por NCSTPR | 03/07/25 | Ultimas Notícias
Chefe expôs funcionária a escalas piores, humilhações e tarefas degradantes.
Da Redação
A 7ª turma do TRT da 4ª região confirmou a anulação da dispensa por justa causa aplicada a operadora de caixa de supermercado que sofria assédio sexual do gerente e passou a ser perseguida após recusar as investidas.
A decisão manteve sentença que também reconheceu o direito da trabalhadora a indenizações em R$ 40 mil, com base na existência de elementos probatórios suficientes para comprovar o assédio e sua relação com a dispensa.
Contratada em outubro de 2021 e dispensada em julho de 2023, a funcionária relatou que um gerente da empresa passou a fazer convites pessoais e, ao ser rejeitado, adotou condutas hostis. Segundo ela, era escalada nos piores turnos, impedida de compensar horas extras, obrigada a limpar banheiros – mesmo existindo equipe de limpeza – e ignorada quando questionava o superior. O comportamento continuou durante a gravidez e o período de amamentação, mesmo após a funcionária ter relatado o assédio a outro gerente e à psicóloga da rede.
Uma testemunha confirmou ter presenciado o convite e a mudança de atitude do gerente. Já a testemunha indicada pela empresa admitiu que a trabalhadora era a única caixa obrigada a limpar os sanitários.
TRT-4 anula justa causa e condena supermercado por assédio a funcionária gestante.
O supermercado negou a prática de assédio e sustentou ausência de comprovação. No entanto, a juíza do Trabalho Paula Silva Rovani Weiler, da vara de Lagoa Vermelha/RS, destacou que os depoimentos indicaram que o ambiente era hostil e desrespeitoso, afetando a saúde emocional da trabalhadora.
Segundo a magistrada, “os documentos demonstram que as faltas ao trabalho e as punições aplicadas apenas se iniciaram com o comportamento ilícito do gerente da reclamada, que tornou o ambiente de trabalho insustentável”.
Ela também aplicou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ, 2021), ressaltando que a violência e o assédio geralmente ocorrem de forma clandestina, o que justifica a readequação do ônus da prova e a valorização do depoimento pessoal da vítima e de provas indiciárias.
Ao analisar o recurso do supermercado, a desembargadora Denise Pacheco, relatora do acórdão, entendeu que houve comprovação da relação entre o assédio moral, ocorrido durante a gravidez e o puerpério, e as faltas ao trabalho. Assim, considerou ilegítima a dispensa por justa causa.
A relatora destacou que a testemunha da trabalhadora presenciou a “frustrada investida do gerente” e prestou depoimento “convincente e detalhado” comprovando que, a partir da recusa, houve “notáveis e repugnantes atos de retaliação, perseguição e humilhação”, agravados pelo fato de ocorrerem durante a gestação e amamentação.
Com a confirmação da sentença, a funcionária deverá receber as verbas rescisórias decorrentes da anulação da justa causa, além de indenizações por danos morais de R$ 15 mil pela dispensa indevida e R$ 20 mil pelo assédio. O valor total e provisório da condenação foi fixado em R$ 40 mil, já considerando também as verbas rescisórias.
O tribunal não divulgou o número do processo.
Com informações do TRT-4.
MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/quentes/433700/anulada-justa-causa-de-operadora-que-nao-cedeu-a-cantadas-de-gerente
por NCSTPR | 03/07/25 | Ultimas Notícias
Marcos Roberto Hasse
Breve análise acerca da redução da jornada de servidores públicos com filhos autistas, destacando a importância do Decreto 10.598/2015 e sua base legal na proteção aos direitos do TEA.
O decreto 10.598/15, trouxe uma grande conquista para os servidores públicos do âmbito municipal de Jaraguá do Sul, estabelecendo normas e procedimentos para a redução da carga horária para acompanhamento e tratamento de dependentes portadores de necessidades especiais.
Entre os beneficiados, destacam-se os pais de crianças e adolescentes diagnosticados com TEA – Transtorno do Espectro Autista, que passaram a ter direito ao horário especial de trabalho, sem exigência de compensação de jornada. Desse modo este artigo tem por objetivo analisar a aplicação dessa norma à luz da proteção aos direitos das pessoas com autismo e da garantia do cuidado familiar.
Primeiramente, cumpre esclarecer que o autismo é um problema no desenvolvimento neurológico que prejudica a organização de pensamentos, sentimentos e emoções, sendo definido pela OMS como “um diverso grupo de condições caracterizadas por algum grau de dificuldade na interação social e na comunicação”.
Ainda, o ministério da saúde brasileiro considera o TEA “um distúrbio caracterizado pela alteração das funções do neurodesenvolvimento do indivíduo, interferindo na capacidade de comunicação, linguagem, interação social e comportamento”.
Em razão do Espectro, a lei 12.764/12, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, assegura como um de seus pilares fundamentais o direito ao desenvolvimento pleno e à vida digna. Nesse sentido, o art. 3º da referida norma dispõe expressamente:
São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:
I – a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer;
II – a proteção contra qualquer forma de abuso e exploração;
III – o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo:
a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo;
b) o atendimento multiprofissional;
c) a nutrição adequada e a terapia nutricional;
d) os medicamentos.
A norma equipara a pessoa com TEA – Transtorno do Espectro Autista à pessoa com deficiência para todos os efeitos legais, garantindo o acesso à proteção e aos benefícios destinados a esse grupo. De acordo com a legislação, a criança com TEA tem direito ao pleno desenvolvimento, bem como à atenção integral às suas necessidades de saúde.
No mesmo sentido, a lei 8.069/1990 – ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, também garante o acesso integral às linhas de saúde, para os serviços de promoção, proteção e recuperação.
Art. 11º É assegurado acesso integral às linhas de cuidado voltadas à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, observado o princípio da equidade no acesso a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.
De igual modo, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, estabelece ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, os direitos da criança e do adolescente, entre eles o direito à saúde, à dignidade, ao respeito e à proteção contra toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão.
Art. 227º É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
É amplamente reconhecido que crianças com TEA – Transtorno do Espectro Autista demandam cuidados específicos e diferenciados em relação às demais, sendo imprescindível o acompanhamento contínuo de pais e responsáveis como condição essencial para a promoção de seu desenvolvimento intelectual, emocional e social.
Nesse contexto, merece destaque o disposto no decreto municipal 10.598/15, o qual estabelece à concessão de redução de carga horária a servidores públicos municipais que necessitem acompanhar e prestar cuidados a pessoas com deficiência ou acometidas por doenças graves que resultem em incapacidade. Nos termos do art. 1º do referido decreto, é assegurada a possibilidade de diminuição da jornada de trabalho, conforme os critérios e condições ali estabelecidos.
Ao servidor efetivo e estável que comprovadamente seja pai, mãe, tutor, curador ou responsável pela criação, educação e proteção de pessoa com deficiência, considerada dependente sob o aspecto sócio-educacional e em situação que exija o atendimento direto pelo servidor, será concedida redução da jornada normal de trabalho para 20 (vinte) horas semanais, sem perda de remuneração, enquanto perdurar a situação.
Dessa forma, os servidores públicos que possuem filhos com diagnóstico de TEA se enquadram na previsão do decreto 10.598/15, podendo solicitar jornada especial de trabalho sem a necessidade de compensação de horas. A única exigência é a comprovação da deficiência por laudo médico oficial, acompanhado do pedido formal ao órgão de lotação.
A concessão da redução de carga horária possibilita ao servidor público dedicar maior atenção e cuidado ao dependente com deficiência, promovendo um acompanhamento mais efetivo de seu desenvolvimento. Tal medida contribui para a ampliação da autonomia da pessoa assistida, reduzindo gradualmente sua condição de dependência.
Atualmente, a CLT não possui dispositivos que tratem diretamente da redução da jornada de trabalho, contudo, o TRT da 12ª região adota entendimento favorável à aplicação da analogia com os servidores públicos no que se refere ao tema. Vejamos:
ECT. empregada pública. filho ou dependente com deficiência. transtorno do espectro autista. Redução de jornada sem redução da remuneração. art. 98, §§ 2º e 3º da lei 8.112/1990. aplicabilidade. conforme arts. 8º da CLT e 4º da LINDB, havendo omissão legislativa, é cabível a aplicação da analogia. assim, diante da ausência de norma trabalhista que disponha sobre horário de trabalho especial para empregado que necessite em função de filho ou dependente com deficiência, aplica-se, também, aos empregados celetistas o disposto no art. 98, §§ 2º e 3º da lei 8.112/1990 (TRT da 12ª Região; Processo: 0000525-04.2024.5.12.0059; Data da assinatura: 26/11/2024; Órgão Julgador: Gab. des. Roberto Basilone Leite – 2ª turma).
Portanto, o decreto 10.598/15 representa um avanço significativo na proteção dos direitos das famílias de pessoas com deficiência, especialmente no caso de filhos autistas, não somente do Município de Jaraguá do Sul, mas sim, como espelho para demais cidades e estados. Ao permitir o horário especial de trabalho sem compensação, é reconhecido a importância do papel dos cuidadores e contribui para a inclusão e o bem-estar das pessoas com TEA. É fundamental que os órgãos públicos adotem uma postura sensível e humanizada na análise desses pedidos, promovendo efetividade aos direitos garantidos em lei.
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https://solides.com.br/blog/reducao-de-jornada-para-pais-de-autistas/
https://www.conjur.com.br/2024-dez-18/reducao-de-jornada-para-servidor-publico-com-filho-autista-independe-de-previsao-em-lei-local/
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm
https://bvsms.saude.gov.br/transtorno-do-espectro-autista-tea-autismo/#:~:text=O%20Autismo%20(Transtorno%20do%20Espectro,de%20pensamentos%2C%20sentimentos%20e%20emo%C3%A7%C3%B5es.
https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/abril/tea-saiba-o-que-e-o-transtorno-do-espectro-autista-e-como-o-sus-tem-dado-assistencia-a-pacientes-e-
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Marcos Roberto Hasse
Advogado (OAB/SC 10.623) com 30 anos de experiência, sócio da Hasse Advocacia e Consultoria, com atuação ampla e estratégica em diversas áreas jurídicas.
MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/depeso/433371/jornada-de-trabalho-e-inclusao-um-olhar-sobre-o-decreto-10-598-15
por NCSTPR | 03/07/25 | Ultimas Notícias
Jonathan de Mello Rodrigues Mariano, Emmanuel Sousa de Abreu e Florisvaldo Justino Machado Gonçalves
O Congresso Nacional agiu dentro dos parâmetros do art. 49, inc. V, da Constituição, já que os decretos executivos exorbitavam o poder regulamentar, por desvirtuarem o caráter extrafiscal do IOF
Nos últimos quarenta dias, o presidente da República editou os decretos 12.466, de 2025, 12.467, de 2025, e 12.499, de 2025, para majorar alíquotas do IOF – Imposto sobre Operações Financeiras. A justificativa seria um necessário aumento da arrecadação tributária para alcançar a meta fiscal estabelecida pelo governo.
Tal como o Imposto de Importação, o Imposto de Exportação e o Imposto sobre Produtos Industrializados, o IOF é tributo de natureza extrafiscal, e, justamente por essa razão, excepcionalmente, não estaria sujeito a todas as limitações constitucionais ao poder de tributar.
Após a publicação dos decretos, o Congresso Nacional entendeu que eles exorbitavam o poder regulamentar do chefe do Executivo e editou decreto legislativo para sustar a majoração de alíquotas do IOF.
O Governo Federal anunciou que dispõe de tese jurídica para ingressar com medida judicial perante o STF para derrubar o decreto legislativo. Para o governo, o decreto legislativo 176, de 2025, seria inconstitucional, pois o Congresso Nacional teria agido fora dos parâmetros constitucionais estabelecidos pelo art. 49, inc. V, da CF/88, haja vista que o art. 153, § 1º, da CF/88 confere prerrogativa ao presidente da república para modificar a alíquota do IOF, desde que atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei.
Este artigo lida com a seguinte questão: ao sustar os decretos presidenciais de aumento de alíquotas do IOF, o Congresso Nacional agiu fora de sua atribuição constitucional, prevista no art. 49, inc. V, da CF/88?
Para tanto, analisar-se-á se tributos extrafiscais, como o IOF, podem ser utilizados com fins preponderantemente arrecadatórios, bem como quais são os limites e as condições, estabelecidos pelo ordenamento jurídico, em que o Poder Executivo pode alterar as alíquotas do IOF.
É bom que se diga que o raciocínio e as conclusões destes articulistas não refletem a opinião de quaisquer das instituições às quais estão vinculados, mas revelam apenas a sua concepção acadêmica sobre o tema. Pois bem.
Segundo a doutrina e a jurisprudência, os tributos extrafiscais buscam regular comportamentos sociais, de modo a dissuadir ou estimular determinadas condutas. Por exemplo, quando há redução na oferta interna ou elevação acentuada de preço de determinados produtos, o governo federal pode reduzir as alíquotas do imposto de importação sobre esses itens para incentivar a importação e, com isso, aumentar a oferta e impactar os preços para o consumidor final. Note-se que não se tem um objetivo arrecadatório na medida, mas unicamente regulatório.
Uma vez que os tributos fiscais estão sujeitos a limites adicionais impostos pela Constituição ao poder de tributar, o governante não pode lançar mão de impostos extrafiscais para aumentar arrecadação. Se assim o desejar, deverá se submeter a todos os limites ao poder de tributar, como a sujeição ao princípio da legalidade estrita e ao princípio da anterioridade – tanto a anual, como a nonagesimal -, dentre outros.
A limitação constitucional ao poder de tributar revela-se um dos objetivos do constitucionalismo desde a Magna Carta de 1215, que consagrou que não se pode instituir tributo sem o consentimento dos representantes da sociedade, o que acontece quando há edição de lei em sentido formal.
Os tributos de natureza extrafiscal representam uma excepcionalidade à legalidade estrita, por visarem a atingir precipuamente finalidade regulatória, admitindo-se, em hipóteses específicas e delimitadas pelo próprio Congresso Nacional, certa margem de atuação normativa do Poder Executivo.
O intuito governamental no caso do IOF não foi regulatório, mas preponderantemente aumentar a arrecadação tributária para alcançar a meta fiscal estabelecida pelo próprio governo.
Nesse sentido foram várias as declarações de representantes do Poder Executivo, como, por exemplo, a entrevista coletiva em que o ministro Fernando Haddad afirmou que não tinha problema em corrigir rota após a pressão para revisão da majoração de alíquotas do IOF, “desde que o rumo traçado pelo governo seja mantido – de reforçar o arcabouço fiscal, cumprir as metas para saúde financeira do Brasil”.1
Repare-se que o aumento arrecadatório buscado pelo governo é o motivo preponderante para o aumento das alíquotas do IOF. O caso aqui não chega, nem mesmo, a ser acobertado pelo raciocínio lateral declinado pelo ministro Cristiano Zanin no sentido de que “a Constituição não impõe, como elemento legitimador do imposto em si, sua função extrafiscal”, segundo ele “a classificação dos tributos em extrafiscais ou arrecadatórios se dá pela preponderância da função, não pela exclusividade” (RE 590.186/RS – Tema 104 de repercussão geral).
Independentemente de se concordar, ou não, com a posição do ministro Zanin, o STF ainda não se posicionou definitivamente sobre essa matéria. De todo modo, mesmo se valendo de seu raciocínio, é certo que a motivação da majoração de alíquotas do IOF, de acordo com agentes públicos, foi precipuamente o aumento da arrecadação tributária. Isso evidencia um desvio de finalidade da própria natureza do imposto extrafiscal e, por conseguinte, do próprio desenho constitucional a respeito das regras de limitação ao poder tributar para impostos extrafiscais, como o IOF.
De acordo com o art. 153, § 1º, da Constituição, é facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.
O legislador constituinte estabeleceu que uma lei fixaria as condições e os limites para alteração de alíquotas do IOF. Uma pergunta deve ser feita: qual lei? Lei ordinária ou lei complementar? O art. 146, inc. III, alínea “a”, da CF/88, fixa que normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e suas espécies, seriam reguladas por lei complementar.
Por conta desse dispositivo, o CTN foi recepcionado como lei complementar. O art. 65 do CTN deixa claro que o Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política monetária.
A delimitação imposta pelo CTN é muito clara: as alíquotas do IOF podem ser alteradas para alcançar os objetivos da política monetária. Qual foi o motivo dessa delimitação? A resposta é simples. Política monetária significa a atuação governamental sobre variáveis relacionadas à moeda, com o objetivo de estabilizar os preços, controlar a inflação, estimular o crescimento ou suavizar ciclos econômicos.
O IOF, por atingir diretamente a demanda por crédito com implicações no custo da operação, pode servir para incentivar ou desestimular a população a tomar crédito, especialmente no curto prazo. Com isso, há reflexos nas taxas de inflação a partir do incentivo ou do desincentivo do comportamento humano de tomar crédito e, com isso, no próprio volume monetário na economia, sobretudo considerando o multiplicador bancário.
Existe, portanto, uma razão prática para que o CTN (lei materialmente complementar) tenha delimitado o poder regulamentar do Executivo para aumentar alíquotas do IOF, de modo a se restringir a atender os objetivos da política monetária. Isso é essencial para demonstrar que, na verdade, nem mesmo a própria lei do IOF (lei 8.894, de 1994), poderia ter autorizado o Executivo a alterar alíquotas do IOF para além dos objetivos da política monetária, dado que se trata de lei ordinária.
Em palavras claras: em matéria tributária, o legislador ordinário não pode modificar os limites estabelecidos em LC (CTN) para permitir ao Poder Executivo alterar alíquotas do IOF para atender a política fiscal.
O argumento do governo de que o aumento do IOF visa a aumentar a arrecadação para cumprir a meta prevista no regime fiscal sustentável (LC 200, de 2023) não condiz com a ideia de política monetária, que, como visto, deve ser compreendida como a atuação sobre variáveis relacionadas à moeda – no presente caso, o crédito, com o objetivo de estabilizar preços, inflação, ou até suavizar ciclos econômicos.
Isso evidencia que os decretos executivos, sustados pelo Congresso Nacional, exorbitaram o poder normativo delegado pelo art. 153, § 1º, da CF/88 ao chefe do Poder Executivo, já que não é juridicamente viável alterar alíquotas do IOF para atender a objetivos de política fiscal (intuito preponderantemente arrecadatório), mas apenas e tão-somente para ajustar a política monetária, nos termos do art. 65 do CTN.
Por isso, em resposta à pergunta de se, ao sustar os decretos presidenciais de aumento de alíquotas do IOF, o Congresso Nacional agiu fora de sua atribuição constitucional, prevista no art. 49, inc. V, da CF/88, a afirmativa deve ser negativa, já que o Executivo agiu fora dos limites estabelecidos pela Constituição para afastar as regras de limitação ao poder de tributar.
De todo modo, para deixar claro o motivo por que o STF não deveria intervir no caso, vale responder uma última pergunta: qual é a interpretação constitucional mais adequada ao art. 49, inc. V, da CF/88, sob a óptica da separação de poderes?
O juízo acerca da exorbitância do poder normativo do Poder Executivo cabe exclusivamente ao Congresso Nacional, por expressa previsão constitucional. O uso desse advérbio no caput do art. 49, da CF/88 deixa claro que cabe apenas ao Congresso Nacional o juízo político-jurídico sobre os atos regulamentares do Executivo, sobretudo porque o Poder Executivo não possui função típica legiferante, o que somente é possível de modo excepcional, em casos de relevância e urgência em relação a algumas matérias, por edição de medidas provisórias (função atípica).
Numa sistemática de separação de poderes, o controle judicial do STF sobre decreto legislativo que suste atos normativos do Executivo somente seria cabível quando o ato executivo impugnado tenha sido praticado, para além de qualquer dúvida razoável, no exercício legítimo do poder regulamentar, o que não ocorreu no caso do IOF.
Enfatiza-se que, ainda que houvesse dúvida jurídica se o presidente da república agiu corretamente no caso das alíquotas do IOF, por um imperativo de harmonia entre os Poderes, deve prevalecer o juízo político-jurídico do Congresso Nacional que, por previsão constitucional expressa, detém competência exclusiva para essa análise.
A atuação do Poder Judiciário, portanto, restringe-se à intervenção excepcionalíssima em casos de flagrante desvio de finalidade ou manifesta inconstitucionalidade no próprio exercício da competência do Congresso Nacional, em atenção principalmente ao princípio da separação dos poderes, o que não ocorreu no caso do IOF.
Por tudo isso, entendemos que não há razão jurídico-constitucional para impugnar o decreto legislativo 176, de 2025 – e, muito menos, para o STF declarar a sua inconstitucionalidade -, pois o Congresso Nacional exerceu, de forma legítima e constitucional, a competência prevista no art. 49, inc. V, da CF/88 para sustar decretos executivos que exorbitavam a delegação prevista no art. 153, § 1º, da Constituição.
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1 https://www.youtube.com/watch?v=ryGA_-7rtMI
Jonathan de Mello Rodrigues Mariano
Procurador Federal. Professor de pós-graduação. Mestre em Direito (UERJ e UNIRIO). Especialista em Direito Administrativo Econômico (PUC-Rio). Especialista em Direito Administrativo (UCAM)
Emmanuel Sousa de Abreu
Advogado, Assessor Parlamentar e Professor Universitário. Doutor na área de Finanças e Métodos Quantitativos pela UnB com sanduíche na Foisie Business School (Worcester Polytechnic Institute – WPI).
Florisvaldo Justino Machado Gonçalves
Advogado. Professor universitário. Inspetor Federal do Mercado de Capitais. Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidad de La Matanza, província de Buenos Aires.
MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/depeso/433755/por-que-o-stf-deve-respeitar-o-congresso-por-sustar-o-aumento-do-iof
por NCSTPR | 03/07/25 | Ultimas Notícias
No dia a dia, não são poucas as queixas dos trabalhadores em relação às rotinas extenuantes de trabalho. De outro lado, empregadores alegam que as novas gerações não querem mais trabalhar. As reclamações cotidianas, contudo, revelam uma situação mais complexa: “houve uma degradação nas condições de trabalho nos últimos anos”, diz Mônica Olivar ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “O que percebemos foi uma perda de sentido do trabalho. Hoje, o trabalho é muito voltado para algo burocratizado, organizado através de algoritmos, metas numéricas, objetivos quantitativos, coisas que não fazem muito sentido para os trabalhadores”, pontua na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
As consequências da precarização do trabalho são evidenciadas nas condições de saúde dos trabalhadores. De acordo com a pesquisadora, no ano passado “foram registrados 471.649 casos de afastamentos do trabalho por problemas relacionados à saúde mental”. O número, informa, “praticamente dobrou” em relação a 2023, quando 283 trabalhadores foram afastados pelo mesmo motivo. “O sofrimento mental hoje é enorme, além do assédio, da sobrecarga; é uma verdadeira epidemia o que se vive hoje. Os dados do Ministério da Previdência Social indicam que o burnout tem afetado com mais intensidade a força de trabalho feminina. Em 2024, as mulheres representaram 63,8% dos mais de 471 mil afastamentos registrados no Brasil por transtornos mentais”, menciona.
Se, de um lado, o processo de terceirização e uberização são indicados como exemplos da precarização do trabalho no Brasil, de outro, o emprego formal “não é garantia de que se tenha um trabalho não precário”, sublinha a entrevistada. Mulheres pobres e negras que cumprem a escala 6×1, exemplifica, “sofrem uma opressão que conjuga a opressão de classe, de gênero e racial”. O enfrentamento dessa situação, defende, depende da instituição de uma escala de trabalho 4×3 associada a uma política do cuidado.
Enquanto a proposta de estabelecer uma jornada de trabalho de quatro dias por semana continua paralisada no Congresso, as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, centrais sindicais e movimentos sociais lançaram o Plebiscito Popular. Por um Brasil mais Justo no dia 1º de julho. Entre outras questões, a iniciativa visa ouvir a população sobre o fim da escala 6×1. A votação ocorrerá de 14 a 21 de setembro, com participação aberta, gratuita e voluntária pelo site.

Mônica Olivar (Foto: Radis | Fiocruz)
Mônica Olivar é graduada, mestre e doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Atua no Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH) da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).
Confira a entrevista.
IHU – Você declarou recentemente que a escala 6×1 tem uma “herança do Estado escravocrata”. Pode explicar melhor essa ideia?
Mônica Olivar – O Brasil tem uma industrialização tardia e um passado escravocrata que impactou consideravelmente as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, a qual se diferencia das condições históricas, econômicas e sociais da Europa. A marca histórica de ter mantido um regime escravista por mais de trezentos anos faz das relações sociais capitalistas brasileiras diferentes, mesmo guardando as características essenciais do capitalismo em nível mundial. Ao negro, liberto formalmente dos cativeiros rurais e urbanos, coube à inserção no chamado mundo do trabalho nas funções mais precárias. Um legado de sobrevivência construído pelos africanos e africanas para prover seu sustento, que foi renomeado de camelô, motoboy, bike, ambulante, vendedor, diarista, auxiliar de limpeza, conta própria etc.
A escala 6×1 impede que os trabalhadores e trabalhadoras negros/as tenham tempo para descanso, lazer, convívio familiar e desenvolvimento pessoal, perpetuando um ciclo de desigualdade social. Se traçarmos o perfil de grande parte dessa classe trabalhadora, são homens e mulheres que muitas vezes têm uma história familiar em que o pai e a mãe também estavam inseridos nesses trabalhos com escala extenuante, em funções de baixa remuneração e sem perspectiva de futuro, perpetuando um ciclo de desigualdade social. Então, há uma divisão racial no mundo do trabalho. A despeito de que quando olhamos para a rede de supermercados, farmácias, bares, restaurantes, shoppings, padarias, comércio em geral, verificamos um grande batalhão de trabalhadoras e trabalhadores composto por jovens pardos e pretos.
A escala 6×1 impede que os trabalhadores e trabalhadoras negros/as tenham tempo para descanso, lazer, convívio familiar e desenvolvimento pessoal, perpetuando um ciclo de desigualdade social – Mônica Olivar
Tweet.
IHU – Como a escala de trabalho 6×1 tem afetado particularmente as mulheres?
Mônica Olivar – Nesta sociedade patriarcal, as disparidades entre homens e mulheres são enormes porque para elas reserva-se o trabalho doméstico e o cuidado com a família. Isso ficou evidente durante a pandemia de Covid-19, quando muitas mulheres relatavam trabalhar de madrugada por “não darem conta de tudo em casa”. Com o fechamento de escolas e creches, as trabalhadoras mães se viram com maior carga ainda, evidenciando as desigualdades de gênero no mundo do trabalho.
Diferente dos homens, que podem se dedicar exclusivamente à realização do trabalho remunerado, as mulheres estão submersas a uma tripla jornada, combinando trabalho remunerado em uma escala de trabalho 6×1, tarefas domésticas e cuidado com a família. Essa rotina faz, muitas vezes, as mulheres entrarem em exaustão e, consequentemente, são empurradas do trabalho formal para um informal.
Geralmente, quem trabalha em serviços caracterizados como essenciais não tem direito a descansar nos feriados, domingo, sábado – Mônica Olivar
Tweet.
IHU – Há diferença nos impactos da escala 6×1 entre mulheres trabalhadoras em serviços essenciais (como saúde, limpeza, comércio) e aquelas em outros setores? Como essas desigualdades se manifestam?
Mônica Olivar – Geralmente, quem trabalha em serviços caracterizados como essenciais não tem direito a descansar nos feriados, sábados e domingos. Descansar, compartilhar momentos com a família no Natal, Ano Novo, carnaval? Nem em sonho! Dias das mães? Dias dos pais? Nem pensar! Proteger-se em casa? Também nem pensar, conforme aconteceu durante a pandemia, por exemplo. O comando “fique em casa” foi declarado, mas quem foram as trabalhadoras que, de fato, conseguiram ficar em suas casas? E em que condições? No mais, muitas trabalhadoras tiveram que escolher entre continuar saindo para trabalhar, se expondo ao risco, ou perderem seus empregos e sua fonte de renda e subsistência. Importa lembrar que a primeira morte por Covid-19 no estado do Rio de Janeiro foi de uma mulher negra periférica, trabalhadora doméstica, que não teve o direito de se proteger.
Outra questão importante a ser enfatizada é que, na área da saúde, por exemplo, é comum a escala de trabalho 12×36, ou seja, 12 horas seguidas de trabalho sucedidas de 36 horas de descanso. Esse sistema abre margem para jornadas excessivas e perigosas. Muitas vezes, essa jornada de 12 passa para 14, 16 horas ou mais por dia e, no dia seguinte, essa trabalhadora exausta só pensa em dormir, isso quando consegue.
As mulheres que trabalham em shoppings, muitas vezes, são obrigadas a se deslocarem para as suas casas após a meia-noite – Mônica Olivar
Tweet.
IHU – Que aspectos são pouco contemplados no debate sobre a relação entre mulheres e jornada de trabalho?
Mônica Olivar – Temos um machismo estrutural, uma misoginia presente na sociedade de forma geral, que vê a mulher como uma mercadoria. Isso reverbera no ambiente de trabalho. As mulheres são expostas a violências, todas as formas de violência, seja a violência laboral, seja a violência doméstica patriarcal, a violência de ódio, a violência provocada pelas desigualdades sociais. As mulheres, a todo o tempo, são submetidas ao medo da violência, tanto daquela violência resultante da miséria, do ataque, do assalto, quanto da violência de gênero.
Para quem reside em áreas periféricas, muitas vezes o deslocamento entre o trabalho e a casa ou de casa para o trabalho é um esforço hercúleo, considerando as violências cotidianas a que somos submetidas. Por exemplo, as mulheres que trabalham em shoppings frequentemente são obrigadas a se deslocarem para as suas casas após a meia-noite; lembremos o caso de uma trabalhadora de São Paulo que sofreu violência após sair do shopping onde trabalhava. Ela foi dada como desaparecida pela família e seu corpo somente foi localizado alguns dias depois. Lembro que a mídia chegou a culpar uma pessoa da família por não buscá-la no trajeto do trabalho para a casa, mas ninguém questionou a escala de trabalho imposta pelo shopping, que coloca em risco as trabalhadoras na violência cotidiana de uma grande metrópole. As empresas deveriam ser obrigadas a fornecer transporte para as trabalhadoras ao exigirem que elas se desloquem para suas casas após às 22 horas.
É preciso considerar o tempo de deslocamento e as condições ambientais de trabalho. Possuir um trabalho formal não é garantia de que se tenha um trabalho não precário. A classe trabalhadora vem sofrendo um processo acelerado de precarização das condições de trabalho, com exposições a substâncias químicas, a agentes físicos e biológicos, a cancerígenos, a formas de organização e gestão do trabalho violentas e opressoras (o etarismo, o capacitismo, o sexismo, o racismo), causadoras de adoecimentos e acidentes de trabalho.
IHU – Que relações estabelece entre a jornada 6×1 e o aparecimento de transtornos mentais, sofrimento psíquico e aumento de acidentes de trabalho entre as mulheres?
Mônica Olivar – Há uma relação direta entre jornadas extenuantes e adoecimento físico e psíquico da trabalhadora e do trabalhador. Um conceito importante quando se pretende analisar agravos relacionados ao trabalho são as cargas de trabalho presentes nos ambientes e processos de trabalho, cuja interação com os trabalhadores pode gerar prejuízos à saúde, desde o sofrimento psíquico até doenças psicossomáticas. Neste sentido, podemos encontrar múltiplas manifestações nos corpos dos diversos segmentos de trabalhadoras e trabalhadores, submetidos a uma jornada de trabalho extenuante: doenças osteomusculares – LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos/ Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho), doenças cardiovasculares, distúrbios digestivos, transtornos mentais relacionados ao trabalho, como estresse, esgotamento, alterações no sono, fadiga, ansiedade, pânico e burnout, agravado com a falta de tempo para a vida social, familiar e autocuidado.
As queixas dos trabalhadores sobre esgotamento e frustração corroboram com os dados recentes sobre os transtornos mentais relacionados ao trabalho apresentados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), compilados pelo Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho através do SmartLab. Em 2024, foram registrados 471.649 casos de afastamentos do trabalho por problemas relacionados à saúde mental. Este número representa a soma dos afastamentos atribuídos aos diagnósticos de transtornos ansiosos (41%), episódios depressivos (21%), reações ao estresse grave e transtornos de adaptação (20,5%), transtorno depressivo recorrente (7,46%) e outros. No ano anterior, em 2023 foram 283 mil pessoas afastadas por problemas de saúde mental relacionados ao trabalho, ou seja, o número praticamente dobrou.
O trabalho exaustivo, em pé em uma loja de shopping, sentado no caixa de um supermercado, exposto a benzeno em um posto de combustível até oito horas diárias, seis dias na semana, é sentido no corpo, na mente e na alma. Essa jornada tem relação direta com o sofrimento psíquico e com o adoecimento físico. Quanto mais horas trabalhadas, mais chances de ocorrer acidentes de trabalho devido ao grau de atenção, esforço e fadiga. Profissionais da segurança do trabalho dão ênfase à questão dos equipamentos de proteção individual (EPI), aos riscos físicos, químicos ou biológicos, mas esquecem de que muitos dos acidentes de trabalho advém da fadiga, do sono, da pressão por metas abusivas, do cansaço dessa jornada exaustiva.
Ao longo de 2024, o Brasil registrou mais de 742 mil acidentes de trabalho, sendo os setores econômicos campeões de acidentes: atividade de atendimento hospitalar, 43.644; comércio varejista, hipermercado e supermercado, 17.870; transporte rodoviário de cargas, 14.278; restaurantes, 9.593; abates de suínos e aves, 9.445. Ou seja, são setores cuja escala de trabalho é a 6×1. Entre as profissões sujeitas a jornadas mais longas e a mais acidentes de trabalho no período de 2012 a 2024 estão as de técnico de enfermagem, com 36.532; alimentador de linha de produção, com 31.478; faxineiro, com 20.085; motorista de caminhão, com 12.108; servente de obras, com 11.227; enfermeiro, com 8.687; auxiliar de escritório, com 7.121; vendedor de comércio varejista, com 6.621.
Portanto, a redução da carga horária laboral é importante para reduzir o número de acidentes de trabalho. A ausência de períodos regulares de descanso pode levar a um aumento significativo nos casos de acidentes de trabalho, uma vez que a exaustão reduz a atenção e a capacidade de reação dos trabalhadores.
IHU – Que mudanças na jornada de trabalho atual poderiam ajudar a sanar os problemas de saúde mental entre os trabalhadores?
Mônica Olivar – Houve uma degradação nas condições de trabalho nos últimos anos. O que percebemos foi uma perda de sentido do trabalho. Hoje, o trabalho é muito voltado para algo burocratizado, organizado através de algoritmos, metas numéricas, objetivos quantitativos, coisas que não fazem muito sentido para os trabalhadores. O sofrimento mental hoje é enorme, além do assédio, da sobrecarga; é uma verdadeira epidemia o que se vive atualmente. Os dados do Ministério da Previdência Social indicam que o burnout tem afetado com mais intensidade a força de trabalho feminina. Em 2024, as mulheres representaram 63,8% dos mais de 471 mil afastamentos registrados no Brasil por transtornos mentais.
O trabalhador e a trabalhadora acabam perdendo o controle sobre o tempo da própria vida. Além do tempo gasto no local de trabalho, há o tempo de deslocamento entre a casa e o trabalho, o que faz com que o trabalhador utilize por volta de 12 horas do seu dia ou mais. Além disso, acabam utilizando o tempo fora do trabalho para execução de tarefas, o que foi facilitado pela utilização de celulares e redes sociais, que os leva a permanecer plugados no trabalho o tempo todo.
Nessa escala de trabalho, o malabarismo entre obrigações de trabalho e cuidados torna-se uma complexidade diária cada vez maior. O excesso de carga horária da jornada laboral, a falta de estrutura para o trabalho, a perda de sentido do trabalho, a perda de poder reivindicativo, levam a quadros como fadiga, cansaço, raiva, insegurança, frustração, medo, impotência e tantas outras reações, ocasionando sofrimento psíquico. Nesse cenário é urgente uma escala de trabalho em que possamos viver e não sobreviver, como propõe o movimento Vida Além do Trabalho e a PEC da deputada Erika Hilton, que dispõe sobre a redução da jornada de trabalho para quatro dias por semana no Brasil, sem redução salarial.
A luta pelo fim da escala 6×1 também tem que estar atrelada à política de cuidado – Mônica Olivar
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IHU – Por que as mulheres negras são mais afetadas pela escala 6×1 e que tipo de políticas públicas poderia transformar essa realidade?
Mônica Olivar – As trabalhadoras com uma escala 6×1 são, majoritariamente, mulheres pobres e negras, que sofrem uma opressão que conjuga a opressão de classe, de gênero e racial. Na verdade, essas mulheres têm uma jornada de trabalho 7×1, com a tripla jornada de trabalho já mencionada.
Política de cuidado
A luta antirracista pode contribuir para a reflexão sobre políticas públicas mais ou menos próximas dos ideais de justiça social. A luta pelo fim da escala 6×1 também precisa estar atrelada à política de cuidado. Além da aprovação da escala 4×3, é importante uma política de cuidado que contemple a expansão da cobertura de creches, escola em tempo integral e criação de espaços para que as crianças possam ser cuidadas à noite, caso a mãe precise sair para estudar, trabalhar, participar de reuniões comunitárias, religiosas ou políticas. No caso de idosos e pessoas com deficiência, é preciso ampliar os serviços de atendimento domiciliar para apoiar as atividades básicas e centros para essas pessoas passarem o dia com atividades, como acontece em alguns dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial.
Outra proposta seria criar locais que facilitem o trabalho de cuidado, como cozinhas comunitárias e lavanderias coletivas, como acontece com alguns países da América Latina, liberando o tempo dessas mulheres para que possam ter atividades de autocuidado, descansar, fazer algum curso de formação profissional, assim como promover a corresponsabilização entre homens e mulheres nas famílias. Uma medida relevante nesse sentido seria o aumento da licença paternidade, que hoje é de apenas cinco dias, bem como ampliar a licença maternidade, como propõem alguns projetos de lei.
O dia de descanso se torna um dia para preparar os seis dias de trabalho seguintes – Mônica Olivar
IHU – Como a jornada 6×1 impacta mulheres que, além do trabalho formal, acumulam responsabilidades com o trabalho doméstico e o cuidado com filhos e familiares?
Mônica Olivar – As frases curtas em cartazes dos atos pelo fim da escala 6×1 – tais como: “Vejo mais o meu chefe do que minha família” ou “quero ver a minha filha crescer” – nos oferecem pistas sobre o sofrimento das trabalhadoras. Nas redes sociais há depoimentos de trabalhadoras que denunciam o sofrimento ao sair de suas casas, deixando seus filhos, muitas vezes, aos cuidados de outras mulheres, geralmente a própria mãe, irmã, amiga, vizinha, profissional do cuidado, também sobrecarregadas pelo mundo do trabalho e com o direito de apenas um dia com a família.
Na verdade, o dia de descanso se torna um dia para preparar os seis dias de trabalho seguintes. As chamadas atividades de cuidado, de reprodução da classe trabalhadora, necessárias para sustentar e dar continuidade à vida humana em geral, são realizadas, em maior parte, pela mulher. Caso você tenha crescido numa família de renda mais alta no Brasil, é possível que uma empregada doméstica, também mulher, tenha assumido parte dessas atividades. A desigualdade de gênero se mantém, com as mulheres respondendo pelo grosso das demandas. Nessa situação, as mulheres nunca terão tempo para estudar. É um esforço sobre-humano.
É importante as empresas repensarem suas práticas e deixarem de impor expectativas irreais às mulheres, além de garantir igualdade no acesso a promoções e desenvolvimento profissional – Mônica Olivar
IHU – Que questões poderiam ser consideradas no debate sobre a jornada de trabalho, considerando o fato de que muitas mulheres são mães? Que modelo de jornada de trabalho seria mais adequado para mulheres que têm filhos?
Mônica Olivar – Nesse mundo do trabalho opressor, patriarcal, onde a mulher tem que abraçar o mundo, qualquer jornada de trabalho é difícil. Contudo, estar em uma escala de trabalho onde se tem apenas um dia para viver é desumano. Então o ideal – e que é alcançável – é uma jornada de trabalho 4×3, onde a mulher tenha direito a creches para deixar os seus filhos, espaço para amamentação, licença maternidade ampliada, e uma política de permanência e valorização da mulher.
Então, além da aprovação da escala 4×3, é importante uma política de cuidado. O problema é estrutural e cultural. É importante as empresas repensarem suas práticas e deixarem de impor expectativas irreais às mulheres, além de garantir igualdade no acesso a promoções e desenvolvimento profissional.
Negras e negros entram mais cedo e saem mais tarde no mercado de trabalho. Têm jornadas de trabalho mais longas comparada às dos brancos – Mônica Olivar
IHU – Como a jornada 6×1 interfere no acesso das mulheres ao lazer, à formação continuada e à participação política ou comunitária?
Mônica Olivar – O capital se apropria do nosso tempo, tempo de repouso, tempo de lazer, tempo de convívio familiar, tempo de vida. Nesse regime de trabalho, o estudo, a formação acadêmica e política e a organização comunitária não são permitidos. A frequência na escola ou na universidade sempre estará sujeita às rotações de escala, como no caso dos operadores de caixa, frentistas e balconistas. O esforço para estudar é hercúleo.
Então, o que acontece é a luta de classe do dia a dia, que se expressa de forma desumana. Não estamos falando dos informais, como os camelôs, vendedores ambulantes, trabalhadores plataformizados e uberizados, que até hoje almoçam sentados nas calçadas, não têm banheiro, não têm direito nenhum e trabalham, muitas vezes, em uma jornada de trabalho 7×1. Estamos falando daquelas trabalhadoras formais, com carteira assinada. Na maioria das vezes, essas trabalhadoras não terão tempo para se qualificar e vão ficar no sistema capitalista perverso. Não vão sair dessa roda que aprisiona a vida. Essas trabalhadoras estão no círculo vicioso do mundo do trabalho, que consiste em trabalhar e trabalhar para gerar lucro ao sistema capitalista.
Semana passada assisti a uma audiência pública convocada pelo mandato do vereador Rick Azevedo, liderança que criou o movimento Vida Além do Trabalho, no Rio de Janeiro. Uma trabalhadora da Ocupação Porto Maravilha, uma mulher negra, deu um depoimento emocionante, dizendo que somente agora, aposentada, está conseguindo se alfabetizar no Educação de Jovens e Adultos (EJA) e a se organizar politicamente, pois a escala de trabalho a impedia de exercer seus direitos de cidadania. É importante enfatizar que negras e negros entram mais cedo e saem mais tarde no mercado de trabalho. Têm, proporcionalmente, jornadas de trabalho mais longas comparada às dos brancos. Ocupam as funções de menor qualificação profissional. Desenvolvem as tarefas mais insalubres. Vivenciam situações de maior precariedade no trabalho. Recebem um salário médio mensal que equivale à metade do salário médio dos brancos e são os principais atingidos pelo desemprego. São atingidos pelo mundo do trabalho.
Entre aqueles que têm se posicionado publicamente de forma contrária à redução da jornada estão as Confederações Nacionais do Comércio e da Indústria e parlamentares da direita e extrema-direita – Mônica Olivar
IHU – A que atribui a resistência em alterar a escala 6×1 no país?
Mônica Olivar – Entre aqueles que têm se posicionado publicamente de forma contrária à redução da jornada estão as Confederações Nacionais do Comércio e da Indústria e parlamentares da direita e extrema-direita. O principal argumento é que os empresários brasileiros não teriam como arcar com os custos dessa redução de jornada, tendo que contratar mais.
Outra falácia recorrente dos empresários é de que o custo do trabalhador brasileiro é muito elevado, o que impediria novas contratações para compensar a redução da escala. Esse argumento também foi bastante disseminado durante o auge da pandemia de Covid-19, quando se dizia que setores como farmácias e supermercados iriam fechar por causa da necessidade de distanciamento social. Na verdade, eles tiveram lucro no período e são justamente esses setores que têm um exército de trabalhadores e trabalhadoras na escala 6X1.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Mônica Olivar – Em agosto acontecerá, em Brasília, a 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, e o tema pelo fim da escala 6×1 vem reverberando nos espaços das conferências. É importante articular esse debate com o campo da Saúde do Trabalhador e pensar políticas públicas orientadas à promoção da saúde mental nos ambientes de trabalho, que articulem ações individuais com ações coletivas de proteção, promoção, prevenção, vigilância dos ambientes, além de processos de trabalho e de intervenção sobre o processo de determinação de saúde e de doença no trabalho. É importante ampliar a participação popular na formulação e condução das políticas públicas, articulando a luta pela saúde com as demais lutas populares de corte classista, antirracista, antipatriarcal, anti-lgbtfóbica, anticapacitista.
IHU UNISINOS
https://www.ihu.unisinos.br/653970-degradacao-nas-condicoes-trabalhistas-e-a-perda-de-sentido-do-trabalho-entrevista-especial-com-monica-olivar