificar o trabalho decente, portanto, significa restituir à categoria jurídica sua força emancipatória — não como instrumento de padronização global, mas como um direito insurgente, que reconhece a pluralidade de modos de vida, de tempos e de economias É politizar o conceito de trabalho, compreendendo-o como um campo de disputa por reconhecimento, redistribuição e emancipação.
Pensar o trabalho decente a partir do Sul — e, mais especificamente, a partir da Amazônia — é propor um novo pacto civilizatório, no qual a dignidade humana não se dissocie da dignidade da Terra. Trata-se de imaginar um horizonte em que o trabalho não seja mera imposição econômica, mas expressão de liberdade e solidariedade — um trabalho que cuida, sustenta e recria o comum.
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Amazônia: território, povos e conflitos. Manaus: UEA, 2018.
DUSSEL, Enrique. 1492: O encobrimento do outro. Petrópolis: Vozes, 1993.
ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
MACHADO, Maria Isabel. Mulheres, território e agroecologia: feminismo e resistência no campo brasileiro. Brasília: MDA, 2020.
OIT. Relatório Global sobre Trabalho Decente. Genebra, 1999 e seguintes.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. CLACSO, 2000.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
_________________. Epistemologies of the South: Justice Against Epistemicide. Routledge, 2014.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2004.
[1] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2010. p. 23–71.
[2] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.
[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
[4] SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
[5] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201–246.
[6] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2004.
[7] FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[8] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.
[9] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201–246.
[10] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.
[11] MACHADO, Maria Isabel. Mulheres, território e agroecologia: feminismo e resistência no campo brasileiro. Brasília: MDA, 2020.
[12] SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
por NCSTPR | 22/10/25 | Ultimas Notícias
Marcos Verlaine*
A audiência pública realizada no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a pejotização revelou o núcleo do impasse deixado pela Reforma Trabalhista de 2017: o conflito entre o direito social e o avanço da lógica de mercado sobre o trabalho humano.
O Supremo está em cena. É o “dono da bola” neste momento. Mas o trabalhador não pode ser a “bola da vez”.
O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, tem diante de si mais que um processo jurídico. A decisão dele tocará o próprio alicerce da cidadania no Brasil: o reconhecimento de que o trabalho não é mera mercadoria — é direito e valor civilizatório.
Da modernização à precarização
Sob o discurso da “modernização” e da “flexibilização”, eufemismo que significa retirar direitos, a pejotização vem se consolidando como forma de redução de custos e evasão de direitos.
Empresas contratam profissionais não mais como empregados, mas como pessoas jurídicas — expediente que elimina 13º, férias, FGTS, contribuição previdenciária e qualquer traço de estabilidade social.
O vínculo de emprego desaparece; o trabalhador é empurrado à condição de “prestador de serviço”.
Na aparência, trata-se de autonomia. Na realidade, é a precarização institucionalizada — o desmonte do Direito do Trabalho construído ao longo de quase 1 século.
Números da desproteção
Os dados mostram o tamanho do abismo. Segundo a Rais (Relação Anual de Informações Sociais) e o IBGE, o País perdeu 12% dos contratos formais nos últimos 5 anos, enquanto as formas “alternativas” de vínculo cresceram rapidamente.
Hoje, mais de 25 milhões de brasileiros sobrevivem em condições precárias: motoristas de aplicativo, entregadores, professores, jornalistas e técnicos. A suposta liberdade da pejotização esconde o fato de que a maioria vive sem direitos, sem segurança social e sem renda estável.
Trabalhador não é empresa
A pejotização transfere o risco do negócio para o trabalhador, e assim rompe o princípio fundamental da relação de trabalho: a subordinação.
Se alguém depende de um único contratante, cumpre ordens, segue metas e horários, não é empresário — é empregado. Quem tem de arcar com o custo do negócio é o dono do negócio. É relação de troca, em que o dono custeia e o trabalhador vende a força de trabalho dele.
A forma jurídica não pode se sobrepor à realidade material do trabalho. Como ensina a clássica doutrina trabalhista, “o contrato não cria o fato social; apenas o reconhece”.
Fenda previdenciária
Além de desproteger o trabalhador, a pejotização corrói o sistema de Seguridade Social, que sustenta a Saúde Pública (SUS)1, a Previdência Social (INSS)2 e a Assistência Social3.
Ao reduzir as contribuições sobre a folha, o modelo compromete a sustentabilidade da Previdência e empurra milhões para a contribuição mínima, individual e irregular, que enfraquece o sistema e vulnera o conceito de Previdência, que é prevenção para os momentos de infortúnios.
O resultado é duplo: menos arrecadação para o Estado e mais insegurança para quem trabalha. O risco da velhice, da doença e do desemprego volta a ser problema privado — exatamente o que o sistema público buscou superar ao longo do século 20.
Ou seja, essa “modernidade” que apregoam é falsa, porque na verdade trata-se de um “grande salto para trás”. É a volta ao passado, que outrora havia sido superado com a materialização dos direitos.
O que está em jogo no Supremo
O julgamento no STF será decisivo. Se a Corte considerar legítima a pejotização ampla, estará legalizando a precarização estrutural do trabalho.
Será um marco de ruptura — o momento em que o Estado, em vez de proteger o trabalhador, passará a sancionar juridicamente a vulnerabilidade desse sujeito, sem direitos, sem perspectivas e sem futuro.
O Brasil corre o risco de redefinir o que é trabalho e quem é trabalhador. A dúvida que paira, ao fim e ao cabo é: queremos um país de cidadãos ou de prestadores de serviço descartáveis?
Sentido social do trabalho
O trabalhador não é empresa. É sujeito de direitos, produtor de riqueza, pilar da economia real. Reduzi-lo a um CNPJ é negar sua humanidade, apagar o valor social do trabalho e corroer a base moral sobre a qual se ergue o Estado Democrático de Direito.
O trabalho organiza o trabalhador como sujeito social, econômico e político. Transformá-lo em empresa tem o objetivo de desmantelá-lo como esse sujeito.
A verdadeira modernização não é a que enfraquece o trabalho, mas a que o valoriza — com direitos, dignidade e reconhecimento.
Em defesa do trabalho como valor civilizatório
O que será do trabalhador se a pejotização for chancelada pelo STF?
A resposta pode nos levar de volta ao século 19, quando o trabalho era apenas mercadoria, e o trabalhador, número sem rosto.
A sociedade brasileira precisa decidir se aceita esse retrocesso. Esse grande salto para trás da vida humana.
Proteger o trabalho é proteger o futuro — é afirmar que a democracia começa, de fato, no reconhecimento de quem trabalha como sujeito de direitos, e não como custo empresarial.
(*) Jornalista, analista político e assessor parlamentar do Diap
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1 Garantida pelo SUS, cujo princípio é a universalidade, ou seja, acesso à saúde pública e gratuita para todos os cidadãos, sem necessidade de contribuição direta.
2 Seguro social para o trabalhador, que garante renda em casos de inatividade, como aposentadoria, doença, acidente, maternidade e morte. Sistema de caráter contributivo, gerenciado pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), em que os benefícios são pagos aos que contribuem e seus dependentes.
3 Direcionada a quem dessa necessitar, independentemente de contribuição. Objetivo é apoiar indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade, risco social ou pessoal. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), por exemplo, é uma das principais ações.
DIAP
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