por NCSTPR | 22/07/24 | Ultimas Notícias
Ao longo das últimas décadas, a atuação do BC (Banco Central) tem permanecido bastante tempo sob o holofote da imensa maioria da sociedade. Até mesmo a grande imprensa especializada em assuntos econômicos e financeiros não tem como escapar da realidade escandalosa de nosso patamar de taxa de juros oficial. Por mais que os grandes meios de comunicação mantenham relações bastante incestuosas com o universo do financismo, é impossível não tratar da irracionalidade dos níveis de nossa Selic e mesmo da taxa real de juros, aquela que se obtém por meio da subtração da inflação da taxa nominal.
Paulo Kliass*
O fato inegável é que o Brasil tem se mantido ao longo dos anos como verdadeiro paraíso para o povo das finanças globais. O processo intenso de financeirização e de bancarização de nossa sociedade tem operado como alicerce para o incremento da espoliação que o sistema financeiro promove sobre o conjunto dos demais ramos da economia e das classes sociais.
A existência de fenômeno impressionante de concentração e de oligopolização dos conglomerados que atuam na área deveria provocar também olhar e intervenção mais arguta das instituições estatais encarregadas de tais funções.
É importante lembrar que as funções do BC em nossa sociedade e na economia vão muito além do que a responsabilidade legal pela definição da Selic. O Copom (Comitê de Política Monetária) é composto exatamente pelos 9 membros que integram a diretoria do banco.
Assim, eles se reúnem a cada 45 dias para discutir a conjuntura econômica brasileira e internacional com o intuito de estabelecer os níveis da taxa referencial de juros. No entanto, o BC é o órgão regulador e fiscalizador do sistema bancário e financeiro como um todo, além de ser responsável pela condução da política cambial e dos diferentes regimes e sistemas de crédito existente no País.
Exploração do financismo
Na condição de organismo similar à agência reguladora, o banco deveria atuar para evitar distorções no mercado bancário e de crédito, tendo em vista a enorme concentração de poder em mãos de pouquíssimas empresas no setor.
Os mastodontes privados que operam no financismo em nossas terras podem ser contados nos dedos das mãos. A esses se somam os bancos públicos federais, que deveriam se comportar como instituições de crédito governamentais e não se orientarem pela lógica dos concorrentes privados.
O BC não disponibiliza informações mais detalhadas em seu “Relatório da Economia Bancária”. No entanto, na edição relativa ao ano de 2023, o que se pode observar é tremenda concentração nos 4 maiores grupos de bancos. Assim, a porção comandada pelo conjunto de BB (Banco do Brasil), CEF (Caixa Econômica Federal), Bradesco e Itaú representam sempre índices entre 55% e 60% para variáveis relevantes, como total de depósitos totais, ativos totais e volume das operações de crédito.
Caso fossem incluídos outros grandes grupos no cálculo, os níveis de concentração ficariam ainda mais evidenciados. No que se refere a lucros anuais, por exemplo, a participação dos 5 maiores grupos no total dos ganhos do sistema foi de 74%.
Ora, sob tais condições, a missão de órgão regulador e fiscalizador é assegurar condições mínimas de concorrência e de ética no funcionamento dos chamados “agentes econômicos” para evitar super exploração dos mesmos sobre a parte mais fraca da relação.
Esse é o caso típico de ocorrência de abuso do poder econômico dos bancos sobre o conjunto dos clientes, sejam essas empresas, famílias ou indivíduos. Porém, historicamente, o BC sempre fez cara de paisagem sobre tal quadro de existência da mais completa assimetria de poder entre as partes envolvidas na relação econômica e financeira.
Spreads abusivos e lucros exorbitantes
Uma das evidências mais cristalinas de tal distorção pode ser identificada na prática dos chamados spreads. Trata-se da diferença observada entre as taxas de captação de recursos no público e as taxas de empréstimos praticadas pelos bancos. Nesse quesito, o Brasil também ocupa tristemente posição de destaque no campeonato mundial da modalidade.
E em nenhum momento ao longo de seus quase 60 anos de existência o BC esboçou qualquer iniciativa para controlar essa prática deletéria. O que mais impressiona é a capacidade de acomodação da sociedade brasileira a tais condições, como havia ocorrido com níveis elevados de inflação ou de financeirização.
A flagrante condição de anormalidade do sistema sobrevive e com o tempo essa se “naturaliza”, em prejuízo da absoluta maioria que se percebe como dependente dos grandes bancos.
Os gráficos abaixo exibem a média de spreads praticados pelo sistema. O campeão absoluto é o relativo ao cartão de crédito rotativo. Ali as taxas para o período 2022 a 2024 sempre estiverem próximas ou superiores a 400% ao ano. Uma loucura!

Em seguida, aparecem os spreads envolvendo as taxas do cheque especial. Aqui também os bancos cobram dos clientes algo entre 120% e 140% de juros ao ano.

Finalmente, os diferenciais observados nas operações de crédito pessoal apresentam taxas próximas a 40% ao ano.

Ora, em todas estas modalidades, o BC jamais atuou para impedir tais práticas, que se caracterizam por super exploração econômica e financeira. Afinal, esta deveria ser a primeira medida a ser adotada por agência reguladora, cuja direção não esteja capturada pelos interesses dos conglomerados sobre as quais deveria vigiar e controlar. O mesmo raciocínio poderia ser realizado no que se refere à cobrança de tarifas abusivas por tais empresas.
Assim, o que se percebe é que a agenda da direção do BC deveria incorporar série de outros temas relevantes, que vão muito além do estabelecimento do patamar da Selic.
Espera-se que a nomeação do próximo presidente da instituição, a partir de dezembro e a composição da direção da mesma com maioria de membros nomeados pelo presidente Lula seja o início de mudança. Ou seja, o começo de gestão do BC que atenda efetivamente aos desejos e anseios da maioria da população e das empresas que atuam o setor real da economia.
(*) Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
DIAP
https://diap.org.br/index.php/noticias/artigos/91932-bc-muito-alem-da-selic
por NCSTPR | 22/07/24 | Ultimas Notícias
Os big brothers estão observando você. A mudança sistêmica que estamos atravessando é extremamente lucrativa para os gigantes da gestão de ativos, mas também para a indústria das comunicações que captura e vende os nossos dados privados e nos conduz pelo nariz. O acesso deles a todas as nossas telas e ao nosso comportamento on-line nos aproxima de 1984.
Ladislau Dowbor*
Estamos em meio à reorganização da nossa economia, na qual os proprietários de plataformas estão aparentemente desenvolvendo poder que pode ser ainda mais formidável do que o dos proprietários de fábricas no início da Revolução Industrial. — Julieta Schor, 20201
Imagine 1 mundo em que cada pessoa do planeta tenha livre acesso à soma de todo o conhecimento humano. — Jimmy Wales, Wikipédia, 7 de março de 2024
O conhecimento é imaterial e, como tal, obedece a regras diferentes, em comparação com bens e serviços materiais. A presença dominante do conhecimento na economia moderna muda as regras.
André Gorz resume: “Se não for uma metáfora, a expressão ‘economia do conhecimento’ significa perturbações importantes no sistema econômico. Indica que o conhecimento se tornou a principal força produtiva e que, consequentemente, os produtos da atividade social já não são principalmente produtos do trabalho cristalizado, mas sim do conhecimento cristalizado. Indica também que o valor de troca das mercadorias, sejam essas materiais ou não, já não é determinado, em última análise, pela quantidade de trabalho social geral que contém, mas, principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimento geral, informação e inteligência. É este último, e não mais o trabalho social abstrato mensurável de acordo com um único padrão, que se torna a principal substância social comum a todas as mercadorias. É isto que se torna a principal fonte de valor e lucro e, portanto, segundo vários autores, a principal forma de trabalho e capital.”2
O que o mundo do dinheiro e o mundo do conhecimento têm hoje em comum é que ambos são, precisamente, imateriais, ou “intangíveis”, como encontramos em outros autores. Ou seja, ambos circulam na internet na velocidade da luz, na forma de sinais magnéticos, e no espaço planetário, alterando a antiga “territorialidade”, local de produção, fábrica ou fazenda, residência dos trabalhadores, espaços de socialização. O fenômeno se manifesta de forma ampla nas áreas que atualmente estão interligadas com comunicação e informação, como vemos nos gráficos abaixo:3

O gigantismo está ligado à característica técnica básica dos sinais magnéticos, que circulam no planeta quase que instantaneamente, e o domínio dos mais fortes rapidamente se torna planetário. O grau de oligopolização das atividades é evidente, e aqui se trata também dos sinais imateriais, magnéticos, da comunicação e da informação, em que os volumes, na era dos computadores modernos, já não são problema. A indústria da comunicação e da informação torna-se dominante, gerando a tão estudada batalha pela capacidade de atenção das pessoas, com o caos crescente de informação real, notícias falsas, marketing comportamental e sistemas de vigilância baseados na invasão de comunicações pessoais.
Ainda mais impressionante é a osmose gradual dos subsistemas da economia imaterial, dos sinais magnéticos, quer representem dinheiro, conhecimento, informação ou comunicação, todos tendo em comum, nesse eixo principal para o qual se orientam a economia e a apropriação de valor, o fato de banharem o planeta, chegarem a qualquer pessoa e serem controlados por número limitado de megacorporações. É interessante, nesse sentido, que a Amazon trabalhe com acesso a informações para terceiros, além da intermediação comercial, enquanto, por sua vez, a própria Amazon — mas também Google, Facebook, Apple, Microsoft — é parcialmente controlada pelos 3 maiores gigantes financeiros, BlackRock, Vanguard e State Street. Isso cria universo de controle multissetorial, com impacto planetário.
E não é secundário que também sejam predominantemente norte-americanos e estejam ligados à NSA e a outros sistemas de informação política, gerando a guerra contra a Huawei, Tiktok e outras corporações chinesas: os “mercados” se tornaram mais políticos, a política se tornou mais uma ferramenta para as corporações. Em outras palavras, ao rentismo que drena os recursos dos acionistas no topo da pirâmide financeira global, devemos acrescentar o controle algorítmico das pessoas e a submissão do universo produtivo à lógica do acionista vinculada à maximização de dividendos, e cada vez menos da parte interessada. O rentismo se torna um modo de produção. Esse não substitui as empresas tradicionais, sejam elas industriais, agrícolas ou de vários tipos de serviços, ou mesmo corporações privadas de saúde, ou universidades, mas as submete à sua lógica. Não se trata apenas de dreno de recursos e da formação de poderosa elite rentista global: esse muda profundamente a forma como nos organizamos como sociedade.

O Facebook ganha 98,1% do seu dinheiro por meio de publicidade. Pode nos parecer gratuito, mas as empresas pagam a Zuckerberg e esse dinheiro é incorporado nos custos de tudo o que produzem. E pagamos tudo na compra dos produtos dos serviços. Em 2022, a Alphabet teve lucro líquido de 21,1%; a Meta, 19,9%; a Apple, 25,3%, e a Microsoft, 34,1%.4 Esses lucros estão embutidos nos preços que pagamos. Novo relatório que examina as causas da inflação demonstra que a ganância corporativa e o aumento dos salários dos CEO levaram a custos superiores ao necessário para os consumidores americanos nos últimos meses.
O relatório, da organização progressista Groundwork Collaborative, constatou que, somente nos 2 últimos trimestres econômicos, 53 centavos de cada dólar de aumento de preços inflacionários foram devidos a lucros corporativos.”5 Na comunicação e em atividades semelhantes que envolvem intercâmbio, você precisa usar o veículo que os outros usam, ou ficará isolado. Isso se torna “monopólio de demanda”, e eles cobram o que querem. A propriedade privada, na ausência de regulamentação ou concorrência, leva a sistema em que esses o conduzem pelo nariz.
Há enorme contradição entre o fato de que o conhecimento em sua forma digital pode ser transformado em universo mundial de acesso aberto, enriquecendo a todos, e a guerra das principais corporações Gafam para chamar sua atenção e manipular seu comportamento. Isso resulta na deformação de nossas prioridades, conforme os interesses corporativos. Um exemplo é a explosão do câncer: “A previsão é de mais de 35 milhões de novos casos de câncer em 2050, um aumento de 77% em relação aos 20 milhões de casos estimados em 2022. O rápido crescimento da carga global de câncer reflete o envelhecimento e o crescimento da população, bem como as mudanças na exposição das pessoas a fatores de risco, vários dos quais estão associados ao desenvolvimento socioeconômico. O tabaco, álcool e obesidade são os principais fatores por trás do aumento da incidência de câncer, sendo que a poluição do ar ainda é um dos principais fatores de risco ambiental.”6 Bem, tabaco, álcool e obesidade estão prosperando, com marketing poderoso, mensagens individualizadas e muito sofrimento.
O controle da comunicação também está nas mãos dos principais fundos de gestão de ativos. “O setor é dominado por apenas 3 gigantes gestores de ativos americanos — BlackRock, Vanguard e State Street, as ‘Três Grandes’ — sendo a BlackRock o claro líder global. Em 2017, as Três Grandes juntas tornaram-se as maiores acionistas de quase 90% das empresas do S&P 500, incluindo Apple, Microsoft, ExxonMobil, General Electric e Coca-Cola. A BlackRock também possui grandes participações em quase todos os megabancos e grandes meios de comunicação.”7 Esses também são os principais acionistas das corporações Gafam. Para que conste, Larry Fink, da BlackRock, administra 10 trilhões de dólares, enquanto o orçamento de Biden é de 6 trilhões de dólares.
Estamos, portanto, diante de acesso permanente à nossa atenção consciente (a indústria da atenção), em oligopólio de escala mundial, com marketing comportamental adaptado às nossas características individuais, atingindo bilhões, centrado na maximização dos retornos financeiros (independentemente do impacto sobre nossa qualidade de vida ou sobre os desastres ambientais) e canalizando enormes retornos para o 1% mais rico, com amortecedor político de classe média alta nos 10% mais ricos.
Comunicação, informações privadas, marketing e finanças se misturaram ao controle social, cultural e político geral. E isso ocorre em escala global, enquanto as tentativas de regular o sistema são fragmentadas em muitos países. Não temos nenhuma regulamentação significativa em escala global, mesmo que a UE tenha conseguido criar algumas regras.

A figura acima mostra a escala da deformação sistêmica que estamos enfrentando. O 1% mais rico detém mais da metade das ações e dos fundos mútuos, o que significa que esses concentram os fluxos de excedentes financeiros drenados de toda a economia. Os 9% seguintes, reserva política de “investidores” de classe média alta, também lucram e tornam o sistema politicamente mais forte. Os 90% inferiores não “investem”, dificilmente chegam ao fim do mês e se endividam com mais frequência, contribuindo para o sistema por meio das taxas de juros.
Os dados detalhados do WID (World Inequality Database), a análise de concentração de riqueza dos relatórios do UBS, os estudos de impacto geral da Oxfam, bem como os estudos de países específicos, em particular o endividamento no Sul Global, mostram como estamos longe do que chamamos de acumulação de capital produtivo. Isso não é capitalismo, é rentismo improdutivo. Não é a Indústria 4.0, como tantas vezes mencionado, mas o resultado da revolução digital. O fato de chamá-lo de “indústria” permite que ele tome emprestada alguma legitimidade de época em que a produção de bens e serviços úteis era a espinha dorsal do capitalismo. Mas é dreno improdutivo, que nos empurra para catástrofe social e ambiental. E só podemos acenar com a cabeça para certo número de mensagens personalizadas que recebemos, quer as solicitemos ou não.
Tudo isso é absurdo, considerando, como comenta Jimmy Wales, da Wikipedia, que essas tecnologias poderiam nos permitir ter acesso inteligente ao que efetivamente queremos. Quanto aos gigantes financeiros, bem, o dinheiro é nosso, mas está fora de nossas mãos, e muitas comunidades estão recuperando o controle.
(*) Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do “Sistema S”. Autor e coautor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org
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1 Juliet Schor, After the Gig: how the sharing economy got hijacked, and how to win it back, University of California Press, 2020, p. 151, citando Martin Kenney e John Zysman.
2 André Gorz, L’immatériel, 2003.
3 TNI, Transnational Institute, Big Tech: the rise of Gafamt, 2023.
4 Pallavi Rao, Visualizando como as grandes empresas de tecnologia ganham bilhões, Visual Capitalist, 18 de dezembro de 2023.
5 Chris Walker, Greedflation, Truthout, 22 de janeiro de 2024.
6 OMS, Global Cancer Burden Growing, Comunicado de imprensa, 1º de fevereiro de 2024.
7 Ellen Brown, Meet BlackRock, 21 de junho de 2020.
DIAP
https://diap.org.br/index.php/noticias/artigos/91930-quem-dominara-a-economia-do-conhecimento
por NCSTPR | 22/07/24 | Ultimas Notícias
As notas de Max Horkheimer, do começo do século XX, sobre a classe trabalhadora, são ainda hoje repletas de consequências para os trabalhadores em suas lutas políticas.
José Manuel de Sacadura Rocha
Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 12/07/2024
1.
Falamos aqui sobre a observância às condições da classe trabalhadora e os discursos que fazemos a ela. Entre 1926 e 1931 Max Horkheimer escreveu uma série de aforismas que foram coletados e editados agora no Brasil com o nome de Crepúsculo: Notas alemãs (1926-1931).[i]. Entre esses aforismos, consta à página 109 o aforismo “A importância da classe trabalhadora alemã”, que, destarte ter sido escrito noventa anos atrás, mantém absoluto vigor e atualidade, algo que só se explica pelo método do materialismo histórico que foi capaz de dar conta da situação da classe trabalhadora outrora, como de absoluta pertinência e importância para a luta de classes tanto teórica como prática nos dias atuais.
Tentaremos demonstrar essa pertinência e importância ímpares das ideias de Max Horkheimer contidas nestas notas para os contextos que envolvem modernamente os trabalhadores assalariados diante do dinamismo bastante distópico da sua existência no regime do capital. Nos move, principalmente, a dissociação das diferentes frações da classe trabalhadora – empregados, exército de reserva, lumpemproletariado – e como a partir delas se vê o movimento capitalista primar pela dispensação da força de trabalho, a partir da radical transformação da “composição orgânica do trabalho”, com consequências severas não só para a situação da classe trabalhadora como para o desfecho desesperado da superação do capitalismo.
Tal dinamismo nas sociedades mercadológicas instiga a uma leitura mais afinada e crítica dos discursos necessários da vanguarda progressista para dar conta da nova realidade do trabalho, automatismo e flexibilidade, e das aproximações devidamente circunstanciadas de comunicação da teoria marxiana no cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras do capitalismo de hoje.
Pensamos que, ainda que possa ser verdade algo de perda das categorias revolucionárias do marxismo nos discursos da esquerda, deve-se atentar para o fato que no mundo real as lutas de classes, para a massa de trabalhadores, mais ou menos organizados, se dão no meio de aparatos de dominação da classe hegemônica; mais precisamente, deve-se atentar para a adequação dessas categorias,[ii] por mais preciosas e fundamentais que sejam, à situação condicionante do capitalismo quanto à situação da classe trabalhadora e as frações assalariadas no espaço global da produção e circulação de mercadorias (forma mercadoria contemporânea).
Tratamos a classe trabalhadora como aquela que tem condições de produzir capital, como, portanto, a que a partir de seu trabalho produtivo, direta ou indiretamente, transforma materiais e dinheiro em capital. A classe trabalhadora é parte dos ativos reais enquanto força de trabalho que no processo de trabalho econômico realiza a um tempo o objetivo elementar da sobrevivência social enquanto produz riqueza ao capitalista pelo sobretrabalho ou mais-valor não pago.
A classe trabalhadora, neste sentido, não é apenas aquela que se opõe ao capital por interesses próprios, mas a que nesse processo luta pela emancipação de toda a humanidade em relação ao capitalismo e ao trabalho em si mesmo. O fundamento destas teses é o processo do trabalho tal como se desenvolve no capitalismo, não para o substituir por outro tipo de relação social para o trabalho, mas para a superação dele. Inicialmente, deve-se pensar que o trabalho para subsistência está circunscrito modernamente à dispensa dos trabalhadores, ampliando o tempo de trabalho social disponível, na base das inversões sempre constantes em capital fixo, máquinas e equipamentos.
Este foi o movimento que Max Horkheimer capturou no início do século XX, com fortes repercussões na consciência das frações da classe trabalhadora em suas lutas políticas. Neste caso, claramente, se exige a interpretação adequada das teorias da dialética materialista histórica, suas categorias elementares e abstratas, quanto mais são necessários o apoio e a orientação organizativa dos trabalhadores na atualidade.
2.
Max Horkheimer começa afirmando que na dinâmica do capitalismo o número de trabalhadores empregados diminui “proporcionalmente ao uso das máquinas”, em decorrência, a percentagem de empregados é cada vez menor. Isto modifica “as relações entre si” das camadas da classe proletária, bem como com os patrões. Mesmo o “emprego momentâneo”, como o “emprego permanente”, se tornam uma exceção; com isso “mais claramente se diferenciam a vida e a consciência” dos trabalhadores empregados daqueles que estão desempregados: “Com isso, a solidariedade de interesses dos proletários experimenta cada vez mais perdas”.
Max Horkheimer deixa claro que a classe trabalhadora é, na verdade, muitas classes trabalhadoras, ou que ela está separada em frações com situações bastante diferenciadas de venda da força de trabalho para o capitalista, o que resulta em um espectro amplo de consciência e de interesses em se opor aos patrões e à gerência dos capitais.
No início da industrialização era possível distinguir entre os que estavam empregados e o “exército de reserva”, e “em regra havia uma transição constante entre empregados e desempregados” (uma forma do capital regular os preços da mão de obra (salários) e manter os trabalhadores submissos pelo medo do desemprego). Se por um lado não se questionava a capacidade de trabalho dos trabalhadores, também estes não se distanciavam, pelo menos quanto aos aspectos relevantes de seus destinos como classe: “não apenas seu interesse na superação da dominação do capital era essencialmente o mesmo, mas também o era o engajamento nessa luta”.
No começo do século XX os empregados e o “exército de reserva” passam a constituir camadas do proletariado em condições bastante diversas: com o incremento das máquinas, cresce o “exército de reserva” que por sua vez também estava cindido entre aqueles que efetivamente podiam estar em condições de reaproveitamento da força de trabalho e os que não estavam aptos a trabalhar, seja pela desqualificação, seja pela situação de extrema penúria e exclusão social, o “lumpemproletariado” (MARX, 2011).[iii] Max Horkheimer considera o “lumpemproletariado” como “uma camada relativamente insignificante, na qual se recrutam os criminosos”, que agravou a cisão entre empregados e as demais frações da classe trabalhadora, principalmente porque o medo passa de estar desempregado temporariamente enquanto “exército de reserva”, para o medo de se tornar parte do “lumpemproletariado”.
Quando isto foi escrito ainda era possível, portanto, distinguir “exército de reserva” de “lumpemproletariado”, mas era clara a diminuição de trabalhadores empregados e o aumento dos trabalhadores já sem condições efetivas de voltarem a ocupar lugar entre os empregados devido ao alto incremento do capital fixo, que Marx chamou de trabalho morto, em detrimento do capital variável, que Marx chamou de trabalho vivo. Horkheimer diz que neste momento, a “classe experimenta em sua própria existência o lado negativo da ordem vigente, a miséria”.
Nestas condições a massa de operários e demais assalariados empregados “cujos salários e cujos anos de adesão a sindicatos e associações possibilitam certa segurança”, enfrentam o medo diante do “perigo de perdas enormes”, e passam a se constituírem como os empregados em oposição aos desempregados, estes que têm menos a perder, ou “àqueles que ainda hoje não têm nada a perder senão seus grilhões”.
Então, entre os que trabalham e os “que trabalham excepcionalmente ou nem isso”, isto é, os subempregados e desempregados de nosso tempo, existe uma distância tão grande quanto o “exército de reserva” e o “lumpemproletariado” do início da industrialização; isto significa, pois, que Horkheimer visualizava que não apenas os trabalhadores estão sempre destinados ao desemprego, como este desemprego se transforma mais e mais em “lumpemproletariado”, na medida em que os desempregados e subempregados dificilmente voltam a ocupar seus postos de trabalho em suas especialidades, mas logo se misturam aos ex-trabalhadores em condições de extrema miséria, ou seja, fora os que estiverem ainda em seus empregos, todas as outras camadas da classe trabalhadora estão fora do mundo do trabalho, subempregados, precarizados ou nos “trabalhos de merda” (GRAEBER, 2022).[iv]
Para a contemporaneidade existe como que uma “fusão” de diversas camadas de trabalhadores assalariados,[v] que devido à sua precariedade de trabalho ou à gradativa miserabilidade e desespero de sua existência, separam-se na consciência e no engajamento de lutas às frações de classe empregadas; Max Horkheimer falaria, então, que “trabalho e miséria se distanciam e são repartidos a portadores distintos”. Ainda que a exploração e a miséria dos trabalhadores continuem a ser a base do capitalismo, o tipo de trabalhador em atividade, diz o autor, “já não designa aquele que necessita com mais urgência de uma transformação”; por sua vez, o que unifica as camadas mais baixas do proletariado, dos desempregados, subempregados e precarizados é “o mal e o desassossego do próprio existente”.
Portanto, os que agora têm interesse na revolução são as frações mais desamparadas e desesperadas da classe trabalhadora, precisamente aquelas que têm menos preparo e capacidade de formação e organização, consciência de classe e credibilidade, longe daqueles que por estarem ainda empregados estão integrados ao funcionamento do capitalismo. Esse espectro apresenta-se cada vez mais bipolar e dividido: ele vai da extrema penúria que constitui as massas de ex-assalariados ou que nunca foram integrados ao trabalho, até os que estando integrados e cooptados não se arriscam em engrossar as massas disformes e desorganizadas daquele grupo de desempregados, precarizados e pauperizados.
Os mais jovens sempre se constituíram como uma camada da sociedade em que se depositava muitas esperanças que fossem os intelectuais orgânicos; contudo, Max Horkheimer afirma que lhes falta, “mesmo com toda a fé, a compreensão da teoria”.
3.
Sendo assim, estamos diante de realidades em que o interesse pelo socialismo e as características humanas oscilam de forma tal que não há como interferir seguramente na consciência do operariado e das demais camadas subalternas de trabalhadores, o que condiciona, sobremaneira, as atividades revolucionárias da vanguarda e, fundamentalmente, os discursos e aproximações quanto aos processos de comunicação no campo da esquerda.
Se não compreendemos isso, e se não sobrepesamos nossas deficiências de linguagem e narrativas teóricas ao socialismo, tendo em conta que o processo capitalista trás essa separação entre o conjunto de trabalhadores excluídos e marginalizados e os que estão ainda integrados à produção capitalista, serão pouco eficientes ou até vazios e desestimulantes nossos esforços teóricos e práticos, sejam quais forem as qualidades do discurso e da teoria na prática.
Na época do escrito destas notas, na Alemanha de Weimar do início do século XX, as divisões entre os trabalhadores, mormente, entre os “integrados” e os “desempregados/desassistidos”, fizeram com que, a partir de sua consciência teórica e interesses imediatos, se espalhassem entre os partidos trabalhistas (Partido Social-democrata da Alemanha (SPD)), “e, além disso, por meio da flutuação de grandes camadas de desempregados entre o Partido Comunista e o Partido Nacional-socialista”.
É relevante que o filósofo e sociólogo alemão chame a atenção para esta “flutuação” dos desempregados e possivelmente para as camadas mais baixas dos trabalhadores, que se incluem naquilo que Hannah Arendt chamou de “ralé”,[vi] em direção ao nazismo, porquanto isto parece ser exatamente o que revela a penetração da extrema-direita atual entre essas mesmas populações, o que agrava ainda mais a práxis revolucionária em nossos dias, não tanto pela falta de elementos e categorias marxistas, mas porque esta realidade de insegurança, medo e pauperização leva a que as frações mais ameaçadas e desprotegidas da classe trabalhadora tenham interesse pelos movimentos de radicalização à direita e suas falsas promessas.
Max Horkheimer afirma que a repartição oriunda do processo econômico capitalista “condena os trabalhadores à impotência fática”, mas os trabalhadores precarizados, subempregados, desempregados – dadas as circunstâncias de medo e vulnerabilidade –, e camadas significativas dos empregados/ integrados, que se movem em direção à extrema direita (fascismo; nazismo), não nos permite afirmar que os trabalhadores são levados à “impotência” – este “detalhe” pode ser significativo quando definimos o público ao qual dirigimos a teoria e os discursos na prática: os trabalhadores escolhem, inclusive participar dos planos de existência da burguesia e da extrema direita.
Nosso autor é didático e bastante atual quando afirma: “Com o volume de material elaborado pela teoria, os princípios não assumem uma forma adequada à atualidade, mas são retidos de modo não dialético. A práxis política também não logra, então, aproveitar todas as possibilidades para o fortalecimento das posições políticas e se esgota de modos variados nos comandos vãos e na repreensão moral dos desobedientes e dos desleais”. Pode-se perguntar: é o caso, pois, de falta de categorias nas formas teóricas e discursivas?
Sobre o “reformismo” é preciso que se diga que ele também faz parte do processo econômico do capitalismo; quando pensamos pela dialética materialista, vemos que seu desenvolvimento tecnológico altera a composição do capital na produção e circulação em detrimento do emprego de força de trabalho, e assim, se “rebaixa” não apenas a empregabilidade da classe trabalhadora, mas igualmente os discursos e as práticas de suas lideranças na busca por garantias de trabalho e alguns direitos. Este tipo de “luta defensiva” é concretamente dado pela organicidade do mundo de trabalho: os discursos “fleumáticos”, as palavras de ordem “rebaixadas” à insignificância diante do fato da iminência do desemprego e da miséria, “atendem” à realidade desesperadora da classe trabalhadora contra a qual as vanguardas e as lideranças pouco ou nada podem fazer.
Aquilo que se chama de “reformismo real” na teoria revolucionária é, boa parte das vezes, alimentado pelo dinamismo do capitalismo contra os trabalhadores assalariados e nem sempre se deve à perda de conteúdo ou categorias, mas, como Max Horkheimer diz, “a aversão à pura repetição dos princípios pode ter, nos domínios espirituais mais afastados – a sociologia e a filosofia -, também ainda uma importância justificada pela situação: ela se volta contra o que há de vão ali”.
Quando a realidade fática muda tão radical e desesperadoramente para a classe trabalhadora, é necessário verificar a teoria, o discurso e a prática em um percurso de “volta zero”.[vii] Quer isto dizer que o movimento operário está condenado ao reformismo? Não! Apenas ele está circunscrito em uma realidade do momento de intenso crescimento de capital fixo na produção e demais atividades necessárias e conexas com a reprodução do capital. Entretanto, muitas vezes, por não se equacionar antecipadamente a dinâmica do capital, só resta ao “reformismo profissional” negociar em piores condições possíveis com o capital.
Na maioria das vezes, de boa ou de má fé, se entende mal a dialética materialista, sem se atentar para os fenômenos subjacentes e inevitáveis dos sistemas mercadológicos financeiros. E então, “muitos buscam com todos os meios, inclusive abrindo mão da simples fidelidade, manter-se em seus postos; o medo de perder sua posição se torna cada vez mais o único motivo que explica suas ações”.
O “reconhecimento dos fatos”, no entanto, para as massas de trabalhadores e trabalhadoras desempregados(as), subempregados(as), precarizados(as), e os mais abaixo, parece cair bem, e com isso acabam caindo na armadilha dos profetas, das filosofias que lhes parecem imparciais, e um bálsamo, quando apregoam o conformismo e “a fé vaga em um princípio transcendental ou religioso completamente indeterminado”.
Quando hoje os intelectuais falam das teorias que perderam “sua fé” na análise do concreto – denunciam o resultado pífio das alas progressistas que deixaram de lado os conteúdos e categorias que outrora fizeram tanto sentido e foram tão exitosas no movimento operário mundial, inviabilizando, assim, o enfrentamento dessas vãs filosofias –, falam exatamente o que Max Horkheimer denunciava como o pior reformismo: “No lugar da explicação causal, põe a procura de analogias; quando não rejeita totalmente os conceitos marxistas, formaliza-os e os acondiciona à academia”.
Max Horkheimer nos fala dessa “infeliz afeição pelo ‘concreto’”, no sentido em que é o fato da dispensação da mão de obra do trabalho, portanto, a ameaça permanente de perder-se o emprego que forja esse reformismo entre os intelectuais, o sindicalismo e os “esquematismos” das lideranças da classe trabalhadora. O problema não seria reivindicar emprego e melhores salários etc., mas ficar apenas nisso, quer dizer, “não algo que se organiza pela tomada consciente de posição na luta histórica, acima da qual eles (reformistas) acreditam antes pairar”.
Aqui, parece claro que, menos que levar em consideração o “concreto” das relações de trabalho e empregabilidade, deve-se atuar “pela tomada consciente de posição na luta histórica” dos trabalhadores. No entanto, o que seria essa “tomada consciente de posição na luta histórica” ao tempo em que a realidade fenomenal do capital está compelida à substituição da contratação da força de trabalho por investimento em tecnologia produtiva e serviços?
Sendo a práxis a falar em última instância da consciência nos modos de sobrevivência social, a forma pela qual os trabalhadores assalariados do capital necessitam de teoria para a prática de engajamento e enfrentamento do capital passa, gostemos ou não, por essa realidade, quer dizer, pelas práticas imanentes do desenvolvimento do capitalismo em que os trabalhadores estão inseridos. Tal fato não obriga o movimento operário e demais assalariados a se movimentarem levando em consideração tal realidade de intensificação de tecnociências na produção e nos serviços?
4.
Segundo Max Horkheimer, os intelectuais de esquerda se prendem “à literalidade do texto” e fazem a teoria materialista “um culto às pessoas”. E aqueles que estão integrados no processo de trabalho capitalista, conhecedores, portanto, do “mundo efetivo”, tornaram-se infiéis ao “marxismo”. Daí, sem a teoria do materialismo os fatos se tornam “signos cegos” ou “recaem no âmbito dos poderes ideológicos que dominam a vida espiritual”. Por parte dos intelectuais falta a prática e a analítica do “real” para preparar a revolução; e às camadas de trabalhadores empregados faltam os conhecimentos teóricos e mesmo o interesse para tal.
Sintomaticamente, nosso autor identifica, em seu tempo, as divergências da social-democracia com os comunistas: os da social-democracia, como consequência de aderirem incontinentes às circunstâncias e aos contextos, fazem reverência à objetividade ou pragmatismo político e incorrem no erro da arrogância: “humilham seus opositores ignorantes”. Por sua vez, diz Horkheimer, os comunistas “têm razões de menos”, e “frequentemente recorrem não a razões, mas apenas à autoridade”, baseados em sua “força moral” e “também com a força física”: reivindicam a verdade e desconsideram os pontos de vista individuais.[viii]. Diz lucidamente Max Horkheimer: “A superação dessa situação teórica depende tão pouco da mera boa vontade quanto a supressão da situação prática que a condiciona, a dissociação da classe trabalhadora”.
Para a dialética materialista, as diversas situações no processo econômico devem ser relevantes na análise dos momentos ou contextos em que se encontra a realização da vida social em seu devir histórico: “As próprias categorias nascem de uma experiência histórica real” (HARVEY, 2013. P. 566). Isto é absolutamente claro em Max Horkheimer. O momento-contexto fenomenal em que escreve Horkheimer sobre “a impotência da classe trabalhadora alemã”, no início do século passado, é reveladora de uma “mesma” necessidade do capital “que mantém grande parte da população afastada das vagas de trabalho desde seu nascimento e a condena a uma existência sem perspectivas”.
Só a partir desta realidade pode a teoria se desdobrar para acompanhar a situação e posição desconfortável dos trabalhadores(as). Nenhuma teoria pode ser viável fora da compreensão de seu tempo; ela é sempre mais uma possibilidade de “rumo” do que uma “trilha” consolidada.
É desesperador, compreensivelmente, que aquele que “constata a situação” queira se subtrair aos diagnósticos bem intencionados das teorias. Pode mesmo acontecer que muitos dos conteúdos e categorias não absorvam mais adequadamente a realidade que perfaz os interesses das frações de classe, como no caso dos trabalhadores assalariados do capital.
Não é claro, contudo, que é chegado o momento de preparar a sociedade para o tempo de trabalho disponível e não ficar apenas no “sindicalismo de emprego”, pois como Marx afirma: “(…) o capital aqui – de forma inteiramente involuntária – reduz o trabalho humano, o dispêndio de energia, a um mínimo. Isso beneficiará o trabalho emancipado e é a condição de sua emancipação.” (2011, p. 585).[ix] Isto seria também reformismo?
Possivelmente nem conceitos e nem categorias possam existir acabados para a “volta zero” da realidade do trabalho em nosso tempo, e acontece que, nas disputas pela adesão dos trabalhadores e trabalhadoras, as melhores práticas, “das quais o futuro da humanidade depende”, podem, possivelmente, estarem escritas há muito tempo para nossa interpretação acurada no fluxo inexorável da emancipação humana.
Notas
[i] HORKHEIMER, Max. Crepúsculo: Notas alemãs (1926-1931). São Paulo: Editora UNESP, 2022). Todas as citações referentes a Horkheimer foram coletadas nesta edição.[ii] Segundo Harvey: “O aparecimento de novas questões a serem respondidas, novos caminhos a serem seguidos pela investigação, provoca simultaneamente a reavaliação dos conceitos básicos – como o de valor -, a eterna reformulação do aparato conceitual usado para descrever o mundo.” (HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 529).[iii] Em “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, [1852], cap. V, Marx referia-se a esta camada ou fração da população como: “Sob o pretexto da instituição de uma sociedade beneficente, o lumpemproletariado parisiense foi organizado em seções secretas, sendo cada uma delas liderada por um agente bonapartista e tendo no topo um general bonapartista. Roués [rufiões] decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni [lazarones], batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereaux [cafetões], donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème [a boemia]; com esses elementos, que lhe eram afins, Bonaparte formou a base da Sociedade 10 de Dezembro.”. Neste sentido, é admissível que se coloque nesta camada da sociedade a fração da classe trabalhadora que já foi totalmente excluída do trabalho produtivo, ou que nunca chegou a fazer parte dele. (MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011).[iv] GRAEBER, David. Trabalhos de merda: uma teoria. São Paulo: Edições 70, 2022.[v] Podemos considerar que o welfare state pós 2ª. Grande Guerra, foi um momento de inflexão no processo de incremento no tempo de trabalho disponível e dispensação de mão de obra produtiva: no período do fordismo, que devido às guerras da primeira metade do século XX, se estendeu até o final dos anos 1970, o exército industrial de reserva era ainda uma fração dos trabalhadores aproveitada na produção, intercambiada com os trabalhadores empregados – eram todos desempregados funcionais do capital (na medida em que a ameaça do desemprego é a guilhotina permanente sobre as suas cabeças); a partir dos anos 1980, no pós-fordismo, o desemprego estrutural passa a empurrar cada vez mais e continuamente os desempregados (do exército de trabalhadores de reserva) para o grupo dos desalentados, desqualificados, empobrecidos que não constituem, portanto, mais uma função na reprodução do valor e do capital – o “lumpemproletariado” hoje são todos os desempregados, subempregados e precarizados, trabalhadores disfuncionais do capitalismo, que muitas vezes insistimos em os empurrar para os trabalhos insanos e medíocres do tecnocapitalismo atual.[vi] A expressão “ralé” figura taxativamente em Arendt: O sistema totalitário: caps. às págs. 163, 209 e 417; Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1978. [No Brasil: Origens do totalitarismo (Cia. De Bolso, 2013)].[vii] “Não é um mero adendo ao que já sabemos, mas constitui um ponto de partida totalmente diferente daquele no qual é baseada a teoria d’O Capital.” (HARVEY, 2013, p. 562).[viii] Na teoria marxista ocidental, Lukács distinguiu “ponto de vista da totalidade”, que a classe proletária pode acessar em sua consciência, do “ponto de vista do indivíduo”, que é própria da consciência da classe burguesa. A propósito, veja-se: Sandrine Aumercier. Georg Lukács: Das Antinomias Burguesas ao Problema da Consciência de Classe, GRUNDRISSE (wordpress.com), 02/06/2024.[ix] MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.
José Manuel de Sacadura Rocha é doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Mackenzie. Autor, entre outros livros, de Sociologia jurídica: fundamentos e fronteiras (GEN/Forense)
DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/horkheimer-discursos-sobre-a-classe-trabalhadora/
por NCSTPR | 22/07/24 | Ultimas Notícias
Os impactos do recente ciclo de crises nos desafiam a aprofundar o debate sobre as atuais tendências do mundo laboral.
Elísio Estanque, Agnaldo de Sousa Barbosa e Fabrício Maciel
Introdução do livro Re-trabalhando as classes no diálogo norte-sul: trabalho e desigualdades no capitalismo pós-covid.
1.
Com a presente obra procuramos apresentar uma reflexão abrangente sobre as atuais dinâmicas de transformação do capitalismo contemporâneo. A diversidade de abordagens recobre um amplo conjunto de temas cujo ponto de convergência gira em torno das desigualdades sociais em suas diferentes categorias, incluindo a classe social, a questão racial, identidades de gênero e orientação sexual, etc.
Os impactos do recente ciclo de crises, financeira, a Pandemia do Covid-19, a política internacional e a fragilização dos regimes democráticos, desafiam-nos a aprofundar o debate sociológico, a crítica à globalização e as atuais tendências do mundo laboral e da sociedade nos mais diversos continentes. Merecem especial destaque os efeitos de todas estas transformações – econômicas, sociais, culturais e políticas – na reorganização da estrutura de classes e modalidades de ação coletiva.
Se as velhas controvérsias sobre as classes sociais e a organização produtiva inspiraram os processos de institucionalização das ciências sociais e da sociologia na sua primeira fase, cremos que hoje, passados cerca de duzentos anos desse ciclo de “grandes transformações”, é pertinente convocar um conjunto de acadêmicos de várias origens para apresentarem seus estudos e reflexões sobre as atuais tendências de mudança no mundo global do século XXI.
Considerando desde logo o berço do capitalismo moderno, a Europa Ocidental, é bom lembrar que, lado a lado com as inúmeras convulsões sociais, guerras e conflitos que marcaram as sociedades industriais durante mais de duzentos anos, do hemisfério Norte e do Sul Global, assistiu-se também a significativos desenvolvimentos e progressos sociais, por exemplo, em matérias como a revolução tecnológica e digital, cujas repercussões incidem em todo o mundo. Porém, sendo o mundo tão desigual e assimétrico, as linhas de mudança desenham-se sob figurinos, sentidos e ritmos condicionados pelas assimetrias previamente estabelecidas.
Mais recentemente, ao longo do último meio século, o surgimento da globalização neoliberal conduziu a uma crescente desregulação das economias com a consequente estagnação (ou recuo) das políticas sociais e o acentuar constante das desigualdades sociais, mesmo nos países da União Europeia, onde o Estado-providência mais avançou na segunda metade do século XX.
Mais recentemente, o contexto da pandemia do Covid-19 contribuiu para exponenciar a aceleração do mundo e catalisar novas ameaças: por um lado, alertou-nos para os excessos da globalização neoliberal, para os riscos ambientais, a hegemonia do capital financeiro sobre a economia produtiva, o desgaste das democracias e o crescimento do populismo de extrema direita; por outro lado, tal cenário coloca-nos agora perante uma encruzilhada de desafios, com a transição digital e a desestruturação do anterior modelo laboral a exigirem novas respostas, onde a economia circular, o desenvolvimento sustentável e a reindustrialização ganham um novo significado. Importa saber, perante o referido cenário global, que novas linhas de mudança, e também qual o sentido da nova divisão internacional do trabalho e como se estruturam as novas barreiras de classe.
Uma das grandes tendências que vêm suscitando intensos debates nas últimas décadas merece neste livro especial atenção. Ela vincula-se às crescentes assimetrias globais e a intensificação de desequilíbrio de poder herdado do passado. E esse passado, que está na gênese do capitalismo ocidental moderno, liga-se historicamente com a questão colonial.
Muito embora esta obra não seja especificamente sobre esse tema, parece-nos óbvia, perante o momento histórico que atravessa hoje o capitalismo global, a importância dessa matéria, desde logo pelas implicações que tem com a atual problemática das desigualdades sociais, necessariamente colocando em jogo novas dinâmicas e complexidades em suas diferentes modalidades, desde o problema da classe às novas divisões identitárias que estão desenhando novos movimentos e inspirando novos debates acadêmicos.
2.
Nesse contexto a discussão em torno das desigualdades exige abordagens interseccionais onde a variável “classe” se conjuga com outras tais como o “gênero” e a “raça”. Por essa ordem de razões os debates centrados nas relações de trabalho, suas transformações e desafios, sugerem um novo diálogo com as desigualdades raciais e de gênero e os movimentos sociais subjacentes, como é o caso dos movimentos negro e feminista e suas contaminações recíprocas.
Embora o campo econômico e o sistema produtivo persistam como eixo central do crescimento econômico e da acumulação capitalista, as relações sociais de produção perderam centralidade – para boa parte da teoria social – na definição das divisões classistas e sobretudo da conflitualidade na era do neoliberalismo. Paralelamente, a “classe” como principal sujeito da mudança sociopolítica cedeu espaço diante da força crescente da chamada “política identitária”. Nesse sentido, as questões do pós-colonialismo, da violência e do preconceito racial, dos movimentos feministas, bem como das lutas LGBTQIA+, têm colocado em pauta novos questionamentos, seja dialogando com a classe, seja situando-se à margem da crítica sistêmica de inspiração marxista.
Por outro lado, as temáticas ligadas ao mundo do trabalho e da “crítica social” também se deslocaram para uma dimensão mais culturalista e estética (no sentido da “crítica estética” como apontaram Boltanski & Chiapello). Com efeito, a classe e as “relações sociais de produção” perderam capacidade explicativa e força política, enquanto o neoliberalismo global evidenciou um poder crescente do capital e um arrefecimento generalizado das classes trabalhadoras e do movimento sindical internacional. Mais recentemente, as novas divisões identitárias inspiraram novas correntes teóricas com crescente impacto nos debates acadêmicos e na sociedade.
É certo que a questão racial não é um tema novo na sociologia (Samir Amin, Willian E. Du Bois, Frantz Fanon, Wallerstein, Loic Wacquant, Achille Mbembe, dentre muitos outros, já tematizaram o problema). No contexto brasileiro, o mito do “racismo cordial” ou da “democracia racial” à la Gilberto Freyre foi desde cedo objeto de questionamento nomeadamente sob influência de Florestan Fernandes (seguido por Otávio Ianni, dentre outros). Mas até mesmo em Portugal esse estereóptipo fez escola desde os tempos do salazarismo em pleno período colonial – e isto apesar da proliferação de piadas racistas após o fim dessa guerra – embora os casos e os debates pós-coloniais mais recentes tenham mostrado que o racismo estrutural permanece, lá como cá.
No Brasil, o discurso populista-nacionalista, na primeira metade do século XX, e a narrativa da primazia da classe que vigorou a partir do início da década de 1960 (Guimarães, 2002), sob influência da aproximação cultural entre o Brasil e a África e do crescimento do movimento negro, abrindo caminho, por exemplo em regiões como a Bahia, levaram a uma maior expressividade da “cultura afro-brasileira”, que ajudou a confrontar o mito da miscigenação ou da cordialidade freyriana.
A ideia de uma possível diluição do problema racial perante o aparente aumento dos antagonismos de classe ganhou expressão acompanhando o discurso anti-fascista (de meados do século passado) onde figuras como Bastide (1944) inspirado em Jorge Amado, pareciam olhar o curso da história no Brasil como uma evolução da matriz identitária negra, fundada no espiritualismo de influência africana, para uma confluência entre a “negritude” e o proletariado branco. Aos olhos de Jorge Amado, seguido por Bastide, o sindicalismo parecia ganhar influência junto da população, perante o aumento da luta de classes e a expectável “união dos proletários”.
Porém, tornou-se evidente que, ao lado de um alegado Adeus ao Proletariado, segundo a concepção de André Gorz (1980), a classe trabalhadora, ao contrário de muitos diagnósticos, se fragmentou e enfraqueceu cada vez mais como sujeito político, parecendo render-se ao poder do capital sob a batuta da globalização neoliberal das últimas décadas.
Na verdade, as profundas transformações ocorridas nas últimas décadas alteraram radicalmente o mundo laboral, marcado cada vez mais por infinitas divisões e vulnerabilidades, perante um mercantilismo agressivo, inventando cadeias de valor com base na multiplicação de capitais, nos títulos, nas ações das bolsas de valores e na especulação financeira. O capital a gerar capital tornou-se mais aliciante e auspicioso do que os projetos de investimento produtivo, enquanto a inovação no campo da informática e do digital ajudavam a suprimir milhões de empregos, substituídos pelos novos equipamentos digitais, automatismos e plataformas geridas por algoritmos e Big Data.
Daí a proliferação de novas desigualdades sociais, novas subclasses, a criação de fraturas abissais e formas de dominação, entre incluídos e excluídos, ricos e pobres, homens e mulheres, o Norte e o Sul Global, brancos e negros, etc. Em suma, as atuais divisões e desigualdades do mundo não substituem as antigas, antes se juntam a elas acrescentando novas assimetrias e aumentando a complexidade, a instabilidade e a aceleração da modernidade tardia em que vivemos (Rosa, 2022). Para além das velhas clivagens entre centro e periferia do sistema mundial, as oposições entre o Norte e o chamado Sul Global resultam de uma crescente conscientização da natureza complexa e do obscurecimento de formas profundas de desigualdade e preconceito que as ideologias dominantes esconderam durante séculos.
A dominação colonial e o pós-colonialismo impuseram todo um conjunto de narrativas que ajudaram a “naturalizar”, esconder e calar as vítimas maiores de um sistema iníquo e desumano em muitas das suas vertentes. A dominação eurocêntrica encontrou legitimação tanto na ação de controle como na própria imposição de uma linguagem que ajudou a naturalizar a subalternidade do colonizado (Quijano, 2005; Mignolo, 2020; Robinson, 2023). Assim, o patriarcado ancestral conjugou-se com os regimes escravagistas para impor de forma brutal uma opressão e domínio que transportou, e transporta, ao longo dos séculos variadas formas de violência e silenciamento, de que as divisões de raça e gênero são exemplos, criando ao mesmo tempo um “véu” de obscurecimento e negação da condição negra (Du Bois, 2021 [1903]).
Esse cancelamento do ser, essa inferiorização dos corpos negros de homens e mulheres – num movimento de disseminação ideológica que inculcou em suas mentes a naturalização da superioridade de uma raça sobre outra – levou as vítimas da branquitude colonial a sonhar tornarem-se brancos, como nos mostrou Frantz Fanon (2008 [1952]) através da fala dos seus doentes. Mas essa colonização da mente negra não impediu que crescessem os sentimentos e ressentimentos acumulados durante séculos, os quais persistiram após o fim oficial do colonialismo nas Américas e no Sul Global.
3.
Perante a emergência dos debates mais recentes, importa questionar os velhos cânones e divisões teóricas rígidas dentro das ciências sociais do Ocidente, em convergência com propostas de Michael Burawoy (2022), dentre outros. Há que se buscar inspiração nestas novas linguagens, mas sem abandonar o legado teórico dos antigos clássicos, ou seja, recentrar o diálogo entre autores, pôr as visões críticas do Norte a conversar com porta-vozes dos setores oprimidos do hemisfério sul, recuperando nas epistemologias do Sul o contraponto para a hegemonia eurocêntrica (Santos, 2017).
Como sabemos, as desigualdades e a violência de base racial foram historicamente incorporadas na própria lógica capitalista, em especial em países de capitalismo periférico, como é o caso do Brasil. O poder capitalista que opera em escala global, como bem argumenta Klaus Dörre (2022), exerce uma expropriação dos subalternos praticamente sem resistência. As velhas lutas do operariado industrial recuaram e foram substituídas por um sindicalismo de base corporativa nos setores ainda estáveis do mercado de trabalho.
Paralelamente, o neoliberalismo foi promovendo subclasses abaixo do limiar da respeitabilidade social, perante a multiplicação e o desdobramento de novos e mais frágeis vínculos laborais, com as subcontratações, o tráfico ilegal de mão de obra, formas flexíveis de trabalho temporário, hoje em dia vinculadas à expansão do campo digital, dos “platform workers”, da uberização, etc. O trabalho barato e por vezes escravizado – ainda que em muitos casos com qualificações escolares avançadas, como ocorre na Europa, mas também cada vez mais na América Latina – parece, no entanto, ser aceito sem resposta pelos trabalhadores e grupos sociais guetizados e esquecidos pelo sistema.
A nova “classe-que-vive-do-trabalho”, da qual fala Ricardo Antunes (2018) é alheia a quaisquer mecanismos de proteção ou sequer a alguma condição humanamente digna (Huws et al., 2017; Maciel, 2021); mas ainda assim parece impotente para voltar a agir enquanto ator coletivo (como nos tempos estudados por Karl Marx e Friedrich Engels), chame-se ele proletariado ou “precariado” (Standing, 2013).
Porventura, estes segmentos precários e dispersos, se se deixarem influenciar por outros movimentos e grupos identitários (de tipo racial, étnicos, ambientais, de gênero ou orientação sexual), hoje em dia em muitos contextos mais vibrantes do que os sindicatos, poderão vir a instigar futuras ondas de rebelião de tipo polanyiano ou thompsoniano (Thompson, 1988), mas não é seguro que isso aconteça. E se acontecer poderão abrir as portas, não do socialismo, mas talvez do retorno ao autoritarismo nacionalista e populista (Estanque, 2015).
Na verdade, essas camadas sociais são constituídas por uma miríade quase ilimitada de condições precárias e indignas, como formas subcontratuais, informalidades, vítimas de tráfico de mão-de-obra, trabalho doméstico, nomadismo digital, etc., sem esquecer ainda o pequeno empreendedor, o microempresário, ele próprio tantas vezes vivendo no limite da subsistência e da dignidade (Barbosa, 2012), o homem do quiosque que trabalha intensamente com a sua família para poder aguentar o seu pequeno negócio.
4.
Os organizadores deste livro inserem-se numa rede de relações acadêmicas internacionais, onde integraram projetos e programas de cooperação e mobilidade envolvendo universidades e centros de pesquisa, do Brasil (UNESP-Franca), de Portugal (Universidade de Coimbra) e da Alemanha (Univ. Friedrich-Schiller, Jena). Essas ligações poderão constituir uma vantagem acrescida que nos coloca em posição privilegiada para promover esta iniciativa editorial, dando sequência aos protocolos multilaterais em vigor entre as referidas instituições.
Assim, programamos o nosso livro pensando em três domínios essenciais, articulados entre si, e que consideramos se ajustarem aos referidos objetivos de internacionalização das ciências sociais, em sua interdisciplinaridade. Em termos temáticos consideramos: em primeiro lugar, um domínio mais genérico e reflexivo sobre as nossas sociedades, onde as grandes linhas de reflexão em torno da complexidade e ritmos de mudança no quadro do capitalismo global, mas com a preocupação de manter o diálogo Norte-Sul, suas interconexões e potenciais formas de cooperação (nomeadamente no contexto pós-pandemia).
Em segundo lugar, um enfoque centrado nas relações de trabalho e nos processos de desregulação, fragmentação e precariedade nos sistemas de emprego; e em terceiro lugar, uma linha mais direcionada aos processos recentes de reestruturação das classes (quer enquanto estruturas sociais objetivas, quer enquanto atores sociopolíticos) e em estreita ligação com os movimentos e contramovimentos (identitários, populistas, feministas, anti-racistas, anti-homofóbicos, etc.), no quadro do recente ciclo de neoliberalismo, da pandemia e das implicações socioeconômicas da atual guerra na Europa.
Elísio Estanque é investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e professor visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor, entre outros livros, de Classe média e lutas sociais: Ensaio sobre sociedade e trabalho em Portugal e no Brasil (Editora Unicamp).
Agnaldo de Sousa Barbosa é profesor do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas na UNESP-Franca.
Fabrício Maciel é professor de teoria sociológica na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de O Brasil-nação como ideologia. A construção retórica e sociopolítica da identidade nacional (Ed. Autografia).
Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 10/07/2024
DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/tendencias-do-mundo-laboral-dialogo-norte-sul/
por NCSTPR | 22/07/24 | Ultimas Notícias
Um relatório da Oxfam Brasil indica que mulheres e pessoas negras são as maiores vítimas das consequências da informalidade no trabalho rural. De acordo com o estudo, 69,6% das trabalhadoras e trabalhadores são negras e negros e 58,3% trabalham sem as garantias da legislação trabalhista.
A desigualdade também se expressa nos salários. Segundo os dados levantados, homens negros ganham 59,8% e mulheres negras 61,6% a menos que a média. A informalidade atinge 46,1% da população preta e parda ocupada.
Um relatório da Oxfam Brasil indica que mulheres e pessoas negras são as maiores vítimas das consequências da informalidade no trabalho rural. De acordo com o estudo, 69,6% das trabalhadoras e trabalhadores são negras e negros e 58,3% trabalham sem as garantias da legislação trabalhista.
A desigualdade também se expressa nos salários. Segundo os dados levantados, homens negros ganham 59,8% e mulheres negras 61,6% a menos que a média. A informalidade atinge 46,1% da população preta e parda ocupada.
Mais de cem anos após a abolição em lei do regime que condenou milhões de pessoas à servidão forçada, o cenário revela uma realidade que tem profundas conexões com esse passado. O padrão de desigualdade, construído a partir da invasão portuguesa ao território, persiste até os dias atuais.
Gustavo Ferroni, coordenador de Justiça Rural da Oxfam Brasil, afirma que o trabalho no campo é “herdeiro direto” da lógica de servidão que caracteriza a escravidão e constitui uma “máquina de alimentar desigualdades”. Ele lembra que a mão de obra rural do país só entrou no escopo das leis trabalhistas a partir do fim da década de 1980, com a promulgação da Constituição.
“São desafios que ao longo de mais de um século não foram superados. Particularmente no caso dos trabalhadores rurais, a informalidade é muito alta. Estamos falando de empregadores que compõem o agronegócio, que dizem que é o setor que mais contribui para o PIB [Produto Interno Bruto]. Mas que crescimento econômico é esse se os trabalhadores estão informais e recebem salários muito baixos?”
Sistematicamente marginalizada nos processos históricos brasileiros, a força de trabalho do campo convive com a pobreza e a vulnerabilidade social cotidianamente. A maior parte dessas pessoas têm ocupações temporárias e, muitas vezes, os salários estão abaixo do mínimo nacional.
Salários
A nota informativa da Oxfam Brasil identificou fatores que contribuem para a perpetuação dos baixos salários e da desigualdade no campo. O primeiro deles é a divisão injusta de valores nas cadeias produtivas. A dinâmica favorece o lucro de grandes produtores, o que afeta a pequena e média produção e a massa trabalhadora.
Além disso, entidades de classe enfraquecidas também representam um grande obstáculo. A ausência de negociação coletiva com sindicatos e outros órgãos representativos impulsiona a assimetria de poder entre quem emprega e quem trabalha. O salário-mínimo inadequado também intensifica essa realidade.
Esse cenário leva o meio rural a ser o que mais registra situações análogas à escravidão, representando cerca de 90% dos casos. Mas essa é a consequência mais radical da precarização do trabalho rural. Antes dela, uma série de outras violações acontecem, alerta o documento.
Na lista estão crimes como a servidão por dívida, a restrição de liberdades, as condições degradantes, os descontos ilegais e a violência. “Temos que lembrar que a pessoa precarizada no campo está trabalhando dentro da fazenda, em regiões isoladas, à mercê completa do seu empregador”, pontua Ferroni.
“A simetria de poder no campo entre o empregador e o trabalhador não é comparável a nenhuma outra. Esse ambiente de trabalho no campo é que cria as condições favoráveis para esse tipo de exploração”, completa ele.
Recomendações
A nota da Oxfam Brasil apresenta caminhos para superação do problema, baseados em experiências com trabalhadoras e trabalhadores rurais em diversas regiões do país. O documento aponta que a participação de todos os atores nas cadeias produtivas é essencial para implementar as recomendações.
Os processos de diálogo precisam reconhecer e agir para diminuir a assimetria entre quem emprega e quem trabalha. É necessário também garantir participação igualitária entre trabalhadores e trabalhadoras.
Ainda na lista de recomendações estão ações do poder público envolvendo diversas esferas de governo para soluções capilarizadas e efetivas. O trabalho dos sindicatos deve ser fortalecido, sem limitação de acesso a trabalhadoras e trabalhadores e a locais de trabalho.
“Antes da reforma trabalhista já era difícil. Depois dela, os sindicatos de trabalhadores assalariados rurais estão enfrentando enormes desafios. Muitos empregadores se recusam a negociar”, alerta o especialista.
Segundo ele, essa realidade prejudica as possibilidades de negociação para a massa trabalhadora. “Temos trabalhadores que já vêm de camadas mais pobres da população, nessa situação de vulnerabilidade em relação ao empregador. Não têm negociação coletiva, vivem dentro da fazenda, então qual a capacidade de reclamar e se recusar a negociar individualmente?”
As negociações coletivas regulares e o estabelecimento de Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho (CCT e ACT) são essenciais para reverter o cenário, segundo o relatório.
Para Ferroni, “é inaceitável que o setor mais rico da economia tenha trabalhadores informais num nível de 60%, praticamente. O campo inteiro deveria ser coberto de negociação coletiva”.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Nara Lacerda
Data original da publicação: 15/07/2024
DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/precarizacao-do-trabalho-rural-impacta-mais-pessoas-negras-e-mulheres/
por NCSTPR | 22/07/24 | Ultimas Notícias
“As lutas de classes travadas ao longo deste século decidirão a habitabilidade da Terra durante os próximos milênios. Podemos inspirar-nos nas exigências que unem os ativistas e os sindicatos climáticos. Também podemos nos inspirar nas greves escolares contra as alterações climáticas, que introduziram o conceito de greve nas novas gerações”, escreve Gareth Dale, escritor e professor na Brunel University London, em artigo publicado por Green European Journal e reproduzido por El Salto, 15-07-2024.
Eis o artigo.
São aquelas pessoas que se encontram numa situação precária e de instabilidade econômica que podem inspirar a descarbonização da indústria e a criação de empregos que respeitem o ambiente. Temos um forte histórico de iniciativas trabalhistas que superaram as demissões, bem como uma série de colaborações recentes entre ativistas, sindicatos e trabalhadores, que servem como exemplos concretos de transição fortalecida.
Em 2023, uma onda de calor inédito com o nome de Cérbero (o cão de caça de três cabeças de Hades) varreu a Europa, levando a classe trabalhadora a organizar-se para exigir medidas de proteção contra o calor extremo. Em Atenas, o pessoal empregado na Acrópole e noutros locais históricos entrou em greve durante quatro horas por dia. Em Roma, o serviço de recolha de lixo ameaçou entrar em greve caso fossem obrigados a trabalhar nas horas mais quentes. Noutras partes da Itália, os funcionários dos transportes públicos exigiram veículos com ar condicionado e o pessoal de uma fábrica de baterias em Abruzzo ameaçou entrar em greve para protestar contra o fato de serem forçados a trabalhar num “calor sufocante”.
Quase se poderia dizer que os antigos gregos previram a atual crise climática quando chamaram Hades, o deus dos mortos, o eufemismo de “Plutão”, o doador de riqueza. Seu nome é uma alusão aos materiais (prata em sua época, combustíveis fósseis e minerais essenciais na nossa) que, uma vez extraídos do submundo, acabam enchendo os bolsos dos plutocratas.
A estrutura plutocrática da sociedade moderna explica a resposta surpreendentemente lenta ao colapso climático. A tão anunciada transição ecológica mal avança, pelo menos no tocante à concentração atmosférica de gases com efeito de estufa. Estes não só continuam a aumentar, como o fazem mesmo a um ritmo acelerado, e o mesmo ocorre com o ritmo do aquecimento global. A transição continua a depender de instituições poderosas e ricas que, mesmo deixando de lado a ganância ou a ganância por estatuto, são forçadas pelo sistema a colocar a acumulação de capital à frente da habitabilidade do planeta.
Neste contexto, a política de transição implica uma luta de classes que vai além da luta da classe trabalhadora em defesa de si mesma e das suas comunidades contra as emergências meteorológicas. Obviamente, isso também faz parte do cenário, mas a luta de classes manifesta-se mais obviamente quando aqueles que estão no poder tentam transferir os custos da transição para as massas. É assim que surge inevitavelmente a resistência. A questão é: que forma assumirá?
Em alguns casos, esta resistência assume a forma de uma reação antiambiental, instigada ou dominada por forças conservadoras e de extrema-direita. Embora se proclamem aliadas das “famílias trabalhadoras”, estas forças denigrem a necessidade mais básica de cada trabalhador: um planeta habitável. Noutras ocasiões adopta uma forma progressista, como é o caso emblemático dos chamados “coletes amarelos” na França. Quando o governo de Macron aumentou os “impostos ecológicos” sobre os combustíveis fósseis como um incentivo para os consumidores comprarem carros mais eficientes, as classes média-baixa e trabalhadora nas zonas rurais, incapazes de pagar esta mudança, vestiram coletes amarelos e mobilizaram-se. Embora o setor radical do movimento operário francês tenha aderido à causa, não conseguiu fundir-se numa força política capaz de oferecer outras soluções para a crise social e ambiental.
A análise das formas de luta, movimentos e ações da classe trabalhadora em relação às mudanças climáticas permite-nos vislumbrar como a transição ecológica poderia ser reorientada seguindo uma linha social liderada pela classe trabalhadora. Neste contexto, o termo “luta de classes” é utilizado num sentido geral para abranger questões como ecologia, reprodução social, sexualidade, identidade, racismo, etc., todas elas relacionadas com a qualidade de vida e tão relevantes para a “força de trabalho”, como salários e condições de trabalho.
Mazzocchi, o líder sindical americano que cunhou o termo “transição justa”, criticou o contrato social do pós-guerra, no qual os líderes sindicais renunciavam à participação nas decisões sobre o processo de produção em troca de melhores salários. O seu radicalismo vermelho-verde surgiu da convicção de que era necessário transformar a totalidade do trabalho e da vida social para alcançar a saúde e o bem-estar da classe trabalhadora.
Resistência dos trabalhadores
O colapso climático tem deixado uma marca cada vez mais profunda nas diferentes formas de luta de classes. Os perigos climáticos já foram integrados nas lutas dos trabalhadores em todo o mundo, lançando novas bases para a mobilização. Além disso, a preparação para situações de emergência tem subido posições em termos de prioridades nas agendas das comissões sindicais de segurança.
A pesquisa de Freya Newman e Elizabeth Humphrys sobre trabalhadores da construção civil em Sydney explora as percepções dos trabalhadores sobre o estresse térmico como uma questão de classe. “Quando está um calor incrível, os nossos chefes nunca saem dos seus escritórios com ar condicionado”, queixou-se um dos entrevistados, “e obrigam-nos a trabalhar em locais horríveis, a temperaturas insanas”. Segundo os investigadores, em locais onde a consciência de classe é maior e os sindicatos mantiveram alguma importância (apesar da tendência geral de enfraquecimento durante a era neoliberal), a pressão da classe trabalhadora alcançou as melhorias mais notáveis na saúde e segurança no contexto da crise climática.
As mobilizações por uma maior proteção contra os riscos meteorológicos, como as que tiveram lugar em Atenas, Roma e na região de Abruzzo, mostram a estreita relação entre as lutas dos trabalhadores e a degradação climática e o colapso ecológico. Outra reação é a resistência contra as repercussões “indiretas”, conceito muito amplo que inclui as revoltas revolucionárias que ocorreram entre 2010 e 2012 no Oriente Médio e no Norte de África, onde a instabilidade meteorológica causou um rápido aumento nos preços dos alimentos, e, mais recentemente, os protestos dos agricultores na Índia.
Demissões “vermelhas” são vestidas de “verde”
Tendo em conta que os veículos elétricos, as energias renováveis e os transportes públicos são peças-chave para a transição ecológica, o que acontece com as pessoas que trabalham nos setores mais poluentes?
Algumas das histórias mais inspiradoras sobre a transição provêm das indústrias automóvel e de armamento. No início da década de 70, os movimentos trabalhistas e sindicais de todo o mundo dedicaram-se à defesa do meio ambiente. Foi assim que os “vermelhos” e os “verdes” adotaram uma linguagem comum. Nos Estados Unidos, por exemplo, o líder do sindicato United Automobile Workers, Walter Reuther, declarou que “a crise ambiental atingiu proporções tão catastróficas que o movimento trabalhista é agora forçado a trazer esta questão para a mesa de negociações de qualquer indústria que contribui de forma quantificável para a deterioração do ambiente em que vivemos”.
Bem, foi precisamente isso que fizeram os trabalhadores da Lucas Aerospace, uma fabricante inglesa de armas. A direção da empresa passou a demitir funcionários, citando a automação e a diminuição das encomendas do governo. Diante dessa situação, os trabalhadores criaram um sindicato não oficial com o nome Combine para representar os empregados que trabalhavam nas suas 17 fábricas. O principal objetivo era estancar a hemorragia das demissões, pressionando o governo Trabalhista a investir em maquinaria para a vida e não para a morte.
Em 1974, eles escreveram um documento de 1.200 páginas no qual detalhavam diversas propostas para reorientar suas competências e maquinários para uma atividade produtiva útil à sociedade, como máquinas de hemodiálise, turbinas eólicas, painéis solares e motores de veículos híbridos e trens leves, ou seja, tecnologias de descarbonização praticamente desconhecidas naquela época. O plano foi rejeitado pelo então governo Trabalhista e pela direção da empresa, que desqualificou os seus criadores como “a brigada do pão integral e das sandálias”. No entanto, a história do Combine ainda permanece.
Em 2021, a Melrose Industries adquiriu a GKN, uma das empresas líderes da indústria automotiva, e anunciou o fechamento de suas fábricas de componentes de transmissão automotiva localizadas nas cidades de Florença e Birmingham. Por um lado, mais de 500 trabalhadores da fábrica britânica responderam com um voto a favor da greve, exigindo que a fábrica fosse convertida numa unidade de produção de componentes para veículos elétricos. Frank Duffy, coordenador sindical da Unite, explicou: “Percebemos que se quiséssemos alcançar um futuro verde para a indústria automóvel britânica e salvar os nossos empregos qualificados, não poderíamos deixar isso nas mãos dos nossos patrões. Tivemos que resolver o problema com nossas próprias mãos”. E, ecoando claramente o Plano Lucas, acrescentou: “Elaborámos um plano alternativo de 90 páginas que detalha como podemos reorganizar a produção” para garantir empregos e acelerar a transição para o transporte movido por motores elétricos”.
Na fábrica irmã de Campi Bisenzio, na Itália, a transição a partir de baixo foi muito mais longe. Os trabalhadores da fábrica já tinham uma vantagem depois de se terem organizado numa comissão industrial democrático (collettivo di fabbrica). Ocuparam as instalações e expulsaram os seguranças, que receberam ordens de intervenção. Desta forma, e em colaboração com acadêmicos e ativistas pela justiça climática, os trabalhadores elaboraram um plano para reconverter o transporte público sustentável e exigiram a sua implementação.
Dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas repetidamente em mobilizações constantes, apoiadas por sindicatos e comunidades locais, bem como por grupos ambientalistas como a Extinction Rebellion (XR) e a FFF. A ocupação de Campi Bisenzio, agora no seu terceiro ano, é a mais longa da história italiana. Após o fracasso dos seus esforços para forçar a Melrose a cancelar o encerramento da fábrica, os trabalhadores mudaram de tática e formaram uma cooperativa que atualmente produz bicicletas de carga. Graças a esta mudança de rumo, conseguiram manter um emprego seguro para parte da força de trabalho original, oferecendo assim um exemplo de como poderiam começar os programas de descarbonização conduzidos pelos próprios trabalhadores.
Nenhuma alternativa viável
Nestes exemplos que oferecemos sobre a indústria automobilística, o processo de transição parece simples, pelo menos do ponto de vista material. Assim, uma fábrica de componentes para automóveis com motor de combustão interna pode ser convertida numa fábrica de veículos elétricos, transportes públicos ou bicicletas. Mas o que acontece com outras indústrias para as quais não existem tecnologias alternativas viáveis? Como devem os trabalhadores destas indústrias responder a esta situação?
Algumas propostas modestas mas ousadas surgiram na Grã-Bretanha em plena crise da Covid-19. Magowan e a equipa do Green New Deal de Gatwick mapearam as muitas formas através das quais as diferentes categorias de competências dos trabalhadores de Gatwick poderiam ser adaptadas a outros empregos nos setores de descarbonização. Graças ao apoio do Sindicato dos Serviços Públicos e Comerciais, encontraram apoio na força de trabalho, entre os quais está um piloto que soube resumir maravilhosamente tudo o que está em jogo:
Voar tem sido o sonho da minha vida. Temos muito medo de enfrentar a possibilidade de perder essa parte importante de nossas vidas, pois perder o emprego é como perder uma parte de nós mesmos. Agora, como pilotos, usamos as nossas competências para identificar esta ameaça existencial ao mundo natural e às nossas vidas. Se fosse uma emergência durante o voo, já teríamos desviado para um destino seguro há muito tempo. Não podemos voar às cegas em direção ao destino pretendido enquanto a cabine de comando se enche de fumaça. O impacto da nossa indústria nas emissões globais é irrefutável. As supostas soluções para “ecologizar” a indústria na sua escala atual estão a décadas de distância e não são nem global nem ecologicamente justas. Dada a crescente consciência ambiental, o setor da aviação deverá encolher, seja através de uma “transição justa” para os trabalhadores, seja como resultado de uma catástrofe. Devemos encontrar uma forma de posicionar os trabalhadores para liderar a revolução verde e, assim, garantir a possibilidade. de nos redirecionarmos para os empregos ecológicos do futuro.
A revolução verde de Gatwick não conseguiu arrancar na primeira tentativa. No entanto, ele foi capaz de gerar uma atmosfera de possibilidade. Durante a fase de “emergência” da pandemia, quando a intervenção governamental estava na ordem do dia, o Gatwick GND estabeleceu ligações com outras iniciativas lideradas pelos trabalhistas para substituir a aviação de curta distância por alternativas de transporte terrestre. Este sindicato abriu o horizonte para uma transição radical impulsionada pelos trabalhadores e lembrou-nos o que está em perigo.
O ambientalismo da luta de classes
As lutas de classes travadas ao longo deste século decidirão a habitabilidade da Terra durante os próximos milênios. Podemos inspirar-nos nas exigências que unem os ativistas e os sindicatos climáticos. Também podemos nos inspirar nas greves escolares contra as alterações climáticas, que introduziram o conceito de greve nas novas gerações.
Contudo, devemos também ter em mente que os exemplos mais proeminentes de militância vermelho-verde ocorreram há meio século. E não é uma coincidência. Os anos 60 e início dos anos 70 testemunharam uma situação revolucionária global, na qual surgiram a militância dos trabalhadores e os movimentos sociais que desafiaram a opressão, a injustiça e a guerra. Este foi o terreno fértil onde pôde germinar a aliança entre o ambientalismo e o radicalismo operário, união que se refletiu no plano Lucas e no ativismo ecossocialista de Mazzocchi, bem como em outras iniciativas pioneiras como as proibições ecológicas, onde se lutou pelos objetivos ambientais através batida.
Pode-se esperar que a crise climática e a transição justa venham à tona de várias maneiras em qualquer nova onda de luta de classes que ocorra. Entre estas formas, haverá retrocessos reacionários, mas também movimentos progressistas, à medida que grupos de trabalhadores deixarão de ver a política climática como o recreio de elites distantes e se tornarão um campo em que a sua intervenção coletiva pode ser decisiva.
IHU-UNISINOS
https://www.ihu.unisinos.br/641436-luta-de-classes-ecologica-a-classe-trabalhadora-e-a-transicao-justa