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Trabalho algoritmizado sob o verniz do empreendedorismo

Trabalho algoritmizado sob o verniz do empreendedorismo

Ser um direitista em um ambiente algoritmizado é a prova da miséria desse novo tempo capitalista. Acreditam que não possuem chefe pois não é possível vê-lo, já que esse é um “gestor” imaterial sob a forma de algoritmo, e que são livres mesmo sem perceber os grilhões virtuais que os prendem.

Herbert Salles

Fonte: Le Monde Diplomatique
Data original da publicação: 15/03/2024

Uma pesquisa encomendada pelas empresas Uber e iFood trouxe um panorama a respeito do perfil ideológico dos trabalhadores nesses aplicativos em que é possível observar que 40% dos entrevistados se identificam com a direita ou extrema-direita, enquanto apenas 20% se consideram de esquerda. É necessário refletir o porquê desse nível de engajamento pela direita entre os profissionais que atuam nessas plataformas digitais e como construir um modelo que seja capaz de proteger os trabalhadores da precarização do trabalho algoritmizado.

Em um primeiro momento, é necessário compreender a razão dessa pesquisa. Há algum tempo tanto a Uber como o iFood iniciaram uma guerra contra as possíveis leis de regulamentação do trabalho por aplicativo. Tanto que, desde 2023 algumas pesquisas foram encomendadas e divulgadas pelas empresas. Em todos os casos, há uma ideia central de que qualquer lei favorável ao trabalhador de aplicativo tirará a autonomia dele e que, a partir dessa premissa, há uma alta rejeição às propostas de vínculo com a CLT, garantias de salários-mínimos e ao sistema previdenciário. Assustadoramente, 77% dos trabalhadores no iFood preferem manter o atual modelo de trabalho algoritmizado pois possuem maior autonomia e 87% responderam que aceitam mais direitos desde que não afetem a flexibilidade nas suas rotinas.

A pesquisa corresponde qualquer regulamentação a alguma perda de autonomia e flexibilidade. Isso corrobora uma ideia de que aqueles que possuem atividades laborais nos aplicativos não são trabalhadores e sim parceiros. Nota-se uma ideia etérea de que esses indivíduos são empreendedores, quase-sócios dessas empresas. Na visão de muitos, eles são responsáveis diretos pelo retorno financeiro ou pelos lucros dessas empresas. Assim, é como se fossem donos dos meios de produção pois possuem carros, motos e bicicletas sem que compreendam o papel do algoritmo para conectar a demanda e oferta, criando um verniz de empreendedorismo e não uma relação de trabalho.

Logo, as pesquisas encomendadas pelas empresas de trabalho algoritmizado terão como objetivo central passar recados para o legislativo: nossos “parceiros” (quase-sócios) não aceitam e nem querem mais direitos pois serão prejudicados por qualquer lei. O que deve ser destacado é que esse discurso anti-regulamentação cria corpo entre os trabalhadores a partir de outros espaços algoritmizados, como redes sociais e aplicativos de mensagens, demonstrando um ecossistema algorítmico integrado. Compreendendo essa dinâmica, o iFood contratou agências de propaganda para desmobilizar movimento de trabalhadores e, principalmente, reforçar o discurso contrário aos direitos de trabalhadores de aplicativo utilizando Whatsapp, Twitter e Facebook.

Nesse cenário, é importante para as plataformas que o indivíduo se veja como empreendedor, que seu veículo é a sua empresa e que é chefe de si mesmo. Aqui nasce uma ideia de quase-sócio, que é um indivíduo que tem rotinas laborais com alguma ferramenta de trabalho sem que direitos, garantias e vínculo trabalhista sejam reconhecidos. O quase-sócio, então, pode ser observado como alguém que está vinculado a alguma big tech e recebe ganhos por meio dela. Ainda, a pessoa que adere a esse tipo de ofício deve ter algum ferramental para que garanta a entrega do seu serviço, tais como, bicicleta, carro, moto ou qualquer outro bem essencial para que garanta a sua renda. Dessa forma, é como se o usuário se tornasse um sócio da empresa pois o seu capital, sob forma de um bem, está aplicado nas operações dessa companhia. Isso cria uma atmosfera de independência e autonomia que resulta em ganhos em escalas, muito diferente de um empregado, que precisa produzir para receber um salário fixo e estar preso em rotinas diárias e sendo submisso a um chefe.

É, justamente, a ideia de liberdade econômica que é encampada pela direita. Nem sempre há uma compreensão clara, por parte dos entusiastas desse espectro, sobre neoliberalismo e quais seus objetivos e efeitos, porém, a prosperidade é um conceito de fácil aceitação, sem a necessidade de um discurso refinado ou profundo.

Ao aceitar que a tal prosperidade vem por meio do trabalho algoritmizado, esses indivíduos ficam imersos em jornadas exaustivas e é dessa forma que os aplicativos adestram pelo controle via espaços digitais. De acordo com Byung-Chul Han, não vivemos mais em uma sociedade disciplinar em ambientes de confinamento, nossa realidade é a sociedade pelo controle, a partir da dissolução de fronteiras materiais ou físicas. A técnica de poder neoliberal não deve ser proibitiva ou repressiva e sim – e sempre – permissiva. É dessa forma que qualquer um é livre desde que possa ser controlado por algo e, para que esse controle seja aceito com devoção, é necessário que domine e explore a psique, onde se é controlado sem saber a partir da vetorização dados. É nesse momento, de acordo com o autor, que o uso do Big Data é fundamental, pois é a partir dessa estrutura que é possível extrair um “psicograma” coletivo para manter o domínio entre esse grupo, sujeitando-o a um controle psicopolítico.

Logo, a algoritmização, como instrumento neoliberal, é capaz de construir uma rede de controle por meio de diferentes motivações psíquicas, permitindo a construção de uma sólida e integrada estrutura que, segundo Bernard Stiegler, é entendida como “psicotecnologias de psicopoder”.

Ser um direitista em um ambiente de trabalho algoritmizado é a prova da miséria desse novo tempo capitalista. É a certeza de que o domínio psicopolítico teve êxito e que os trabalhadores estão docilizados a partir de uma crença de que são donos de si, do seu trabalho e do seu destino. Acreditam que não possuem chefe pois não é possível vê-lo, já que esse é um “gestor” imaterial sob a forma de algoritmo, e que são livres mesmo sem perceber os grilhões virtuais que os prendem.

A algoritmização, ainda, auxilia no processo de propagação e engajamento da extrema-direita. Não é possível saber se é por puro sadismo, cinismo ou desconhecimento – ou a soma de tudo – que algumas pessoas se declaram em uma margem do espectro que foi marcado pela violência e a morte de milhões de pessoas. Provavelmente, tal identificação ocorre para que marquem uma posição enraizada na direita, como se deixassem claro, não apenas sua identificação ideológica, como também a aversão ao discurso – e aos eleitores – de esquerda.

Tal devoção ao discurso de direita cria um maniqueísmo que expõe os espectros políticos e aproxima esse trabalhador daquele que o explora, como forma de gratidão. Ao se entender como parceiro, empreendedor ou quase-sócio, esse indivíduo enxerga horizontalidade, como se fosse um par do capitalista, enquanto os que estão à esquerda estão subjugados ao fracasso e à penúria.

Essencialmente, qualquer lei de regulação de plataformas ou que possa apontar para relação de vínculos trabalhistas vai ser rejeitada por esses usuários, justamente por enxergarem essas medidas como travas às empresas em que eles são quase-sócios. Assim, eles defendem os seus negócios e não o seu trabalho, como uma típica visão capitalista.

Então, as pesquisas encomendadas pelas plataformas iFood e Uber terão como função principal usar a voz desses usuários para seus interesses próprios. Ao dizer que a maioria está a favor do atual modelo das empresas algoritmizadas, passa-se um recado para toda classe política para que não mude o atual cenário de precarização.

Talvez, aqueles que estão nos 20% dos que se consideram de esquerda tenham mais consciência da sua condição de trabalhador. Entre esses, o discurso quase-sócio dessas empresas não vai ter o engajamento esperado e pode ter um efeito oposto, resultando em luta por mais direitos e pressão para a regulação desse tipo de trabalho.

É necessário continuar, portanto, a luta por trabalho digno e regulação dessas empresas de trabalho algoritmizado para que os envolvidos possam ter direitos garantidos. Nota-se que nos últimos anos houve um aumento de pessoas que buscam uma alternativa ao desemprego e enxergam nessas plataformas alguma oportunidade de geração de renda. Sem a devida proteção legal e de políticas públicas, esse indivíduo terá sua condição de trabalhador esvaziada e ocupada pela falácia neoliberal, em que são vistos como empreendedores ou quase-sócios.

Herbert Salles é doutor em Economia pela UFF.

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/trabalho-algoritmizado-sob-o-verniz-do-empreendedorismo/

Trabalho algoritmizado sob o verniz do empreendedorismo

Rentismo, o novo modo de produção

A partir do capital financeirizado, surgiu outra forma de capturar a riqueza coletiva. Quais seus meios de acumulação. Por que produz desigualdade e devastação brutais. Como a reapropriação social do conhecimento pode minar suas bases.

Ladislau Dowbor

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 21/03/2024

Há tempos estamos rodando em torno do pote, sem meter efetivamente a colher. O que aconteceu com o capitalismo de antanho? Como os novos mecanismos não cabem nos conceitos tradicionais de análise do capitalismo industrial, acrescentamos qualificativos: Robert Reich fala sobre capitalismo corporativo, Mariana Mazzucato sobre capitalismo extrativo, Grzegorz Konat sobre capitalismo real, Joel Kotkin sobre neo-feudalismo, Zygmunt Bauman sobre capitalismo parasitário, Brett Christophers sobre capitalismo rentista, Shoshana Zuboff sobre capitalismo de vigilância, Eric Sadin sobre capitalismo cognitivo, Jonathan Haskel e Stian Westlake sobre capitalismo sem capital, este último no mínimo um qualificativo estranho: o capitalismo sem capital ainda é capitalismo?

O capitalismo é chamado assim em época relativamente recente, e adquire raízes teóricas e científicas de análise a partir de Adam Smith em 1776, e Karl Marx um século mais tarde. No centro do conceito, está o mecanismo de acumulação de capital. Ou seja, não é ter riqueza, bens ou dinheiro, isso sempre teve, e sim estar inserido no processo de reprodução de capital, que vai se valorizando através de investimentos: não é ter iates e aviões, que constituem patrimônio, é ter uma empresa, que por exemplo produz aço, que vai ser vendido para outras empresas que irão produzir casas e automóveis, fornecendo mais bens e serviços, e gerando lucros que serão reinvestidos em mais capacidades produtivas, mais capital. É precisamente a acumulação de capital, um processo expansivo. Essa capacidade de investimento que vai se expandindo é alimentada por lucros, gerados a partir do pagamento aos trabalhadores de um salário que é inferior ao valor produzido: a mais valia. Trata-se, portanto, de exploração, mas de uma exploração que se transforma em mais investimentos, mais empregos, mais lucros, mais capital e mais impostos para assegurar políticas públicas. Era um sistema. Injusto, mas produtivo.

O conjunto do processo foi e continua sendo cada vez mais alimentado pela revolução científica tecnológica que nos deu a máquina a vapor, a locomotiva e o transporte ferroviário, a eletricidade, o motor a combustão, a criação de novos materiais através da química, e tantas inovações que explodiram no século XX com eletrificação generalizada, o carro, o avião, a televisão, o computador, a q2uímica fina, a biologia e os primeiros passos na manipulação do genoma e assim por diante. Essa pequena enumeração das transformações científico-tecnológicas é necessária porque se trata do principal motor das transformações: as pessoas tendem a glorificar o capitalista, que aplicou os avanços científicos, mas muito menos os cientistas que os criaram. James Watt, Benjamin Franklin, Michael Faraday, Albert Einstein, pesquisadores que revolucionaram a base energética do planeta, colocando nas máquinas industriais e nas nossas mãos um volume de energia que multiplicou por um fator de centenas ou milhares o que era a força dos nossos músculos, deslocaram de forma estrutural a relação entre o homem e a natureza. A transformação científica foi o motor principal das transformações econômicas.

A Rússia sai da idade média em 1917, e se torna em poucas décadas uma potência industrial, a China se expandiu de maneira absolutamente impressionante, utilizando diferentes formas de organização política e social. A Europa se cobriu de ferrovias e de empresas de transporte, organizadas e geridas pelo Estado, que funcionam de maneira eficiente. E as empresas industriais capitalistas contribuíram também sem dúvida para multiplicar as nossas capacidades produtivas exponencialmente. Esse olhar mais amplo é importante para lembrarmos que a sociedade está em plena mutação, que as tecnologias atualmente avançam ainda mais rapidamente, e que manter a ideia de que a nossa relativa prosperidade se deve aos “capitalistas” e aos “mercados” simplesmente

significa um congelamento da forma como olhamos as transformações do planeta. O vetor principal das transformações foi a base científica da humanidade, com aporte transitório do capitalista industrial.

Aliás a fase mais próspera do capitalismo é a dos trinta anos de ouro do pós-guerra, em que houve um equilíbrio inovador entre o setor público e o mundo empresarial, no quadro do Estado de Bem-Estar, e funcionou apenas no grupo de países mais ricos, cerca de 15% da população mundial. Hoje gerou uma aristocracia financeira, gigantes da comunicação e corporações mundiais de intermediação de commodities (os traders), com a sua entusiasmada rapaziada manejadora dos algoritmos, que pouco têm a ver com o empreendedor industrial tradicional. Essa profunda mudança do sistema é que alimenta tantos qualificativos que se acrescenta ao “capitalismo”, simplesmente porque a nova realidade não cabe nos antigos conceitos. Mas não basta acrescentar qualificativos: é preciso pensar se isso ainda é capitalismo.

A fratura social: nova escala de exploração

Não ser capitalismo não significa não haver apropriação do excedente social por minorias, como houve nos diferentes modos de produção. O sistema escravagista se apropriava do produto de outros por meio da propriedade das pessoas, o modo de produção feudal através da posse da terra e do controle dos servos, não foi preciso esperar o capitalismo industrial para termos exploração, com minorias se apropriando do produto social. Mas enquanto o capitalismo industrial gerava ao mesmo tempo apropriação do excedente e geração de mais capacidades produtivas, o rentismo se apropria do excedente sem a contribuição produtiva correspondente. Como escrevem Gar Alperovitz e Lew Daly, é uma “apropriação indébita”.[1]

No centro do novo processo está a financeirização. É essencial entender o impacto do dinheiro não ser mais material, sob forma de notas impressas por governos, que levávamos na carteira e os bancos guardavam no cofre. Segundo o How Money Works, 92% da liquidez global é digital: ou seja, na carteira fica apenas um cartão, nos bancos o computador, o conjunto é gerido por algoritmos. E por constituir apenas sinais magnéticos, o espaço financeiro se tornou global, girando no quadro do High Frequency Trading, em volumes radicalmente desconectados da economia real. A BlackRock, gestora de ativos (asset management) administra 10 trilhões de dólares, enquanto o orçamento federal dos Estados Unidos é da ordem de 6 trilhões. O mercado de derivativos atinge em 2022 630 trilhões de dólares, para um PIB mundial de 100 trilhões, no qual aliás se incluem os lucros financeiros como se fossem ‘produto’.

Enquanto a apropriação do excedente por baixos salários é hoje bastante clara na mente das pessoas, levando inclusive à legalização de sindicatos, e lutas pelos reajustes periódicos, os mecanismos de exploração financeira já são bem descritos em tantos trabalhos, inclusive os mencionados acima, mas continuam uma realidade nebulosa para a quase totalidade da população, que não sabe quanto o banco leva quando realiza uma pagamento com cartão, que fica abismada ao se encontrar atolada em dívidas – precisam de educação financeira, comentam os banqueiros – e para quem o conceito de paraíso fiscal, onde hoje as grandes corporações colocam mais de 60% dos seus lucros – lembra ilhas com coqueiros, não o Estado de Delaware, Wall Street ou a City de Londres.

Um ponto chave é que a escala de apropriação do excedente por minorias mudou radicalmente. Os dados abaixo são do Crédit Suisse, incluídos no relatório da ONU: [2]

Fonte: UNRISD – Crises of Inequality – October 2022 – p. 5

Na coluna à esquerda, vemos que 62,5 milhões de pessoas, 1,2% da população adulta, detêm 47,8% da riqueza acumulada, 221,7 trilhões de dólares. Na coluna seguinte, vemos que 627 milhões de adultos, 11,8% do total, detêm 38.1% da riqueza, 176,5 trilhões. O que podemos classificar de classe média baixa, na terceira coluna, com riqueza acumulada entre 10 e 100 mil dólares, tem 13,0% da riqueza, 60,4 trilhões. E 2,818 bilhões de adultos, 53,2% do total, detêm apenas 5,0 trilhões, 1,1% do total. Basicamente, podemos dizer que inseridos de forma precária no sistema estão cerca de dois terços da humanidade, os 53,2% da última coluna mais uma parte da segunda coluna. Interessante é constatar que se tirarmos 2,2% da fortuna do grupo mais rico, que eles mal notariam, daria para dobrar a riqueza dos 53,2% mais pobres. E para quem é pobre isso significaria uma enorme melhoria da qualidade de vida.

Os dados constam da análise que o Crédit Suisse (hoje UBS) realiza da distribuição da riqueza familiar mundial, estimada em 463,6 trilhões de dólares nas mãos de 5,3 bilhões de adultos do planeta. O que o mundo tem de riqueza pessoal acumulada é de cerca de 87 mil dólares por adulto. Numa família com dois adultos, isso representaria 175 mil, equivalentes a 900 mil reais. Pela primeira vez na história da humanidade, temos o suficiente para todos, isso sem contar o valor das infraestruturas.

Mas o que nos interessa mesmo aqui é o fato da fratura estrutural profunda da apropriação da riqueza da sociedade, com uma escala de exploração sem precedentes no próprio capitalismo. Não visível neste gráfico, é o fato do profundo desnível dentro do 1,2% mais rico, pois o grosso das fortunas desta coluna está nas mãos dos 0,1 e em particular do 0,01%. [3] O relatório da ONU que apresenta a tabela acima comenta que “as atuais extremas desigualdades, destruição ambiental e vulnerabilidade a crises não constituem um defeito do sistema, mas a sua característica”. Hoje os dados mais detalhados encontram-se no WID (World Inequality Database), nos relatórios da Oxfam, em particular em Oxfam, Survival of the Richest, e comentados em tantos textos indignados.

Além da desigualdade em termos de riqueza familiar, que contabiliza por exemplo o valor da nossa casa, outras propriedades, o dinheiro no banco (deduzindo as dívidas), gerando o que se qualifica de patrimônio domiciliar líquido (net household wealth), também contabilizamos a desigualdade de renda. Aqui também a situação é catastrófica, com bilhões de pessoas atoladas em situação de pobreza. A relação com a riqueza acumulada é direta, pois enquanto um bilionário, aplicando por exemplo seu dinheiro para render moderados 5% ao ano, aumenta a sua riqueza no ritmo de 137 mil ao dia, a imensa maioria da população, os dois terços que mencionamos, como aproximação, mal consegue fechar o mês, que dirá se tornarem “investidores” para acumular riqueza. [4] É o que o Banco Mundial e outras instituições chamam de “poverty trap”, armadilha da dívida.

Fonte: BIG THINK – Strange maps – October 12, 2019

Uma outra escala desta fratura estrutural da sociedade, no mapa acima, pode ser compreendida ao passarmos da análise por estratos da população para médias entre países. [5] Como ordem de grandeza, temos que o capitalismo desenvolvido, que temos chamado de “Norte Global”, ou de “Ocidente”, é constituído por apenas 14% da população mundial, mas controla 73% da renda. O resto do mundo, 86% da população, apenas 27%. Sem a China, esses números seriam ainda mais críticos. Interessante esse gráfico apresentar o capitalismo desenvolvido como uma “gated community”, um tipo de condomínio planetário, com seis portarias cada vez mais guardadas. A fratura social e a fratura territorial se cruzam e reforçam. Os ricos dos países pobres podem adquirir

os “passaportes dourados” em Malta, e viajarem o mundo como “europeus’. O capitalismo, aliás, nunca funcionou para todos. Como Ha-Joon Chang escreve tão bem, os de cima tiraram a escada. [6] A fratura social planetária, tanto entre como dentro dos países, contrasta com o fato de justamente termos atingido, graças à revolução científico-tecnológica, um nível de prosperidade que poderia assegurar a todos uma vida digna, sem a guerra permanente que vivemos. Hoje se torna essencial entender como se transformaram os mecanismos que geram a fratura.

As novas formas de apropriação do excedente social

Uma coisa é a apropriação do excedente pelos grupos mais ricos da sociedade, com uma desigualdade que nos fratura em termos econômicos, políticas e sociais, e gera imenso sofrimento na base da sociedade. Outra coisa é constatar que se trata de rentismo improdutivo, de dreno das riquezas sociais, e não mais de ‘acumulação de capital produtivo’ tão analisado, e que os rentistas modernos tentam utilizar como prova de sua própria legitimidade. Quando se rompe um mínimo de proporcionalidade entre o quanto as pessoas contribuem produtivamente, e o quanto enriquecem, o sistema se desloca: não é mais acumulação de capital, é rentismo improdutivo.

Brett Christophers, no seu Rentier Capitalism que foca em particular as dinâmicas do Reino Unido, mas com visão global, agrupa as formas improdutivas de acumulação de riqueza (the main varieties of rentierism) em sete fontes principais: [7]

● Financeiro: gerando renta sobre juros, dividendos e ganhos de capital

● Reservas de recursos naturais: apropriação das reservas e sua venda

● Propriedade intelectual: gerando rentismo sobre patentes, royalties, marcas

● Plataformas digitais: comissões, marketing

● Contratos de serviços: gerando taxas de serviços terceirizados

● Infraestrutura: privatização de empresas estatais, licenças governamentais

● Solo: aquisição de terras, privatização de terras públicas, gerando renta de solo (ground rent)

Segundo o autor, isso “resume como os rentistas do setor privado passam a controlar os ativos (assets), e os tipos de renta que tal controle lhes permite ganhar em cada caso.” (xxx) O livro detalha como cada um dos mecanismos permite a apropriação de riqueza pelos rentistas. No conjunto, é essencial lembrar que essas diversas formas de rentismo são acessíveis apenas à própria minoria que com elas lucra: a massa da população, os dois terços, mal fecha o mês, e, portanto, não tem como entrar no sistema que ganha dinheiro com dinheiro, monopólios, controle de recursos naturais e cobranças sobre os mais diversos tipos de transações, lucros de intermediação, a chamada economia de pedágio. Os rentistas ganham não tanto pelos serviços que prestam, como pela obrigação de todos passarem pelas suas catracas. Muitos serviços são úteis, ou até necessários, mas gerando lucros desproporcionais relativamente ao aporte, como no caso dos oligopólios da comunicação.

Isso sempre existiu, como vimos no caso dos atravessadores comerciais que exploram os pequenos agricultores, dos usurários tão bem apresentados no Mercador de Veneza de Shakespeare, ou ainda dos Robber Barons das finanças e do petróleo nos Estados Unidos no início do século passado. Mas o deslocamento da base científico-tecnológica do planeta mudou o peso e as relações de força dos diversos setores de atividade. No centro, evidentemente, está a revolução digital, que gerou avanços de produtividade nas áreas industrial e agrícola, mas que sobretudo revolucionou os processos de intermediação: onde antes “serviam” às atividades produtividades, por exemplo com crédito, hoje passam a delas se servir.

Os gigantes corporativos que hoje controlam o planeta não são donos de empresas concretas, são donos de papéis – hoje sinais magnéticos – que lhes dão direitos sobre elas. Sweezy e Magdoff já analisavam a fratura: “A diferença entre ser proprietário de ativos reais e proprietário de um pacote de direitos legais pode à primeira vista parecer pouco importante, mas isso, enfaticamente, não é o caso. Na realidade, essa é a raiz da divisão da economia em setor produtivo e setor financeiro.” [8] Os papéis, títulos, ações, registros de dívidas, opções de derivativos, até o dinheiro – hoje apenas um sinal magnético – são imateriais, circulam no planeta na velocidade da internet, são administrados por algoritmos, gerando um universo econômico paralelo que levou a que tantos se refiram hoje separadamente à economia real e à economia financeira no sentido amplo. A lógica principal do sistema, é que justamente ser dono de “papéis”, ou seja, de direitos sobre produtos e sobre produtores reais, é que permite a geração de fortunas em escala radicalmente diferente das que efetivamente produzem bens e serviços, o que por sua vez está na origem do agravamento radical da desigualdade.

A agricultura e a indústria continuam a existir, mas a lógica do seu desenvolvimento, ou da sua paralisia ou deformação, obedece aos interesses dos donos dos sinais magnéticos. O dono da fábrica de sapatos podia explorar os seus trabalhadores, mas precisava comprar máquinas e matéria prima, gerar empregos, e produzir bons sapatos, o que gerava conforto para os compradores, e receitas públicas para o Estado assegurar infraestruturas e políticas sociais. O rentismo atual é dono de “direitos” que lhe permitem drenar os produtores, os assalariados, ou qualquer pessoa que tenha um cartão de crédito no bolso ou que precise comprar um botijão de gás ou encher o tanque do carro. Com a privatização parcial da Petrobrás, em 2022 foram transferidos 217 bilhões reais para acionistas nacionais e internacionais, dividendos sobre um produto que é do solo, produzido pela natureza em milhões de anos, e cujo valor poderia ter sido reinvestido na empresa ou utilizado pelo governo para financiar o desenvolvimento na economia real.

Outro fator essencial da fratura, além dos mecanismos financeiros de exploração, é que o sistema rentista não depende de oferecer empregos para gerar renta, ou apenas marginalmente, o que mantém grande parte da população em situação de pobreza e insegurança, multiplicando relações precárias de trabalho, com a chamada “flexibilização”. Um terceiro fator importante, é que produtores de bens e serviços de consumo precisam que haja consumo de massa, ou seja, capacidade de compra por parte da população: isso se torna secundário para os diversos tipos de rentistas. Ou seja, o rentismo precisa apenas marginalmente da força de trabalho e da demanda popular. Gera-se um processo de marginalização, já sentido com força nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e outros países do “Norte”, mas em particular na imensa massa dos países ditos “em desenvolvimento”. A fratura de certa forma se reforça, e cristaliza.

O conhecimento, conceito amplo que inclui as nossas transformações científicas e tecnológicas, faz parte desse deslocamento sistêmico. É impressionante a rapidez com a qual se enraizou o conceito de plataforma, onde antes falávamos de empresas, ou de corporações. Na base está a convergência de um conjunto de atividades que o André Gorz qualificou de “o imaterial”. Gorz adota claramente a visão de que os deslocamentos nos processos produtivos em geral levam a uma mudança da própria ciência econômica: “A ampla admissão do conhecimento como a principal força produtiva provocou uma mudança que compromete a validade das categorias econômicas chaves e indica a necessidade de estabelecimento de uma outra economia” (9). [9]

Delinear uma economia que leve em conta a generalização da dimensão conhecimento como elemento chave dos processos produtivos aponta para duas transformações básicas. Primeiro, é que uma inovação tecnológica representa um custo na sua criação, mas a sua reprodução e disseminação, nesta era informática, pode em geral se fazer a custo zero. Ou seja, enquanto na era fabril o produtor tinha de produzir grandes quantidades para ganhar mais dinheiro, no caso da inovação, uma vez identificada determinada tecnologia, o ganho é feito travando ao máximo o acesso, para gerar um efeito de monopólio. Se a tecnologia se generaliza, reduz-se o lucro. Ao patentear o “one-click” a Amazon tentou impedir milhares de empresas no mundo de desburocratizar as vendas. Com isso, tira-se das ideias a sua força maior, o fato de poderem fertilizar a criatividade dos mais variados atores sociais. A semente da Monsanto foi dotada de um gene “exterminador” para evitar que os agricultores possam reproduzi-la. Diferentemente de um produto material, um avanço imaterial é indefinidamente reproduzível. Ou seja, para a corporação, é preciso travar o acesso: Gorz ainda: “Sempre se trata de contornar temporariamente, quando possível, a lei do mercado. Sempre se trata de transformar a abundância “ameaçadora” em uma nova forma de escassez” (11).

Segundo, as formas tradicionais de remuneração do trabalho se veem ultrapassadas, notadamente na visão tradicional de oito horas de trabalho “alugadas” para o que a empresas necessite. A criatividade não se faz “por horas”. Há gente que pode ficar sentada semanas em um ambiente de trabalho e não trazer ideia alguma. Como se remunera a criatividade? O trabalhador, neste nível, se torna um tipo de empresário de si mesmo, negociando o seu produto. “A ideia do tempo como padrão do valor não funciona mais.” E se o tempo de trabalho não é mais o padrão de valor, como se determina o preço de venda do produto? Gorz passa naturalmente a analisar a função da marca, da publicidade, dos valores simbólicos como base da nova formação do valor, delineando assim gradualmente a mudança sistêmica que enfrentamos. Ao ser criticada pelo valor exorbitante cobrado por um medicamento de produção barata, a empresa responde que devemos pensar não no custo do produto, mas no valor da vida que salva. A teoria do valor, base da ciência econômica, se desloca.

“Se não for uma metáfora, a expressão ‘economia do conhecimento’ significa transtornos importantes para o sistema econômico. Ela indica que o conhecimento se tornou a principal força produtiva, e que, consequentemente, os produtos da atividade social não são mais, principalmente, produtos do trabalho cristalizado, mas sim do conhecimento cristalizado. Indica também que o valor de troca das mercadorias, sejam ou não materiais, não mais é determinado em última análise pela quantidade de trabalho social geral que elas contêm, mas, principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimentos, informações, de inteligência gerais. É esta última, e não mais o trabalho social abstrato mensurável segundo um único padrão, que se torna a principal substância social comum a todas as mercadorias. É ela que se torna a principal fonte de valor e de lucro, e assim, segundo vários autores, a principal forma do trabalho e do capital”(29) [10]

O que o mundo do dinheiro e o mundo do conhecimento hoje têm em comum, é que ambos são, precisamente, imateriais, ou ‘intangíveis’, como encontramos em outros autores. Ou seja, ambos circulam na internet na velocidade da luz, sob forma de sinais magnéticos, e no espaço planetário, sem que haja a antiga ‘territorialidade’, local de produção, da fábrica ou da fazenda, de residência dos trabalhadores, dos espaços de socialização. O fenômeno se manifesta de forma mais ampla ainda nas áreas hoje imbricadas de comunicação e de informação, como vemos nos gráficos abaixo: [11]

Vemos aqui o peso da plataforma Meta (Facebook), que atinge praticamente 3 bilhões de usuários. Youtube, da Alphabet (Google) atinge 2,3 bilhões, WhatsApp (Meta também) 2 bilhões, ultrapassando populações como a da China ou da Índia. O gigantismo está ligado à característica técnica básica, de que sinais magnéticos circulam no planeta de forma quase instantânea, e a dominação do mais forte se torna rapidamente planetária. Resultam os chamados ‘monopólios de demanda’: temos de usar o que os outros usam, porque sem isso não comunicamos. Além do alcance planetário, são extremamente concentrados:

O grau de oligopolização das atividades fica evidente, e aqui também se trata do imaterial, de sinais magnéticos, navegação de comunicação e informação em que os volumes, na era dos computadores modernos, deixam de ser um problema. A indústria da comunicação e da informação torna-se dominante, gerando inclusive a tão estudada batalha pelo tempo de atenção das pessoas, com o crescente caos de informações reais, fake-news, marketing comportamental e sistemas de vigilância baseadas na invasão das comunicações pessoais.

Mais impressionante ainda é a gradual osmose dos subsistemas da economia imaterial, de sinais magnéticos, quer representem dinheiro, conhecimento, informação ou comunicações, tendo todos em comum, neste eixo principal para onde se orienta a economia e a apropriação de valor, o fato de banharem o planeta, de atingirem qualquer pessoa, e de serem controlados por um número restrito de megacorporações. Interessante neste sentido que a Amazon trabalhe com acesso de informações a terceiros, além da intermediação comercial, enquanto por sua vez a própria Amazon, mas também Google, Facebook, Apple, Microsoft são em parte controladas pelos três maiores gigantes financeiros, BlackRock, Vanguard e State Street. Forma-se assim um universo de controle multisetorial, de impacto planetário.

E não é secundário que também sejam dominantemente norte-americanos, e conectados com a NSA e outros sistemas de informação política, gerando a guerra contra a Huawei, a Tiktok e outras corporações chinesas: os ‘mercados’ se tornaram mais políticos, a política se torna ainda mais ferramenta das corporações. Em outros termos, ao rentismo que drena os recursos para os acionistas no topo da pirâmide financeira mundial, se acrescenta o controle algorítmico das pessoas, e a submissão do universo produtivo à lógica do shareholder, e cada vez menos do stakeholder. O rentismo se transforma em modo de produção. Não substitui as empresas tradicionais, sejam industriais, agrícolas ou de diversos tipos de serviços, ou ainda planos de saúde ou universidades, ou mesmo comportamentos individuais, mas as submete à sua lógica. Não constitui apenas um dreno de recursos e a formação de uma poderosa elite rentista global: altera em profundidade como nos organizamos como sociedade.

A manipulação capilarizada

Se a extrema concentração no topo, e a osmose dos diversos subsistemas que têm em comum o fato de manejarem apenas sinais magnéticos, massa virtual em que banha o planeta, também é preciso insistir no fato dos algoritmos e da inteligência artificial permitirem uma capilaridade que atinge cada pessoa do planeta. Para a capacidade moderna de computação, 8 bilhões de pessoas não representam uma massa incalculável, tornam-se indivíduos isoláveis, fontes de informação, e clientes, quer queiram quer não. O sistema Experian permite que o gerente da sua conta no banco tenha informações detalhadas sobre a sua situação financeira, e o seu custo de crédito será ajustado segundo os interesses do banco. E foi legalizado. [12]

A faxineira que me presta serviços uma vez por semana, contratou um plano privado de saúde, NotreDame, que tem entre os seus acionistas a BlackRock: uma parte do salário de uma pessoa modesta da periferia de São Paulo é transferida em frações de segundos, pelos algoritmos, para acionistas nos Estados Unidos e outros países. Ao tomar um Uber na minha cidade, pago ao motorista, mas automaticamente boa parte do que pago vai para acionistas internacionais, preço exorbitante pago para pertencer a uma rede que permite estar conectado. Ao pagar uma compra com cartão, na modalidade crédito, cerca de 5% do valor da minha compra vai para intermediários financeiros, Visa ou outro. Se procuro algo no computador, não consigo me mexer se não estiver o tempo todo autorizando alguma rede a instalar cookies, entrando no sistema global de dreno de informações pessoais. Gerou-se assim um sistema de micro-drenagem de recursos e de informações pessoais de bilhões de pessoas de qualquer parte do mundo, inclusive dos mais pobres. Somos uma unidade de comunicação e informação do sistema planetário.

[13]

Todos os custos da publicidade que me invade por todo lado e por todo meio estão incluídos nos preços que eu pago pelos produtos. Na TV me dizem que o programa é gentilmente oferecido por determinada empresa, mas esquecem de dizer que sou eu que pago para que interrompam o programa, em qualquer compra. Em 2021, 97,5% dos rendimentos da Meta (Facebook) vêm da publicidade. Como a mídia comercial se torna dependente das empresas que pagam a publicidade, o resultado é que o conjunto dos sistemas de informação, inclusive os noticiários, se tornam enviesados. Nós os pagamos para que nos convençam. Não se trata aqui de informação sobre produtos, e sim de influenciar comportamentos em geral. Com as horas que passamos vendo telas, tornamo-nos prisioneiros de um sistema que pesa nos nossos bolsos. [14]

A Amazon começou prestando serviços comerciais, mas entendeu que a sua dominância do mercado lhe permitia se tornar o intermediário obrigatório como plataforma de serviços virtuais, com o AWS (Amazon Web Service) e FBA (Fulfillment by Amazon): “AWS como FBA são o fruto da Amazon ter construído infraestruturas cruciais para a entrega dos seus próprios serviços, e então ter tornado essas infraestruturas de serviços, entregas disponíveis comercialmente – podemos dizer, alugando-as para fora – a terceiros para a entrega dos seus serviços. Ambos são, neste sentido, rentistas de infraestruturas… A Amazon controla infraestruturas críticas para a economia da internet – de formas que seria difícil novos interessados (entrants) replicar ou tentar enfrentar com competição” [15]

Quando se atinge uma situação de monopólio, pode ser cobrar preços muito além dos que seriam praticados num mercado competitivo, do capitalismo concorrencial. “No ano fiscal de 2021, as “big tech” tiveram um crescimento combinado de 27%, de um ano para outro.” Esses ganhos aparecem nos preços que pagamos. A tabela abaixo mostra os avanços dos cinco grandes (GAFAM): [16]

Isso é particularmente visível na apropriação privada de infraestruturas. Um produtor precisa escoar o seu produto, mas não vai poder escolher que ferrovia vai utilizar em função das tarifas, nem em que poste de energia vai se conectar. As redes de infraestruturas, transportes, energia, telecomunicações, e água e saneamento constituem redes de âmbito nacional e frequentemente internacional, e onde funcionam de maneira adequada são planejadas e geridas por instituições públicas: propriedade privada e ‘liberdade econômica’, quando não há concorrência, levam a abusos. É propriedade privada, mas não mercado. Perde o objetivo do interesse público, e não tem os benefícios da concorrência.

Christophers, no capítulo sobre rentismo de infraestruturas privatizadas no Reino Unido, apresenta esse ‘dinheiro de monopólio’: “Entre 2010 e 2015, as margens de lucro operacionais no setor estiveram entre um nível baixo de 41% e alto de 56%, com uma média ponderada de 51,5%.”(323) Isso gerou sem dúvida lucros impressionantes para as corporações que passaram a controlar as infraestruturas, mas depois de décadas de desmandos a Grã-Bretanha esta re-estatizando ferrovias e outros setores, tal como Paris, Berlim e tantos outros re-estatizaram a gestão de água. A privatização em setores não concorrenciais leva a um rentismo improdutivo. Todos pagamos por isso.

Não se trata apenas de preços, mas também de perda de produtividade sistêmica. Na França, por exemplo, segmentos privatizados desativaram ramais ferroviários menos produtivos, em regiões menos povoadas, gerando isolamento e protestos. Faz todo sentido o Estado levar infraestruturas para regiões menos desenvolvidas, ainda que com perdas durante um tempo, justamente para dinamizá-las e equilibrar o desenvolvimento territorial. A combinação de facilidade de elevar preços em situação de monopólio, com objetivo de maximização de lucros para os acionistas em vez de gerar economias externas para produtores em escala mais ampla, levam a rentas elevadas e baixa produtividade sistêmica.

A área de recursos naturais é particularmente sensível. Raymond Baker traz dados sobre diversas partes do mundo, inclusive da região amazonense: “Estima-se que 50% a 90% da madeira na Amazônia é cortada sem autorização. Na Indonésia, cerca de 50%, e na Rússia, com as maiores florestas de coníferas do mundo, 25%… Global Witness, que tem examinado extração ilegal de madeira há décadas, estima que o financiamento de projetos de agricultura na Amazônia vem do Deutsche Bank, Santander, BlackRock, American Capital Group e outros.”(46) [17] Grupos financeiros internacionais obtêm renta a partir da apropriação de florestas que não precisaram plantar, apenas financiam e cobram dividendos de quem extrai. Isso vale evidentemente para minérios, petróleo, água e outros recursos naturais que levam não só à apropriação de recursos naturais, ou seja, que são da natureza, não ‘produzidos’, mas também leva a um conjunto de deformações políticas, na medida em que corporações globais passam a pressionar ou derrubar governos na batalha pelo acesso.

A reprimarização do Brasil, o próprio golpe de Estado de 2016, mas também as tragédias do Congo ou da Indonésia, fazem parte deste conjunto de atividades que não são propriamente produtivas, e constituem essencialmente a apropriação privada de bens naturais, com empresas de extração sem dúvida, em geral terceirizadas, mas antes de tudo controladas por grupos financeiros mundiais e os seus acionistas, que por sua vez se associam com grupos empresariais e políticos locais, assegurando a legislação correspondente aos seus interesses, como no caso da Lei Kandir no Brasil (1996), que isenta de impostos exportações primárias. Neste setor como em outros, acima dos executores locais das políticas extrativas, encontramos os donos de ações que recebem dividendos em qualquer parte do mundo. Os desastres de Brumadinho e de Mariana, com a Vale e a Samarco privatizadas, mostram a priorização dos lucros financeiros sobre a capitalização e reinvestimento na empresa. Hoje é o rentismo que estrutura o setor produtivo, e sua matéria prima são apenas sinais magnéticos.

Há ainda o rentismo tradicional, como no caso dos imóveis, mas que adquiriu novas dimensões. Christophers cita um comentário do Churchill a este respeito: “Estradas são construídas, ruas são construídas, serviços são melhorados, a luz elétrica muda a noite para o dia, a água é trazida de reservatórios a cem milhas de distância nas montanhas – e o tempo todo o proprietário do imóvel (landlord) fica sentado. Cada uma dessas melhorias é realizada com trabalho e custo para outras pessoas e contribuintes. O proprietário monopolista, como monopolista do solo, não contribui com nenhuma dessas melhorias, e, no entanto, com cada uma delas o valor da sua propriedade aumenta.”(351) [18] Hoje são empresas financeiras que adquirem o solo, habitações, nas mais diversas partes do mundo, elevando os alugueis, adquirindo bairros inteiros. Não estão contribuindo para que pessoas tenham mais residências, ou agricultores mais acesso ao solo, geram um mercado financeiro baseado nas valorizações futuras, uma grande rede que gera fortunas especulativas e aumento generalizado dos custos para a população. O imóvel se torna “um puro ativo financeiro.”(358)

A privatização e controle corporativo das políticas sociais constitui outra área que se transformou num gigantesco sistema especulativo. Lembremos que essa área se agigantou nas últimas décadas. Só a saúde representa nos Estados Unidos em torno de 20% do PIB, muito superior à própria indústria. Apresentei acima a forma como a BlackRock drena uma parte do que eu pago à minha faxineira, através do plano de saúde Notre Dame. Mas me interessei no desvio do meu próprio salário de professor universitário. A minha universidade me inscreveu no plano de saúde Sulamérica, descontando do meu salário cerca de 4.500 reais mensais. A Sulamérica por sua vez foi comprada pela Rede D’Or, outro grupo financeiro, que adquiriu uma fortuna de 27 bilhões de reais, e tem entre os seus acionistas importante fundo financeiro de Cingapura, GIC. Assim parte do meu salário migra automaticamente para Cingapura, alimentando acionistas com lucros astronômicos. Esses lucros financeiros podiam ser investidos em saúde. Pela desproporção entre o que alocam, e o quanto retiram, trata-se de um dreno.

Um exemplo clássico nesta área é o dos Estados Unidos, onde a saúde se tornou um setor econômico gigantesco, e um exemplo mundial de ineficiência: representa o maior custo por pessoa por ano hoje entre os países da OCDE, mais do dobro do custo no Canadá, por exemplo. O Canadá está entre os primeiros em termos de nível de saúde da população, os Estados Unidos entre os últimos. A facilidade com a qual se atinge este nível de rentismo na saúde está ligada à insegurança das pessoas relativamente a eventual situação crítica que exija grandes investimentos. O rentismo navega aqui na insegurança das pessoas. Comparação igualmente interessante é entre a Dinamarca e a Suíça, esta última com o sistema de saúde em grande parte privatizado: com custos muito menores, a Dinamarca atinge resultados radicalmente superiores.

Particularmente importante é o exemplo da educação, onde a privatização avança com rapidez, em particular navegando na transformação mundial da economia: o principal fator de produção, na era tecnológica, é o conhecimento, por sua vez matéria prima da educação. O endividamento generalizado da nova geração, para conseguir os diplomas, gera uma nova crise mundial: com a educação privatizada, os jovens chegam na idade de trabalhar atolados na dívida estudantil, que os amarra durante décadas. E já estão se atolando no aluguel que explode ou na dívida imobiliária. Os ‘investidores’ são frequentemente os mesmos. [19]

Outro mecanismo importante da evolução do capitalismo para o rentismo, é o caso de patentes, copyrights, diversas formas de controle do conhecimento por grupos financeiros que cobram direitos de acesso. Na concepção inicial da proteção de direitos intelectuais, tratava-se de assegurar remuneração privilegiada para o inventor de novos processos ou para o escritor, de forma a estimular os avanços científicos e culturais. Hoje patentes imobilizam uma tecnologia por 20 anos, o que há um século atrás poderia ser razoável, mas no ritmo moderno de avanços técnicos representa um latifúndio, claramente visto durante o desastre do acesso a vacinas durante a Covid-19. Os direitos autorais se expandiram, teremos acesso aberto aos livros de Paulo Freire apenas em 2067. Com a centralidade do conhecimento no conjunto das transformações econômicas, sociais e culturais no planeta, a guerra por dificultar o acesso está no centro de mais um mecanismo rentista. Com o Open Access, Creative Commons e outros mecanismos abertos de divulgação do conhecimento, poderíamos ter uma generalização radicalmente nova de acesso mundial ao conhecimento. [20]

Uma nova articulação global

Elencamos aqui vários mecanismos de apropriação do excedente social no quadro da evolução do capitalismo industrial para o rentismo digital. Esses mecanismos envolvem o domínio das plataformas relativamente às empresas tradicionais, e em particular o fato de se tratar do controle do imaterial, ou intangível, o que permite mecanismos muito mais amplos de apropriação, em escala planetária, sem a correspondente criação de bens e serviços, empregos e bem-estar econômico. Os sistemas de intermediação financeira, o controle financeiro dos sistemas comerciais e de marketing, a apropriação privada das infraestruturas, a extração de recursos naturais, o rentismo baseado na apropriação de imóveis rurais e urbanos, o uso especulativo das políticas sociais, como saúde e educação, a guerra para dificultar o acesso ao conhecimento acumulado na sociedade, com patentes e copyrights, são exemplos de uma conjunto de atividades em que acima do nível do produtor efetivo de bens e serviços, do pesquisador, do país dono de recursos naturais, gerou-se uma classe de rentistas que se apropriam de cada movimento, colocando juros, tarifas, sobre-preços, levando por sua vez à formação de um clube dos ricos que detém imenso poder econômico, financeiro, político e midiático, essencialmente ao controlar direitos sobre atividades ou patrimônio de terceiros.

Há uma década o ETH, instituto federal suíço de pesquisa tecnológica, apresentou uma pesquisa de grande importância, primeiro estudo global da estrutura do poder corporativo mundial, que utilizei no meu livro A era do capital improdutivo. [21] No essencial, os autores mostraram que no mundo 737 grupos controlam 80% do mundo corporativo, e nestes um núcleo de 147 controla 40%. A qualificação de “clube dos ricos” é dos autores, e a justificam: no topo, são inclusive pessoas que se conhecem, e criaram instituições de articulação, como o IIF. Guerras sim, para ver quem compra quem, mas nada de concorrência para prestar melhores serviços: eles essencialmente gerem ‘ativos’ (assets), ou seja, constituem uma superestrutura de controle e extração, por meio do mundo digital. O estudo do ETH (Glattfelder e outros) representou um avanço sem dúvida, mas hoje precisamos de pesquisa em nível mais amplo, já que o denominador comum do controle encadeado (A controla B, que controla C, D, E etc.) com tomadas cruzadas de participação, hoje se amplia pelo fato dos sistemas digitais permitirem dinâmicas em escala muito mais ampla.

Michael Hudson tem razão em afirmar que está em jogo o destino da civilização. [22] Uma BlackRock tem mãos nos mais diversos setores, nos mundos da saúde, da mineração, da comunicação, trabalhando em nível planetário. A infraestrutura produtiva – a indústria com as suas máquinas, proprietários de meios de produção, trabalhadores assalariados – é controlada por plataformas, computadores, algoritmos e inteligência artificial, mas a superestrutura – o Estado regulador e marco jurídico correspondente – está em busca de novos rumos. Enquanto não surge um sistema regulador global, o mundo global da economia digital, nas suas diversas dimensões que vimos acima, simplesmente reina. E drena. A economia mundial está na era digital, as instituições públicas, a gestão política, as regras do jogo, continuam no século passado. Sem instrumentos de influência ou regulação, o mundo se aprofunda na catástrofe econômica, social e ambiental. A impotência institucional que enfrentamos nos leva a uma desarticulação sistêmica desastrosa, justamente quando a ciência e a riqueza que produzimos permitiriam uma vida digna para todos, sem destruir o planeta. Nosso problema não é econômico, é de governança. A gestão pública não é o problema, é a solução.

Um desafio metodológico e teórico

Como listamos os diferentes qualificadores que muitos pesquisadores sentiram necessidade de adicionar a “capitalismo”, no início deste trabalho, a questão básica aqui é se continuar a chamar esse sistema de capitalismo é adequado. A sugestão aqui é que é cientificamente mais produtivo e teoricamente mais adequado reunir as diferentes transformações do sistema capitalista e considerar que estamos diante de um novo modo de produção, um novo sistema. O fato básico é que a revolução digital trouxe mudanças profundas no sistema capitalista, assim como a revolução industrial trouxe para os diferentes modos de produção rural, em particular o sistema feudal.

A infraestrutura técnica mudou radicalmente, com as tecnologias que nos conectam instantaneamente em todo o mundo, dinheiro virtual, acesso virtual à informação e conhecimento. Tempo e espaço pertencem atualmente a outro paradigma de organização. Mais importante ainda, o principal fator de produção mudou para IA, informação virtual, conhecimento acumulado, tecnologia. As máquinas podem estar trancadas em uma fábrica, o conhecimento é radicalmente diferente, pois pode ser disseminado sem custo adicional, levando à compreensão do conhecimento como um bem comum [23]. O mecanismo dominante de extração de excedente econômico, por outro lado, mudou da exploração através de baixos salários para plataformas financeiras, de comunicação e informação, e os diferentes mecanismos de extração de renda que vimos. Consiste mais em extração de renda do que em acumulação de capital, em algo que também foi chamado de financeirização.

Nos níveis político e institucional, estamos vendo tentativas frenéticas de correr atrás das profundas transformações tecnológicas trazidas pela revolução digital: nossas leis e regulamentações são para a economia material do século passado. As finanças e outras plataformas funcionam em escala global, enquanto as regulamentações são basicamente gerenciadas em escala nacional, gerando vazios institucionais catastróficos, paraísos fiscais, entre outros, mas também a impotência das instituições internacionais que datam de Bretton Woods, de uma outra era.

Eu sugeriria que seria muito mais produtivo identificar os principais desafios – meio ambiente, desigualdade, as principais causas do sofrimento e desespero humano – e trabalhar nas instituições de que precisamos. Isso significa que temos que reconciliar as instituições com a modernidade, com os novos mecanismos e estrutura de poder da revolução digital. Não se trata de ser excessivamente ambicioso, mas de entender claramente quão dramáticos são nossos desafios, em escala global. A mudança institucional se tornou vital, no sentido original da palavra. Compreender que estamos enfrentando um novo conjunto de desafios, com a revolução digital como um sistema, nos ajudará a construir soluções sem carregar o ônus de tantas simplificações ideológicas e polarizações concernentes ao que conhecíamos como capitalismo.

Notas

[1] Gar Alperovitz e Lew Daily – Apropriação Indébita – Senac, São Paulo, 2010 – <https://dowbor.org/2010/11/apropriacao-indebita-como-os-ricos-estao-tomando-a-nossa-heranca-comum.Html>

[2] Unrisd – Crises of Inequality – 2022 – p.1 – <https://cdn.unrisd.org/assets/library/reports/2022/full-report-crises-of-inequality-2022.pdf>

[3] Oxfam – Survival of the richest – Jan 2023 – Full text, English: <https://oxfamilibrary.openrepository.com/bitstream/handle/10546/621477/bp-survival-of-the-richest-160123-en.pdf> Português: <https://materiais.oxfam.org.br/a-sobrevivencia-do-mais-rico-davos-2023>

[4] O investimento produtivo, que gera capacidades ampliadas de produção, deve ser distinguido das aplicações financeiras, que podem ou não gerar investimento produtivo. Os que manejam papeis financeiros, diversos tipos de aplicações, mas não produzem, preferem se qualificar de ‘investidores’.

[5] Big Think– ‘The West” is in fact the world’s biggest gated community – Big Think, October 12, 2019 –

<https://bigthink.com/strange-maps/walled-world/?utm_medium=Social&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR3WF9_e_YVIDAstRyyaTwHgBs_SqwwXV3y11DbT-nwDtwAgzlPq65cy9vM#Echobox=1648785756-1>

[6] Ha-Joon Chang – Chutando a escada – 2002 – <https://dowbor.org/2005/04/chutando-a-escada-estrategia-de-desenvolvimento-numa-perspectiva-historica-2.html>

[7] Brett Christophers – Rentier Capitalism – Vero, London, 2020 – p. xxxi

[8] Paul Sweezy e Harry Magdoff – Stagnation and the Financial Explosion – Monthly Review Press, New York, 1987, p. 101

[9] André Gorz – O Imaterial: conhecimento, valor e capital – Ed. Anna Blume, 2005 – <https://dowbor.org/2005/11/o-imaterial.html>

[10] Sistematizamos esta dimensão da economia no artigo Da propriedade intelectual à economia do conhecimento – 2009 – <https://dowbor.org/2009/11/da-propriedade-intelectual-a-economia-do-conhecimento-outubro.html>

[11] TNI – Transnational Institute – Big Tech: the rise of GAFAAMT – <https://www.tni.org/en/big-tech-the-rise-of-gafaamt> (Acesso 9 de abril de 2023) – Ver também <https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/estudo-especial-a-captura-da-tecnologia/>

[12] Ver Juliana Oms (Org.) – O consumidor na era da pontuação de crédito – IDEC, Belo Horizonte, 2022

[13] Ivanna Shepetyuk – What is the average marketing budget by industry – Merehead, March 14, 2023, <https://merehead.com/blog/average-marketing-budget-different-business-areas/>

[14] Sobre a transformação do marketing de informação comercial para manipulação comportamental, ver <https://dowbor.org/2022/10/o-marketing-da-alienacao-total.html>

[15] Brett Christophers – Rentier Capitalism – Verso, 2020, pp. 278 e 323

[16] Carmen Ang – Visual Capitalist – 25 de abril de 2022 – <https://www.visualcapitalist.com/how-big-tech-makes-their-billions-2022/> – Acesso 2 de abril de 2023

[17] Raymond W. Baker – Invisible Trillions: How financial secrecy is imperiling capitalism and democracy – and the way to renew our broken system – BK, Oakland, 2023

[18] Christophers, op. cit. p. 351

[19] Beatriz Blandy e Ladislau Dowbor – A financeirização da educação brasileira e seus impactos – <https://dowbor.org/2023/04/a-financeirizacao-da-educacao-brasileira-e-seus-impactos.html>

[20] Ver Lawrence Lessig – The Future of Ideas: the fate of the commons in a connected world – Random House, New York, 2001 – https://dowbor.org/2004/06/the-future-of-ideas.html – Livro disponível em pdf: https://ia800504.us.archive.org/35/items/TheFutureOfIdeas/TheFutureOfIdeas.pdf

[21] L. Dowbor – A era do capital improdutivo – Autonomia Literária, São Paulo, 2018 -<https://dowbor.org/2017/11/2017-06-l-dowbor-a-era-do-capital-improdutivo-outras-palavras-autonomia-literaria-sao-paulo-2017-316-p-html.html>

[22] Michael Hudson – The Destiny of Civilization – Islet, 2022 – <https://dowbor.org/2022/09/destiny-of-civilization-finance-capitalism-industrial-capitalism-or-socialism.html>

[23] Elinor Ostrom and Charlotte Hess  – Understanding Knowledge as a commons – MIT Press, 2007 – https://dowbor.org/2015/05/  Ver também Jeremy Rifkin – The Zero Marginal Cost Society – Palgrave MacMillan, 2017 – https://dowbor.org/2015/03/

Autor Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org.

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/rentismo-o-novo-modo-de-producao/

Trabalho algoritmizado sob o verniz do empreendedorismo

Salário digno e saúde mental

Empresas têm papel de relevância ao adotar e pagar uma remuneração que possibilite aos funcionários gozar uma vida além da sobrevivência, permitindo-lhes interações em sociedade com qualidade quanto a questões psicossociais.

Alex Araujo

Fonte: Le Monde Diplomatique
Data original da publicação: 12/03/2024

Épor meio do trabalho remunerado que os operários têm a possibilidade de assegurar – para si e seus familiares – condições próprias da vida em sociedade: habitação, saúde, alimentação, descanso e lazer. Estes são temas previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal brasileira. Considera-se o salário justo um direito fundamental da CF.

Contudo, a realidade destoa-se do que prevê a Carta Magna da nação. Conforme os dados do Banco Mundial, o Brasil está entre os dez países com maior desigualdade de renda do planeta, herança do seu processo histórico marcado pela escravidão e exploração laboral de povos indígenas, que foram, aos poucos, dizimados. Cerca de um terço da população vive em domicílios cuja renda por pessoa é insuficiente para comprar sequer uma cesta básica, em qualquer das 27 capitais brasileiras, segundo o Mapa da Nova Pobreza, divulgado pela FGV. Parte da nossa população vive em condições de extrema miséria, vilipendiada de situações básicas e do bem-estar social, fazendo do direito por alimento uma luta diária.

Mesmo para as pessoas que conquistaram um emprego formal, abastando-se um pouco mais diante daqueles que as cercam, a desproporcionalidade dos salários contrasta com a batalha constante para se ajustar à rotina e aos altos custos demandados pela modernidade. O poder de compra cai enquanto o valor de itens básicos de alimentos, transporte, saúde e habitação cresce vertiginosamente. A precarização financeira está cada vez mais evidente, em nossos dias, com níveis de endividamento e inadimplência que alcançam recordes históricos.

Temos que questionar se a renda atende às necessidades básicas

Primeiro: o que vem a ser um ordenado merecido? Apesar de parecer redundante, a resposta é: aquela remuneração que permite ao indivíduo gozar uma vida digna em sociedade, proporcionando-lhe meios existenciais que estejam além do valor mínimo necessário à aquisição de bens e serviços básicos à sobrevivência humana. Incluem-se nisso momentos de descanso e lazer e a chance de aspirar à ascensão social. Consideram-se também o poder da reserva e da segurança financeira (uma futura previdência) para estar preparado para adversidades futuras.

Estima-se que a renda ideal para o brasileiro está em torno de R$ 3 mil; mais do que o dobro do salário mínimo (R$ 1,3 mil).

Salário digno e saúde mental

A dignidade está associada diretamente a outra questão essencial para a humanidade: a saúde mental. No mundo, o Brasil desponta como o país com maior número de pessoas com transtornos de ansiedade, segundo a OMS. Antes da pandemia, 19 milhões de pessoas já sofriam com a doença. O isolamento social ampliou os casos em cerca de 25%, principalmente entre jovens e mulheres.

Estão entre os maiores fatores de risco: situações de assédio, bullying, excesso de trabalho, jornadas inflexíveis e ameaça de desemprego. Quando a contraprestação ao trabalho é insuficiente para atender às necessidades familiares, o índice de transtornos aumenta.

O que fazer para melhorar?

A pauta de saúde mental deve fazer parte da rotina das empresas por causa da relevância que tem adquirido.

Estas precisam estimular discussões sobre a questão propiciando planos de ação para construir um ambiente saudável e produtivo no trabalho. Deve ser ofertado apoio especializado para “aconselhamento” e “entendimento” aos funcionários. Deve haver organização de campanhas para reduzir estigmas e preconceitos em relação a transtornos mentais. Deve haver promoção de ação a fim de melhorar a qualidade das questões psicossociais.

Dá para fazer mais na busca pelo salário digno

Além de gerar oportunidades, o setor empresarial tem papel fundamental na garantia de uma renda digna e nas boas condições de saúde mental àqueles que lhe entregam o suor de seu labor.

É preciso que esse setor tenha em sua mente que – além de justa recompensa – a remuneração digna é inerente às demandas sociais e individuais fundamentais, demonstrando por esses meios um compromisso público de uma sociedade justa e em equidade.

Isto representa uma mudança radical de mentalidade do empresariado o qual precisa enxergar e crer que uma sociedade igualitária é pressuposta de justiça social e, consequentemente, do próprio desenvolvimento econômico do país. A prática lhes dota de maior poder de consumo e lhes permite ter acesso a bens e serviços essenciais para uma vida com padrões adequados de conforto e felicidade. Dados da Organização Mundial do Trabalho (OMT) revelam que, no mundo, apenas 19% dos assalariados com vínculo formal recebem o suficiente para garantir a própria subsistência e a da família, não podendo, portanto, garantir para si uma vida digna.

As instituições cada vez mais assumem a responsabilidade ao se posicionarem quanto às obrigações que antes eram delegadas somente pelo Estado. Isso representa um engajamento maior sobre as questões sociais e o bem-estar individual dos seus funcionários.

E para que o desempenho do salário digno seja efetivo, devem ser avaliados ainda critérios como educação, desempenho profissional e pessoal dos empregados.

O movimento Salário Digno do Pacto Global da Organização das Nações Unidas busca unir empresas que assumam até 2030 o compromisso de remunerar seus trabalhadores e contratados terceirizados com salários dignos compatíveis com a demanda necessária para uma vida decente em sociedade. E para que haja conformidade durante o processo, preveem-se quatro pilares básicos de atuação: o engajamento da alta liderança das empresas, a construção de capacidade, o engajamento de stakeholders e o monitoramento e o compartilhamento de boas práticas.

Espera-se que as empresas adotem medidas efetivas de saúde mental corporativas, desenvolvendo ambientes psicologicamente seguros e que influenciem na vida de quem trabalha neles.

Alex Araujo é CEO da 4 Life Prime Saúde.

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/salario-digno-e-saude-mental/

Trabalho algoritmizado sob o verniz do empreendedorismo

PL dos Aplicativos: urge evitar a iminente derrota cabal dos trabalhadores e trabalhadoras. Entrevista com Ricardo Antunes

No Brasil de 2023, segundo dados do IBGE, mais de 600 mil trabalhadores tiraram seu sustento prestando serviços para as gigantes do trabalho uberizado. Em sua grande maioria são motoristas e entregadores, com jornadas de trabalho de 12 horas em média. Diante de tal cenário, o governo federal propôs a construção de um Projeto de Lei que garanta direitos a estes/as trabalhadores/as, mas, segundo avaliações de especialistas no mundo do trabalho, o tiro saiu pela culatra.

“O PL criado e proposto pelo governo Lula para regulamentar o trabalho dos/as motoristas de aplicativos é uma derrota cabal, se for aprovado. Por quê? Porque os seus (aparentes) pontos positivos, são um remendo para tentar consertar o erro crucial. Por isso ele é essencialmente nefasto”, avalia o professor e pesquisador da Unicamp Ricardo Antunes. “Para burlar e negar os direitos do trabalho era preciso criar uma categoria híbrida, estranha, que eles definiram como ‘autônomos’ e ‘autônomas’ e ‘empreendedores’ e ‘empreendedoras’. É um embuste!”, complementa.

Aquilo que poderia ser sinônimo de avanço civilizatório para estes/as trabalhadores/as transformou-se na criação de uma subcategoria de empregados e, pior ainda, colocou em risco atuais garantias trabalhistas, como a integridade do salário-mínimo. “Com relação ao salário-mínimo, o primeiro ponto nefasto é que ele cria uma sistemática que tende a reduzir o salário dos/as trabalhadores/as que já trabalham. Isto coloca em xeque, sim, trabalhadores recebendo menos do que o salário-mínimo. Também nesse ponto, o PL depõe contra a classe trabalhadora”, descreve.

Fotografia: Charles Soveral/Arquivo DMT

Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e autor de diversos livros sobre o mundo do trabalho. Entre outros, publicou recentemente Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (organizador, Boitempo, 2023), Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 (organizador, Boitempo, 2020), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida (volume IV) (Boitempo, 2019) e O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (Boitempo, 2018).

IHU – Dados do IBGE de 2023 apontam que em 2022 havia 600 mil trabalhadores de aplicativos com rendimentos inferiores a trabalhadores não plataformizados. O que esses números indicam sobre a realidade do trabalho no Brasil?
Ricardo Antunes – A primeira indicação importante é que esses 600 mil trabalhadores e trabalhadoras, que compreendiam esse contingente de aplicativos, já demonstra que não é algo pequeno. E eu tenho a intuição clara de que esse contingente cresce a todo dia, celeremente, e que, com certeza, esse número já é bastante superior a essa primeira investigação.

A primeira incursão empírica do IBGE foi muito boa e mostrou que os trabalhadores e as trabalhadoras de aplicativos trabalham muitas horas a mais do que a média dos/as trabalhadores/as regulamentados pela CLT e mostra também que seus salários são inferiores.

O que esses números indicam, portanto, sobre a realidade do trabalho no Brasil é que nós temos, hoje, uma combinação letal caracterizada pela presença de uma burguesia predadora. A burguesia brasileira, junto com os capitais globais que atuam aqui são predadores, porque eles seguem a lógica do capital financeiro.

Essa ação empresarial, conduzida pelo mais destrutivo de todos os capitais – o capital financeiro – indica que a realidade do trabalho no Brasil, a depender dos interesses do capital, é sempre de mais predação, mais exploração, mais espoliação e mais expropriação, em plena era de uma expansão célere do mundo informacional, digital, da inteligência artificial, da indústria 4.0 etc.

É uma fotografia viva de que, no Sul do mundo, mas também nos bolsões mais precarizados do Norte, o capital só pode avançar incrementando altamente a tecnologia, de modo a levar ao limite a exploração, espoliação e expropriação da classe trabalhadora.

IHU – O Executivo federal encaminhou ao Congresso uma proposta de regulação do trabalho de motoristas de aplicativos. Quais são os avanços e os limites do texto?
RA – O PL criado e proposto pelo governo Lula para regulamentar o trabalho dos motoristas de aplicativos é uma derrota cabal, se for aprovado. Por quê? Porque os seus (aparentes) pontos positivos são um remendo para tentar consertar o erro crucial.

Primeiro, o artigo 3 do projeto: o que essas plataformas, desde a Uber, Amazon, Amazon Mechanical Turk, Glovo, Deliveroo, 99, Cabify, todas elas, bem como outras formas de trabalho Airbnb, Google, Facebook, Meta etc., o que elas têm em comum? Elas se utilizam do trabalho desregulamentado. Ou seja, operam basicamente destruindo os direitos trabalhistas, não reconhecendo os direitos de assalariamento dessa classe trabalhadora. Fazem isso com base em um embuste ideológico muito bem arquitetado e sofisticado, típico de uma burguesia predadora da era financeira e digital.

Há uma massa imensa de trabalhadores e trabalhadoras desempregados, procurando desesperadamente qualquer trabalho – por isso que essas plataformas entram mais fortemente na periferia do mundo, no Sul do mundo, e nos países do Norte avançam muito mais nos países devastadoramente neoliberais; porque onde tem alguma forma mais estruturada de direitos do trabalho, elas têm dificuldades.

Elas podem se dar a esta construção porque existe, primeiro, uma força de trabalho desempregada em abundância, em escala global, e que é muito mais extensa no Sul do mundo.

Segundo, num contexto de alta tecnologia, que não para de se desenvolver desde os anos 1970, inicialmente o mundo da automação e o mundo informacional digital invadiram a produção industrial e, partir daí, na virada do século, elas invadiram o que prefiro chamar como a indústria dos serviços.

Atenção! Nós não vivemos em uma sociedade pós-industrial, como diziam intelectuais eurocêntricos equivocados, nós vivemos a era da monumental expansão da indústria de serviços.

Ora, os capitais conseguiram ter, simultaneamente, forças de trabalho sobrante, desesperadamente em busca de trabalho e alta tecnologia em ampla expansão. Faltava dar o golpe Frankenstein, “dar o pulo do gato”, e qual é esse pulo? As perguntas que esses grandes empresários fizeram, na sua origem, foi: como burlar a legislação protetora do trabalho. Foram consultar esses grandes escritórios de advocacia corporativa e concluíram que, para burlar e negar os direitos do trabalho, era preciso criar uma categoria híbrida, estranha, que eles definiram como “autônomos” e “autônomas” e “empreendedores” e “empreendedoras”. Tratava-se de um embuste, desde sua origem!

É um embuste porque o que presenciamos é uma proletarização acentuada desses trabalhadores e trabalhadoras. Todas as pesquisas acadêmicas (não aquelas financiadas pelas plataformas) demonstram que eles e elas trabalham, frequentemente, na periferia do mundo, oito, dez, 12 e 14 horas – eu mesmo entrevistei um trabalhador que chegou a trabalhar 20 horas em um dia e outro que me disse que tinha uma jornada de 30 dias no mês, e eu perguntei “que dia você descansa?” e ele disse “não descanso nenhum dia”.

Isto é, superexploração do trabalho, que precisa ter um “discreto charme” da burguesia predadora: viraram “empreendedores”, “autônomos” e, portanto, não têm direitos do trabalho. E, mais ainda, os trabalhadores e trabalhadoras devem comprar ou alugar o carro, a moto, a bicicleta – e tudo mais o que for instrumento de trabalho – comprar um celular, ter uma conexão de internet, comprar uma bag, no caso dos entregadores e cuidar dos seus veículos etc. É um processo que no limite volta às condições vigentes na era da acumulação primitiva, porque o capital nem sequer entra com o instrumental de trabalho. E foi assim que se forjou esse vilipêndio em relação ao trabalho.

Podemos chamar esse projeto de PL do Desastre do Trabalho no Brasil, um projeto que “abre a porteira” – lembra dessa expressão? – da devastação do Brasil. O atual presidente, que com razão tanto criticou a contrarreforma [trabalhista] do [Michel] Temer está criando um monstrengo assemelhado, inicialmente para motoristas de aplicativo, mas que tem potencial para se expandir para a classe trabalhadora que trabalha nos serviços, com o já estamos vendo em tantas atividades, como jornalistas, trabalhadoras dos cuidados, empregadas domésticas, professores, médicos, enfermeiras etc.

Isso porque, esse PL, no seu artigo terceiro, define juridicamente os/as trabalhadores/as como autônomos. Ora, fazer isto é o que querem (ou exigem) a Uber, a IFood, a Rappi, a Glovo, a 99, a Lyft e a Deliveroo, todas essas empresas que circulam no mundo e que são, muitas delas, muito poderosas. Basta citar o caso da Uber, por um lado, com todas as suas ramificações – Uber Eats, Uber Works, Uber Health e também a Amazon, inclusa a Amazon Mechanical Turk etc.

Então, quais são os avanços do texto? Em poucas palavras: ele dá os diamantes e o ouro para as grandes plataformas digitais e joga migalhas para os/as trabalhadores/as. E quando forem comer essas migalhas, percebem que estão estragadas. A previdência, que é crucial; a organização sindical é um direito dos trabalhadores e trabalhadoras, está indelevelmente vinculada ao reconhecimento da sua condição de assalariamento. Se não for assim, é embuste, como o PL 12. É por isso que o que é aparentemente positivo, se desfaz, vira engodo, pois será sempre usufruído pela metade, quando muito. Quem garante que o trabalhador uberizado vai efetivamente conseguir pagar a sua parte da previdência? E o que é o verdadeiro embuste, a aparência de autonomia, bem como a ideia de que as plataformas são empresas de tecnologia, ganha estatuto legal. A pergunta elementar é: quando se chama a 99 ou Uber, nós estamos em busca de transporte privado ou queremos aprender tecnologia? A resposta, qualquer criança sabe. É óbvio que essas são empresas de transporte de pessoas e não são fornecedores de tecnologia. E o PL 12, se aprovado, legaliza-se, então, o ilegal. Por isso ele tem que ser rejeitado ou retirado da pauta parlamentar. Até porque, se lá ficar, vai piorar. Eis o imbróglio criado pelo governo.

IHU – Houve uma divisão tripartite para a construção do texto do Projeto de Lei entre empresas de aplicativos, Estado e trabalhadores, mas, neste último caso, algumas lideranças foram excluídas. Como o senhor avalia a construção do texto?
RA – Não houve uma construção coletiva. Houve um início de uma discussão, que não aceitou uma participação livre do conjunto heterogêneo e polimorfo que caracteriza a categoria dos/as trabalhadores/as de aplicativos. E, além de não reconhecer essa heterogeneidade em sua plenitude, o governo já tinha uma proposta na mão, a das plataformas, que não aceitavam negociar o ponto crucial: o reconhecimento da subordinação, do assalariamento real, contemplados os direitos do trabalho. Esse é o ponto crucial: as plataformas não abrem mão do embuste, não aceitam e não reconhecem a condição de assalariados.

Eu soube que setores do Ministério Público do Trabalho saíram das negociações do PL, de representantes dos entregadores que também saíram ou não foram mais chamados para a negociação, pois se recusaram a legitimar o embuste. O resultado é que o PL está fazendo água por todos os lados, como estamos vendo, porque a recusa a esse projeto é muito grande, em vários setores, por motivos antagônicos, mas é uma recusa grande. Na balança, então, o governo, no essencial, ficou do lado das grandes plataformas, que continuarão a descumprir e burlar os direitos do trabalho; não pagar tributos; se definir como “prestadoras de tecnologia” etc. E assim encontram-se, hoje, entre as maiores corporações globais.

IHU – Como o senhor vê a criação de um sindicato de trabalhadores plataformizados? O que pode ser positivo e negativo à categoria?
RA – A criação de um sindicato nasce com a própria história de luta da classe trabalhadora. Foi assim que na Inglaterra, no século XVIII, as primeiras lutas levaram à criação dos sindicatos que se consolidaram legalmente a partir de 1824. Então, esta criação resulta da organização e da auto-organização da classe trabalhadora. Um sindicato dos entregadores aqui ou um sindicato dos motoristas ali, como trata esse PL – que, repito, os entregadores tiveram a coragem, a consciência e a lucidez de recusar – propõe e incentiva a criação, por cima, de sindicatos.

Não cabe ao governo, “por cima”, criar sindicatos. Quem vai criar são os/as trabalhadores/as. Existe uma recusa muito forte aos sindicatos por parte de amplos setores da categoria, porque o ideário neoliberal ensina, desde meados do século passado, que o sindicato é inimigo da classe trabalhadora e que, portanto, o sindicato só atrapalha. Muitos dos trabalhadores mais jovens hoje estão imbuídos dessa concepção antissindical, mas eles percebem na luta que individualmente não são nada; coletivamente eles têm força. Para ter uma estrutura coletiva – e o Breque dos APPs mostrou isso – é preciso ter formas de organização.

Neste processo, por exemplo, nasceu a Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos – ANEA, que é um exemplo muito importante de criação de um embrião de entidade representativa dos/as trabalhadores/as de aplicativos de entrega.

Em 2019, houve discussões, que chegaram até um encontro internacional na Inglaterra, de trabalhadores/as uberizados, motoristas da Uber, que discutiu a criação de um sindicato internacional. Repito: não será pela via de um decreto do governo, mas pela conscientização, organização e auto-organização da classe trabalhadora. Através de um movimento, e não por decreto.

IHU – Em termos de garantias aos trabalhadores, o que a ausência de direitos previstos no artigo 7º da Constituição, como 13º salário, participação nos lucros e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) indica?RA – Indica a burla e que essa proposta é essencialmente uma proposta que atende às pressões do grande capital financeiro que comanda essas plataformas, que tem uma relação predadora, espoliadora, expropriadora e exploradora em relação à classe trabalhadora, que é tratada como força de trabalho: funciona, fica; não funciona, não fica. Lembre-se da primeira resposta: com uma massa imensa de trabalhadores/as desesperados por qualquer emprego, as plataformas se utilizam dessa condição.

Então, não ter férias, 13º salário, descanso semanal, jornada regulamentada e fundo de garantia mostra que este projeto é regressivo, um projeto que retorna – se deixarmos seguir adiante – a níveis de exploração do trabalho ao século XIX. Não por acaso que as palavras “bonitinhas”, como crowdsourcing embutem a sua origem. O outsourcing, por exemplo, era um sistema de trabalho do século XIX na Inglaterra, onde a classe trabalhadora trabalhava em casa, fora do espaço da fábrica, sob condições abjetas e sem nenhum direito. É um embuste e é isso que significa esse PL. Deve, por isso, ser retirado ou rejeitado. E essa é uma luta que interessa diretamente a toda classe trabalhadora.

IHU – Considerando os termos dessa regulação e a ausência de direitos, trata-se da criação de uma subcategoria de empregados?
RA – É pior do que isso. Trata-se da criação de uma terceira categoria, porque se abre à “lei da selva”. A partir de amanhã, todos os ramos e setores, não só as plataformas, vão começar a exigir do Supremo Tribunal Federal – STF, que é neoliberal no que diz respeito às questões do trabalho. O mesmo Supremo que teve coragem de tomar uma postura antifascista, é absurdamente neoliberal, o que não é uma contradição – nós sabemos, quem estuda e conhece o tema que estamos discutindo.

É a criação de uma terceira categoria sem direitos. Portanto, é dar plenitude à contrarreforma de 2017 do Temer, que propôs o trabalho intermitente, que o Lula na época tanto criticou. Hoje, o que o Lula está fazendo, como já disse acima, é legitimar o ilegal, que não é frase jurídica, mas uma frase sociológica e crítica: estão legalizando o que é inaceitável de ser legalizado, estão criando uma terceira categoria que abre a porta para desmontar o conjunto da classe trabalhadora. Basta imaginar, nas próximas eleições, se voltar uma aberração tipo Temer, ou uma versão abjeta do fanfarrão que vai para a prisão.

IHU – Qual a força dos trabalhadores para superar esta encruzilhada e garantir condições mais humanas de trabalho?
RA – Luta, organização, auto-organização, debate coletivo, valendo-se do WhatsApp para conectar com os companheiros e companheiras, conversando naqueles espaços durante as horas em que ficam esperando pelo trabalho que não chega.

Por exemplo: todos nós já entramos em uma loja de comércio, o trabalhador, que está na loja e vai te atender, estava recebendo com ou sem cliente. Por que os/as trabalhadores/as motoristas não recebem se estão disponíveis e conectados? Por certo, estas questões afloram em sua vida cotidiana, em suas conversas, em suas ações e lutas.

A empresa tem o maquinário algorítmico e a inteligência artificial, todos esses artefatos do mundo informacional digital, rigorosamente controlados pela engenharia do capital, pelos nefastos CEOs, que modulam as formas da exploração. Todos nós sabemos que isso é para se jogar contra os/as trabalhadores/as. O desafio são as lutas. Cito um exemplo real e vivo: o Breque dos APPs, de julho de 2020, entrou para a história da classe trabalhadora brasileira como a primeira greve dos trabalhadores entregadores de aplicativos. Só será possível superar essa encruzilhada através da força coletiva, da organização, da consciência e de luta. Não é uma coisa que a classe trabalhadora nasce sabendo. E algo que se constrói em sua história, desde a Revolução Industrial na Inglaterra.

Os motoristas das grandes plataformas, como Uber, Cabify e 99, até recentemente no Brasil, foram ex-operários, professores; eu já entrevistei veterinário, engenheiro químico e até um pequeno proprietário de indústria, porque ela estava parada na pandemia e ele foi trabalhar de Uber. É um amálgama de subjetividades, de experiências, não é só o antigo motoqueiro que tinha uma tradição já organizada de sindicato; é um amálgama. Têm jovens, muito jovens, que se conectam com uma plataforma, alugam uma motocicleta para fazer esse trabalho, não dirigiam antes, não eram motoqueiros. Têm estudantes que alugam bicicletas para pagar os estudos. Portanto, não vai nascer do nada um sindicato. Uma entidade desse gênero será resultado de muita experiência, luta, discussão e organização coletiva.

IHU – Há uma questão correlata a toda esta discussão que é, precisamente, o salário-mínimo. O senhor avalia que o governo colocou em risco o piso do salário-mínimo (condicionando-o às horas trabalhadas), que, apesar de seus limites, tem se mostrado uma das principais políticas benéficas à classe trabalhadora?
RA – Colocou em risco, sim. A contabilização dessas horas trabalhadas mostra, por exemplo, que os/as trabalhadores/as motoristas terão uma remuneração menor do que tinham antes. O que explica por que motivo esses motoristas não querem CLT e nem sindicato é que muitos estão imbuídos do milagre neoliberal. Seria um milagre, depois de tantos desastres, derrotas da classe trabalhadora, pois nós vivemos uma era de contrarrevolução preventiva burguesa (conforme nos ensinou Florestan Fernandes) só que hoje ela é movida pelo capital financeiro. Seria um milagre que esses trabalhadores tivessem um pensamento diferente. Por exemplo, se estou desempregado e compro uma moto (ou um carro) e vou para uma plataforma, eu não pergunto os meus direitos; eu vou porque preciso pagar o veículo que comprei ontem e preciso trabalhar para sobreviver.

Com relação ao salário-mínimo, o primeiro ponto nefasto é que ele cria uma sistemática que tende a reduzir o salário dos/as trabalhadores/as que já trabalham. Isto coloca em xeque, sim, trabalhadores recebendo menos do que o salário-mínimo. Também nesse ponto, o PL é contra a classe trabalhadora.

IHU – Uma pergunta que não pretende ser consoladora, mas que busca ver a realpolitik do mundo do trabalho contemporâneo: nos atuais termos, o projeto foi aquele possível de se chegar ou era possível avançar?
RA – Era necessário, imperioso, e ainda há tempo, de termos uma regulamentação efetiva e garantidora de direitos do trabalho e da previdência. É uma questão fundamental. Todos nós sabemos que o Lula nasceu e apareceu na cena social e política, em meados dos anos 1970, como uma liderança operária-metalúrgica muito importante. Não é possível imaginar que aquele que foi, no passado, o mais importante líder operário e sindical da história da classe trabalhadora no século XX no Brasil não tenha consciência de que este projeto atende às empresas. Os entregadores, com lucidez, deram um sinal contrário e dou outro aqui.

Força para os entregadores, porque quando esse embuste vier a ser imposto para eles, será preciso recusar. Os entregadores têm mostrado mais agilidade em formas de luta do que os motoristas, por vários motivos que aqui não há tempo de discutir.

Portanto, o projeto não é o que foi possível, porque esse projeto é pior do que o da Tabata Amaral e daquele senador, que gosta mesmo de apoiar o governo autocrata e fascista, o qual só não deu o golpe por muito pouco, como estamos sabendo agora. É inaceitável esse projeto, ele está neste nível e é preciso e imperioso avançar em direção ao reconhecimento da subordinação, do assalariamento real e do reconhecimento pleno dos direitos do trabalho, preservada a flexibilidade de horários, que tipifica esta atividade. Mas flexibilidade com direitos!

Pensando em motoristas e entregadores, quando perguntados se querem CLT, a maioria diz não, se perguntar se querem sindicato, boa parte diz não. Agora, se perguntar se eles querem o descanso semanal pago, dizem que sim. A mesma coisa quando perguntam se eles gostariam de ter férias pagas de um mês, 13º salário e condições para usufruir de uma previdência na aposentadoria, eles dizem que sim. Era isso que era possível fazer.

A CLT já permite a muitas categorias que o trabalho seja flexibilizado na jornada, mas não flexibilizado nos direitos. Esse monstrengo do governo Lula mantém a precariedade completa das condições de trabalho. O motorista ou entregador pode trabalhar até 12 horas? É um acinte, pois a jornada no Brasil é de 44 horas, sendo de 40 horas para vários setores. Ter 12 horas ou mais, é outro vilipêndio inaceitável.

Segundo ponto: a plataforma tem direito de demitir, suspender ou bloquear desde que justifique. Mas justifique como? O governo sabe muito bem que no mundo dos algoritmos os/as trabalhadores/as não têm um gerente da empresa para conversar, não tem um espaço físico de contato. Estamos vivendo uma era algorítmica, da inteligência artificial, e os/as trabalhadores/as não sabem como funciona, quem opera e quem programa. Alguém conhece algum programa ou algoritmo dessas empresas que diz “Dirija lentamente, siga todas as regras de trânsito, teu tempo de entrega não vai contar, trabalhando ou não as mesmas horas por dia você vai receber o mesmo salário”. Não! É a gamificação. Isto é, quem rala e se mata vai adiante; quem não faz assim, não segue. Portanto, esse projeto é nefasto. E necessário avançar mais, com outro projeto.

E aqui trago outro ponto importante. Se o projeto for para a Câmara e o Senado, ele será aprofundado e se tornará ainda mais devastador. Se o governo tiver o mínimo de consciência histórica da classe trabalhadora, ele retira esse projeto de lei. O que o Lula chamou – ele estava com a cabeça em outra coisa, talvez no Corinthians (eu falo aqui como corinthiano) – do “mais importante projeto” do mundo ou algo parecido, que envolve empresas/plataformas e trabalhadores/as uberizados é outro embuste. Ele é pior do que todos os projetos que foram feitos ou estão em discussão na Espanha, Inglaterra, Itália, Portugal, França, Alemanha e União Europeia.

Na semana passada, o projeto da União Europeia, por exemplo, reconheceu um ponto crucial: eles são empregados. Essa é a questão fundamental.

IHU – Em novembro de 2020, em entrevista ao IHU, o senhor afirmou que “a expansão do trabalho uberizado nos levará à escravidão”. Olhando em perspectiva o cenário de quatro anos atrás e hoje, o senhor mantém sua afirmação? Por quais razões?
RA – Eu já concedi muitas entrevistas ao IHU, é uma revista muito importante, que está sempre muito em sintonia com as questões cruciais do Brasil e do mundo e uma revista que acompanha as temáticas do trabalho. Eu já fiz, certamente, muitas entrevistas. Mas faço uma pequena adição à pergunta. Na entrevista eu disse: “a expansão do trabalho uberizado nos levará à escravidão digital”, faltou o “digital”. Inclusive, assim está no título, que foi bem dado por quem editou essa matéria.

Eu mantenho a afirmação e agudizo: todos esses/as trabalhadores/as são prisioneiros de uma máquina algorítmica, que eles não têm ideia como funciona, assim como nós também não temos. Alguém aqui já viu um algoritmo? Ele é como um relógio que pode alterar as horas? Não. O algoritmo é um inferno na mão dos CEOs, que são os predadores.

Evidentemente que os CEOs são uma parte das classes dominantes. Não são os proprietários, mas os agentes fundamentais que mantêm a hierarquia de controle do trabalho sob o capital. Ou seja, é o capital sobrepondo-se ao trabalho.

A escravidão digital é um traço dos nossos tempos. Nenhum desses motoristas consegue trabalhar sem ter uma meta, visando receber um valor X no fim do dia. Mas, para atingir a meta, ele não sabe quanto vai receber. Quanto as empresas descontam? O mundo algorítmico e digital sequer mostra o que os motoristas ganharam e quanto lhes foi descontado.

O nosso livro Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (Boitempo, 2023) com pesquisas densas e pesquisadores nacionais e internacionais, bem como nosso trabalho anterior, coletivo, que originou o livro Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 (Boitempo, 2020), ambos feitos em um Projeto com o Ministério Público de Campinas e região (MPT-15) mostram que este comando maquínico, digital, informacional e algorítmico faz com que o trabalhador não saiba nem o quanto vai receber. Ele vai saber o valor recebido quando vem o pagamento final e ele não pode perguntar por que é x e não y. Isso porque o comando mais global da sociedade é do capital financeiro, o mais destrutivo de todos. E os artefatos digitais e informacionais são projetados, programados e utilizados para impor a exploração, a expropriação e a espoliação do trabalho estão dados.

A exploração é evidente: trabalho de 12, 13 horas por dia, quando não mais. A expropriação é a retirada de todos os direitos. E a espoliação é que, para entrar nessas empresas, endividam-se com o capital financeiro, para pagar a prestação da moto, carro ou bicicleta, etc.

E os/as trabalhadores/as, endividados, não vão discutir se as empresas dão direitos ou não; querem começar a trabalhar e se envolvem na lógica da gamificação. É possível começar a trabalhar às 6h, às 8h ou às 10h da manhã, mas essa é a única “autonomia” que tem, mas vão trabalhar as horas necessárias para cumprir a meta. Foi isso que denominei como “escravidão digital”.

Em 2018, no livro O privilégio da servidão, quando cunhei a expressão, tínhamos um número menor de trabalhadores em plataformas, entregadores, trabalhadoras domésticas, professores, médicos, jornalistas, advogados, trabalhadores do cuidado, eletricista etc. Hoje nós temos uma massa de trabalhadores que trabalham por aplicativo e que é prisioneira dessa escravidão digital.

IHU – Deseja acrescentar algo?
RA – Agradeço a entrevista, o cuidado na elaboração das questões e desejo vida longa para essa publicação do IHU que honra o debate sério e qualificado da humanidade, em especial da classe trabalhadora.

Fonte: Blog da Boitempo, com Instituto Humanitas
Data original da publicação: 22/03/2024

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/pl-dos-aplicativos-urge-evitar-a-iminente-derrota-cabal-dos-trabalhadores-e-trabalhadoras-entrevista-com-ricardo-antunes/

Trabalho algoritmizado sob o verniz do empreendedorismo

Relatório de Transparência Salarial mostra desigualdades de gênero

A primeira divulgação do Relatório de Transparência Salarial, resultado de lei aprovada no ano passado, mostra que, em média, as mulheres recebem 19,4% a menos do que os homens. Enquanto elas ganham R$ 3.904,34, eles têm remuneração de R$ 4.846,39. As diferenças se ampliam no recorte por raça.

O documento (confira aqui a apresentação) foi apresentado nesta segunda-feira (25) pelos ministérios das Mulheres e do Trabalho e Emprego (MTE). Dessa forma, o governo lembra que se trata do primeiro relatório sobre o tema já publicado no país com recorte de gênero. A Lei 14.611 entrou em vigor em julho. Meses depois, em novembro, foi publicado decreto com a regulamentação.

Quase 50 mil empresas

O Relatório de Transparência Salarial traz informações de 49.587 empresas com 100 ou mais funcionários. Juntas, somam quase 17,7 milhões de empregados (17.675.834). Desse total, 39,5% são mulheres. Do universo de estabelecimentos que apresentaram os dados ao governo, 73,3% têm pelo menos 10 anos de existência.

De acordo com as informações, as mulheres negras, além de estar em menor número, recebem menos do que as brancas. Assim, no primeiro caso, a remuneração média é de R$ 3.040,89, enquanto a das não negras é de R$ 4.552,45 – diferença de 49,7%. Entre os homens, os negros recebem em média R$ 3.843,74 e os não negros, R$ 5.718,40 – 48,77%.

Políticas de contratação e promoção

Ainda de acordo com o relatório de transparência, 51,6% das empresas possuem planos de cargos e salários, enquanto 38,3% adotam políticas para promoção de mulheres a cargos de direção e gerência. Já 32,6% têm políticas de apoio à contratação de mulheres, e 26,4% adotam incentivos para contratação de mulheres negras. Em relação à contratação de mulheres LGBTQIAP+, o número cai para 20,6%.

Só 23,3% das empresas incentivam o ingresso de mulheres com deficiência. E 5,4% têm programas específicos de incentivo à contratação de mulheres vítimas de violência. “Poucas empresas ainda adotam políticas como licença maternidade/paternidade estendida (17,7%) e auxílio-creche (21,4%)”, informam os ministérios.

Diferença inclusive na direção

Nas funções de direção e gerência, as mulheres recebem o equivalente a 74,8% da remuneração masculina. Entre funções com nível superior, 72%. A proporção cai para 66,8% no nível médio e sobe a 78,5% entre serviços administrativos. Corresponde a 63,9% em atividades operacionais.

Entre as unidades da federação, o Piauí (323 empresas e 96.817 trabalhadores) tem a menor desigualdade. Elas recebem 6,3% a menos. A média é bem abaixo da nacional (R$ 2.845,85). A maior remuneração no país é do Distrito Federal: R$ 6.326,24. Já a maior desigualdade foi apurada no Espírito Santo, onde as mulheres ganham 35,1% a menos.

Contestação no STF

Em São Paulo, estado com maior número de empresas participantes (16.536), a proporção é semelhante à média nacional. As mulheres recebem 19,1% a menos do que os homens.

As confederações patronais do comércio (CNC) e da indústria (CNI) recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra trechos da lei. A medida foi criticada pelas centrais sindicais. O governo publicou uma cartilha para tirar dúvidas sobre a nova legislação.

Fonte: Rede Brasil Atual
Data original da publicação: 25/03/2024

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/relatorio-de-transparencia-salarial-mostra-desigualdades-de-genero/

Trabalho algoritmizado sob o verniz do empreendedorismo

Motoristas de apps resistem a projeto de regulamentação

Motoristas de aplicativos estiveram em peso nesta quinta-feira (21) na Câmara dos Deputados para debater a proposta do governo que regulamenta o trabalho da categoria em plataformas como Uber, 99 e inDrive. A discussão ocorreu em uma audiência pública na Comissão de Legislação Participativa, presidida pelo deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), e contou com a presença de representantes dos profissionais, pesquisadores e parlamentares.

O PLP 12/2.024 não estabelece vínculo empregatício entre trabalhadores e as plataformas e define uma remuneração mínima aos motoristas de R$ 32,10 por hora trabalhada. O valor é proporcional ao salário mínimo atual, de R$ 1.412, e considera apenas o tempo das corridas, não o período em que o profissional espera. A proposta define que a jornada de trabalho tenha 8 horas diárias, com duração máxima de até 12 horas em uma mesma plataforma. O texto preserva a possibilidade de os profissionais atuarem nos aplicativos que desejarem, sem contrato de exclusividade e com autonomia para definirem seus horários e carga de trabalho.

O projeto do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) abarca também questões previdenciárias. O texto possibilita que os motoristas passem à condição de contribuintes individuais, com a classificação de “trabalhador autônomo por plataforma”, e estabelece alíquotas previdenciárias de 7,5% para o profissional e 20% para as empresas sobre o salário de contribuição. A responsabilidade do recolhimento ficará a cargo das plataformas. O projeto define ainda que mulheres terão direito a auxílio-maternidade.

A proposta de regulamentação, entretanto, enfrenta forte resistência da categoria. Na audiência pública, motoristas de apps criticaram a remuneração por hora trabalhada. “Do que adianta pegar uma viagem em que a plataforma me oferece ganhar R$ 13, se vou percorrer 20 km e encarar engarrafamento [ganhando a mesma coisa]? A gente faz mais do que esse valor mínimo. A gente quer muito ganhar pelo quilômetro rodado e pelo minuto trabalhado, porque da forma que está hoje não dá. A gente definhando cada vez mais nossos veículos. […] As plataformas não querem nos ouvir. Falam que são empresas de intermediação, mas na verdade não são. Elas são nossos patrões, que dizem o que pode ser feito”, afirmou à Agência Pública o motorista Ítalo Araújo.

Os profissionais protestaram também contra os sindicatos da categoria que participaram da elaboração do projeto. Parte dos presentes levou faixas em que era possível ler a frase “sindicato não me representa”. Eles afirmam que os motoristas não sindicalizados não foram ouvidos pelo grupo de trabalho durante o processo de negociação.

Motoristas de apps cobraram ainda que o regime de tramitação da proposta seja alterado. O governo enviou o projeto com urgência constitucional. Nessa modalidade, que só pode ser solicitada pela Presidência da República, Câmara e Senado têm 45 dias cada para analisar a proposta, caso contrário ficam impedidos de votar outros projetos.

O deputado Glauber Braga declarou que irá requisitar a retirada do pedido de urgência para que a proposta seja analisada em um tempo maior e com mais discussões.

Sentado entre os motoristas de apps, o deputado Daniel Agrobom (PL-GO) foi várias vezes saudado como parceiro da categoria e chegou a ser aplaudido de pé pelos motoristas. O parlamentar é autor do PL 536/2024, uma alternativa ao projeto enviado pelo governo cujo diferencial está na remuneração mínima, que estabelece como parâmetro o quilômetro rodado e o minuto trabalhado. Também não há vínculo empregatício ou contribuição previdenciária obrigatória.

À Pública, Agrobom afirmou que o projeto do governo visa “mais a arrecadação de tributos do que a valorização dos motoristas” e que, por isso, a sua proposta conta com a simpatia da categoria.

Há quem discorde. Abel Santos, diretor da Associação dos Trabalhadores de Aplicativos e Motociclistas do Distrito Federal e Entorno (Atam-DF), considera que o projeto não preenche lacunas relacionadas à previdência e à segurança do trabalho. “A partir do momento que eu não tenha segurança, profissionalização para exercer o trabalho de forma segura, eu encargo mais o Estado usufruindo do SUS. Se eu perder uma perna, não piloto mais. Se eu perder um braço, não dirijo mais. E quem vai arcar com isso?”, provocou.

Fonte: A Pública
Texto: Gabriel Máximo
Data original da publicação: 22/03/2024

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/motoristas-de-apps-resistem-a-projeto-de-regulamentacao/