O teleatendimento cresce no Brasil, mas enfrenta sérios riscos psicossociais. O texto defende saúde mental, sindicatos atuantes e empresas responsáveis.
Introdução
O setor de teleatendimento não para de crescer, empregando milhares de brasileiros e se consolidando como uma das principais fontes de trabalho no país. No entanto, por trás dessa expansão, esconde-se uma dura realidade: condições precárias que expõem profissionais a riscos psicossociais graves. Estresse crônico, ansiedade e burnout não são a exceção, mas a regra.
A OMS – Organização Mundial da Saúde (2023) soa o alarme: um em cada cinco trabalhadores de call centers sofre com transtornos mentais. Essa estatística alarmante reforça a urgência de políticas de proteção à saúde mental. Neste contexto, sindicatos e empresas têm o poder de transformar essa realidade.
Este artigo discute os desafios enfrentados no teleatendimento, a importância da saúde mental no trabalho remoto e como sindicatos fortes e empresas responsáveis podem construir um futuro mais digno e sustentável para esses profissionais.
1. O teleatendimento no Brasil: Crescimento e riscos psicossociais
O teleatendimento emprega milhares de brasileiros, especialmente jovens e mulheres, em funções que exigem alta demanda emocional. Segundo o IBGE (2023), o setor cresceu 47% nos últimos cinco anos. Apesar da expansão, os desafios persistem:
Jornadas exaustivas (muitas vezes acima das 8h diárias);
Cobranças abusivas por metas inatingíveis;
Falta de pausas adequadas, o que aumenta o risco de LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos / Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho);
Exposição constante a situações de estresse, como clientes agressivos e pressão por produtividade.
Estudos da FUNDACENTRO – Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (2022) mostram que 76% dos operadores de teleatendimento relatam sintomas de ansiedade ou depressão, evidenciando a gravidade do problema.
1.1. A saúde mental no centro da discussão
É impossível ignorar o impacto psicológico. Trabalhar em teleatendimento exige alta capacidade de resiliência emocional, pois os profissionais lidam diariamente com:
Reclamações e xingamentos;
Cobranças por scripts rígidos;
Monitoramento constante por meio de ferramentas de gravação e métricas de desempenho.
A NR-1, que estabelece diretrizes gerais de segurança e saúde no trabalho, deve ser aplicada também ao teleatendimento, garantindo:
Intervalos adequados entre ligações;
Limites de jornada;
Acompanhamento psicológico;
Ergonomia no home office (para quem trabalha remotamente).
2. O papel dos sindicatos na defesa dos direitos
Diante desses desafios, a ação sindical se torna vital. Sindicatos fortes são essenciais para pressionar empresas e governos a melhorarem as condições de trabalho no setor. Entre as principais ações estão:
Negociar cláusulas de saúde mental em convenções coletivas;
Exigir treinamentos sobre gestão do estresse;
Fiscalizar o cumprimento das NRs (especialmente a NR-17, sobre ergonomia);
Oferecer suporte jurídico contra assédio moral e cobranças abusivas.
Um exemplo notável é o SINTTEL – Sindicato dos Teleatendentes de São Paulo, que em 2023 garantiu, via acordo coletivo:
Pausas de 10 minutos a cada 2 horas;
Sessões de terapia gratuitas;
Proibição de metas impossíveis.
3. A função social das empresas de teleatendimento
O lucro é importante, mas o bem-estar dos colaboradores é fundamental. A função social da empresa, prevista no CC (Art. 2.035), deve incluir:
Programas de qualidade de vida (como yoga, meditação e apoio psicológico);
Políticas de reconhecimento e valorização, evitando a desumanização do trabalho;
Estrutura ergonômica adequada, incluindo mesas ajustáveis e headsets de qualidade.
Empresas que investem em saúde mental reduzem afastamentos, aumentam a produtividade e melhoram a retenção de talentos.
4. Os desafios jurídicos e a necessidade de estruturação
Muitas empresas ainda ignoram a legislação trabalhista, expondo-se a riscos sérios:
Ações judiciais por assédio moral;
Multas por descumprimento das NRs;
Processos por doenças ocupacionais.
Para evitar esses riscos, é fundamental:
Contar com assessoria jurídica especializada;
Implementar compliance trabalhista;
Manter diálogo constante com os sindicatos.
Conclusão
O teleatendimento não precisa ser sinônimo de adoecimento mental. É possível conciliar produtividade e dignidade por meio da colaboração entre sindicatos fortes, empresas responsáveis que investem em saúde ocupacional e a fiscalização rigorosa das normas trabalhistas. A luta por trabalho digno no teleatendimento é uma luta por uma sociedade mais justa e saudável. É um direito, não um privilégio.
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OMS. Mental Health at Work, 2023.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 2023.
FUNDACENTRO. Saúde Mental em Call Centers, 2022.
BRASIL. CLT e NR-1, Ministério do Trabalho.
SINTTEL. Acordo Coletivo 2023
Andréa Arruda Vaz
Advogada, pesquisadora e escritora, Doutora e Mestre em Direito Constitucional.
As contas externas do Brasil foram deficitárias em US$ 7,1 bilhões em julho de 2025, ante déficit de US$ 5,2 bilhões no mesmo mês do ano passado. O resultado foi divulgado no relatório de estatísticas do setor externo do Banco Central nesta terça-feira (26).
O déficit em transações correntes nos 12 meses encerrados em julho de 2025 somou US$ 75,3 bilhões, o equivalente a 3,5% do PIB (Produto Interno Bruto), enquanto em julho do ano passado as transações correntes foram deficitárias em US$ 30,7 bilhões (1,37% do PIB). Em junho, o déficit foi de US$ 73,3 bilhões (3,43% do PIB).
No mês passado, a balança comercial de bens foi superavitária em US$ 6,5 bilhões. No período, as exportações de bens somaram US$ 32,6 bilhões, aumento de 4,8%, enquanto as importações de bens cresceram 8,3%, totalizando US$ 26,1 bilhões.
No mês passado, a balança comercial de bens foi superavitária em US$ 6,5 bilhões. No período, as exportações de bens somaram US$ 32,6 bilhões, aumento de 4,8%, enquanto as importações de bens cresceram 8,3%, totalizando US$ 26,1 bilhões.
O déficit na conta de serviços totalizou US$ 5 bilhões em julho de 2025, patamar semelhante ao registrado no mesmo período de 2024.
Em junho, as despesas líquidas com viagens internacionais cresceram 34,1%, quando alcançaram US$ 1,6 bilhão. O número é resultado de incrementos de 27,2% (US$ 2,3 bilhões) nas despesas e de 13,3% nas receitas (US$ 696 milhões).
Também aumentaram as despesas líquidas de serviços de telecomunicação, computação e informações (52,7%); de propriedade intelectual (26,2%); e de aluguel de equipamentos (7%). Por outro lado, houve retração de 17% nas despesas líquidas de transportes, para US$ 1,1 bilhão.
O relatório do BC mostrou também que o déficit em renda primária somou US$ 8,9 bilhões em julho de 2025 — 18,1% acima do déficit de US$ 7,5 bilhões de julho de 2024.
Em julho de 2025, as despesas líquidas de lucros e dividendos, associadas aos investimentos direto e em carteira, totalizaram US$ 4,7 bilhões, ante US$ 3,2 bilhões em julho de 2024. No mês, destaca-se a redução de US$ 1,1 bilhão das receitas (US$ 1,5 bilhão em julho de 2025 ante US$ 2,6 bilhões em julho de 2024).
IDP
Os IDP (investimentos diretos no país) registraram ingressos líquidos de US$ 8,3 bilhões em julho de 2025, ante US$ 7,2 bilhões em julho de 2024. Os ingressos líquidos em participação no capital atingiram US$ 6,8 bilhões. Desse total, US$ 3,2 bilhões compreendem participação no capital exceto lucros reinvestidos e US$ 3,6 bilhões são referentes a lucros reinvestidos.
As operações intercompanhia somaram ingressos líquidos de US$ 1,5 bilhão no mês passado. O IDP acumulado em 12 meses totalizou US$ 68,2 bilhões (3,17% do PIB) no mês. Em julho do ano passado, somava US$ 65,2 bilhões (2,9% do PIB).
Em julho, os investimentos em carteira no mercado doméstico totalizaram saídas líquidas de US$ 192 milhões, resultado de saídas líquidas de US$ 1,1 bilhão em ações e fundos de investimento e ingressos líquidos de US$ 908 milhões em títulos de dívida. Nos 12 meses encerrados em julho, os investimentos em carteira registraram ingressos líquidos de US$ 3,1 bilhões.
A desvalorização acumulada até junho foi de 11% no U.S. Dollar Index, criado pelo Federal Reserve (Fed), o banco central americano, e que compara o dólar a outras seis moedas — o euro, yen japonês, a libra esterlina, o dólar canadense, o krona sueco e o franco suíço.
Quedas como essa já foram registradas em outros momentos. Mas, desta vez, a desvalorização acontece ao mesmo tempo que outros eventos que preocupam alguns economistas, o que tem feito cada vez mais investidores, analistas financeiros e outras pessoas no ramo bancário questionarem a força do dólar americano, de acordo com fontes do próprio setor.
Um dos pontos de preocupação apontados é a queda pequena, mas gradual, na participação da moeda nas reservas cambiais dos bancos centrais ao redor do globo.
Somam-se a isso uma fuga de capital estrangeiro no mercado de títulos do Tesouro dos Estados Unidos e críticas sobre a forma como o governo americano tem usado a dominância do dólar para aplicar sanções em temas geopolíticos, segundo especialistas.
A atual política de tarifas do governo de Donald Trump — e os rumores no mercado sobre a possibilidade de um enfraquecimento deliberado da moeda por parte da Casa Branca para impulsionar a indústria americana — também tem gerado especulações.
Mas enquanto alguns demonstram preocupação, outros são céticos em relação ao apetite do mercado em buscar alternativas ou à capacidade de qualquer outra moeda de alcançar o status atingido pela americana.
Desde então, tornou-se a mais usada nas reservas globais e nas transações no sistema Swift, uma rede de pagamentos globais que conecta 11 mil instituições financeiras em mais de 200 países.
Então, afinal, quão profunda é a desconfiança em torno da moeda que domina as transações comerciais em todo o mundo? E o que dizem aqueles que ainda preveem uma longa vida de dominância para o dólar?
O primeiro tem relação com a queda do dólar nas reservas internacionais — ou o conjunto de ativos externos em moeda estrangeira mantidos pelos bancos centrais ou autoridades monetárias para garantir sua estabilidade econômica e financeira.
A soma das reservas mundiais em moedas estrangeiras equivalia a mais de US$ 12 trilhões em março de 2025, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Desse total, mais de 57% estava alocado em dólar.
Ou seja, a moeda americana ainda domina. No entanto, no começo dos anos 2000, essa fatia superava 70%.
E enquanto o dólar viu uma diminuição em sua participação, o total em renminbis chineses dobrou na última década.
Vale notar, no entanto, que as reservas na moeda chinesa ainda representam apenas 2% do total, bem atrás de outras mais tradicionais, como o euro e a libra esterlina.
Segundo especialistas, no entanto, a principal tendência de “desdolarização” das reservas cambiais está relacionada à crescente demanda por ouro, que é visto como uma alternativa às moedas globais.
Atualmente, o ouro corresponde a 9% das reservas de mercados emergentes, mais do que o dobro dos 4% observados há uma década.
Mercado de commodities e títulos do Tesouro
Outros fatores que, segundo a análise do JP Morgan, indicariam uma tendência de “desdolarização” são o uso de outras moedas no comércio internacional e a queda das participações estrangeiras nos títulos de renda fixa de dívida pública do governo norte-americano.
Quando o assunto é a moeda usada nas transações internacionais, há várias formas de medir qual é a mais influente. E o dólar ainda domina em termos de volumes de câmbio, faturamento comercial, denominação de passivos transfronteiriços (dívidas ou obrigações financeiras de um país, empresa ou banco perante credores estrangeiros) e emissão de dívida em moeda estrangeira.
Mas, segundo analistas, a moeda americana vem perdendo espaço como referência nos mercados de commodities, especialmente no setor de energia.
Por conta das sanções internacionais aplicadas contra a Rússia, o país tem usado moedas locais para as exportações de petróleo e derivados. Com isso, nações como Índia, China, Brasil, Tailândia e Indonésia podem comprar petróleo a preços mais baixos e pagar com suas próprias moedas.
Já as posições estrangeiras em títulos americanos vêm sendo reduzidas há 15 anos.
Os títulos do Tesouro dos Estados Unidos — assim como os de outros países com economia forte — costumam ser vistos como investimentos de refúgio, para onde muitos direcionam seu dinheiro em momentos de crise nos mercados, como quedas nas bolsas de valores.
E, embora os investidores estrangeiros continuem sendo o maior componente do mercado de títulos do Tesouro americano, sua participação vem caindo.
Antes da grande crise financeira global de 2008, mais de 50% dos títulos estavam na mão de compradores de fora dos EUA. Agora, caiu para 30%, segundo o JP Morgan.
“Em termos de transações internacionais, há um declínio muito modesto na porcentagem do que ocorre em dólar”, diz Luis Oganes, chefe de Pesquisa Macro Global no J.P. Morgan, à BBC News Brasil.
“Onde estamos observando a desdolarização, e certamente um grande afastamento do dólar, é nas reservas cambiais dos bancos centrais e na denominação monetária das transações de commodities.”
Após acumular no primeiro semestre de 2024 a maior desvalorização registrada até aquele momento desde 1973, os índices que medem o valor do dólar ensaiaram uma recuperação em meados de julho, mas voltaram a cair em agosto.
Segundo relatório do banco Morgan Stanley, embora a moeda tenha se fortalecido 3,2% em julho, o declínio deve continuar, possivelmente adicionando outros 10% em perdas até o final de 2026.
Além disso, no início de abril deste ano, as bolsas dos Estados Unidos tiveram a sua pior semana desde a pandemia de covid-19, com o índice S&P 500 de Wall Street, que inclui as maiores empresas americanas, com uma queda de 10%.
Em seguida, bolsas de todo o mundo despencaram. No Brasil, o dólar caiu mais de 12%.
Tudo aconteceu diante de anúncios do presidente Donald Trump sobre a adoção de uma onda sem precedentes de tarifas de importação.
Em abril, o republicano divulgou sua intenção de adotar uma tarifa básica universal de 10% sobre todas as importações para os EUA.
O prazo para entrada em vigor da medida foi adiado algumas vezes depois disso, e novas alíquotas foram anunciadas para alguns países específicos.
Desde que foi anunciado, o tarifaço de Trump preocupa investidores, que temem seu efeito sobre os lucros corporativos e a desaceleração em massa do crescimento econômico.
Isso faz com que alguns tentem se proteger de novas quedas do dólar e diminui a confiança na economia americana e em sua moeda, dizem especialistas.
Como resultado, investidores estrangeiros venderam US$ 63 bilhões em ações de empresas listadas em bolsas dos EUA entre março e abril de 2025, segundo o banco Goldman Sachs.
O mesmo vale para o mercado de títulos, que serve como um termômetro da confiança na economia de um país.
Quando há muitas compras, isso é um sinal de confiança. Mas, se os investidores começam a vender — como aconteceu nos Estados Unidos após os anúncios de Trump sobre as tarifas — é porque algo não vai tão bem.
“Existe um movimento de desvalorização e de aumento da desconfiança no dólar que foi agravado pelo presidente Donald Trump e as suas políticas erráticas e imprevisíveis em relação à política comercial americana”, avalia Fernanda Brandão, coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Por que a confiança no dólar está caindo?
Mas a aplicação de novas tarifas pelo governo americano não é o único fator que, segundo os especialistas, vem erodindo a segurança no dólar.
Países, empresas, bancos ou indivíduos sancionados pelos EUA podem ser totalmente excluídos do sistema monetário financeiro internacional e do sistema de pagamentos global, a depender do nível das sanções.
“As tarifas foram um choque adicional que se se somam ao congelamento dos ativos russos e da exclusão de alguns bancos russos da parcela do dólar do sistema financeiro internacional”, diz McCauley.
Segundo o pesquisador da Universidade de Boston, essas práticas podem estar encorajando alguns atores a tentar contornar o dólar para evitar, eventualmente, serem colocados em uma situação semelhante.
Os títulos do Tesouro americano ocupam há décadas “a base da pirâmide da estrutura das finanças internacionais” como os ativos mais seguros, afirma o especialista. Mas quando detentores importantes, como bancos ou investidores russos, passam a ter seus ativos congelados, essa ideia fica ameaçada.
“A presunção é que os títulos do Tesouro dos EUA são o lugar certo para se recorrer quando as coisas ficam difíceis”, diz McCauley.
“Mas o fato de que o ativo de refúgio pode repentinamente se tornar ativo nenhum para um grande detentor é um choque. Faz os investidores pensarem melhor.”
Outro ponto levantado é o aumento dos déficits fiscais dos países desenvolvidos nos últimos anos.
No caso dos Estados Unidos, o país terminou 2024 com US$ 35,46 trilhões em dívida federal, uma quantia que equivale a 123% do seu PIB, de acordo com o Tesouro americano.
Segundo Luis Oganes, há um temor entre investidores de que, no futuro, possa haver pressão sobre a moeda para que ela se desvalorize, a fim de reduzir ou liquidar os déficits comerciais — para alguns economistas, isso tornaria as exportações americanas mais competitivas, porque ficam mais baratas para os compradores estrangeiros.
“Há uma sensação de que há necessidade de diversificar as moedas, especialmente em países de mercados emergentes. No passado, vimos países encontrarem dificuldades quando sua relação dívida/PIB aumentou muito, o que poderia eventualmente levar à pressão sobre suas moedas para se depreciarem a fim de reduzir ou liquidar o ônus da dívida”, diz Oganes.
“Isso está se combinando com razões geopolíticas para fazer os investidores de longo prazo questionarem a sensatez de manter a alocação ao dólar ou se deve haver uma mudança estrutural ou uma maior diversificação.”
O pesquisador do J.P.Morgan afirma ainda que há a expectativa de que o Fed anuncie novos cortes nas taxas de juros nos próximos meses, o que pode reduzir o apelo do dólar para os investidores.
Com juros menores nos EUA, os rendimentos de títulos americanos caem, e os investidores podem buscar países com juros maiores, o que aumenta a oferta de dólar no mercado e faz seu valor cair.
O Fed normalmente reduz a taxa de juros quando a economia está em dificuldades e a aumenta se o ritmo de alta dos preços começar a acelerar demais.
As autoridades do banco central americano há muito tempo indicam que esperam reduzi-las em algum momento deste ano, seguindo os passos de outros bancos centrais, incluindo o do Reino Unido.
Mas eles têm adiado a redução por muito mais tempo do que o previsto, preocupados com o impacto das tarifas e outras novas políticas do governo Trump, incluindo cortes de impostos, na economia.
Há ainda cada vez mais setores acusando o presidente americano de interferência no banco central americano, algo que também pode afastar investidores.
O presidente americano chegou a ameaçar demitir o chefe do Fed, Jerome Powell embora tenha dito recentemente que não considerava mais tal medida necessária.
Nesta semana, Trump anunciou que demitiria Lisa Cook, uma das diretoras do Fed e membro do comitê de 12 membros responsável por definir as taxas de juros nos EUA. Ele a acusa de fraude em um contrato imobiliário pessoal.
Cook, que tem mandato previsto para durar até 2038, contesta a ordem de Trump, dizendo que ele não tem autoridade para isso, e se nega a pedir demissão. Seu advogado anunciou na terça-feira (26/08) um processo na Justiça contra a ordem do republicano, indicando uma longa disputa judicial sobre a questão.
Trump também atacou o Fed por demorar muito para cortar as taxas de juros, afirmando que a medida ajudaria o governo a economizar dinheiro no pagamento da dívida pública e impulsionariam o mercado imobiliário.
O presidente minimizou ainda nos últimos meses as preocupações de que suas tarifas pudessem elevar os preços ou prejudicar o crescimento do país.
Brics e desdolarização
Há ainda quem considere que a desconfiança em relação ao dólar data de antes da maior parte das sanções ou do tarifaço e suas consequências.
“Essa crise é simbólica e importante porque apontou ou mostrou as vulnerabilidades em se depender do dólar como a moeda global.”
Segundo Brandão, depois desse momento, o mundo passou a ter mais clareza sobre o fato de que qualquer perturbação na economia americana que altere as políticas monetárias colocadas em práticas pelo Fed e pela Casa Branca pode gerar “consequências que vão afetar outras economias”.
E, segundo a especialista, é a partir daí que surgem os primeiros movimentos políticos encabeçados por nações em desenvolvimento em prol da desdolarização.
Para Fernanda Brandão, o fato de muitos países emergentes terem sofrido as consequências da crise financeira de 2008, apesar da crise ter começado nos EUA, fez com que o Brics adotasse uma política de desdolarização desde sua criação.
“A partir dali ficou muito claro que existe uma vulnerabilidade causada pela dependência em relação ao dólar”, diz Brandão.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou seus desejos de desdolarização do comércio global durante a última cúpula do Brics, em julho no Rio de Janeiro.
“Acho que o mundo precisa encontrar um jeito de que a nossa relação comercial não precise passar pelo dólar. Quando for com os EUA, ela passa pelo dólar. Quando for com a Argentina ou China, não precisa. Ninguém determinou que o dólar é a moeda padrão. Em que fórum foi determinado?’, disse Lula.
Na ocasião, o presidente brasileiro afirmou ainda que a substituição de dólar no comércio internacional é “uma coisa que não tem volta, vai acontecer até que seja consolidada”.
O Brics já ampliou o uso das moedas nacionais de seus membros no comércio interno, em especial da chinesa. E a Rússia vem impulsionando o estabelecimento de uma plataforma digital própria para pagamentos, em uma tentativa de minimizar os impactos das sanções internacionais.
O bloco também discute a criação de uma moeda própria. Nada oficial foi anunciado até agora, mas as tratativas já foram vistas como uma ameaça pelo governo americano.
Trump já afirmou que o grupo é “um ataque ao dólar” e usou a participação da Índia no bloco como um agravante para a imposição de tarifas mais altas às exportações do país no Estados Unidos.
“Eles têm o Brics, que é basicamente um grupo de países que são anti-Estados Unidos”, disse o presidente americano no final de julho. “É um ataque ao dólar, e não vamos deixar ninguém atacar o dólar.”
Qual o plano de Trump?
Dentro do governo Trump, parece haver perspectivas conflitantes e por vezes contraditórias sobre o que o domínio do dólar significa para os interesses políticos dos EUA, dizem analistas.
Por um lado, com suas declarações sobre os Brics e alternativas de pagamentos globais, Trump trata o papel internacional da moeda como um símbolo do nacionalismo americano e de sua estratégia de “America first” (América em primeiro lugar, em português).
Uma lei aprovada em julho nos Estados Unidos, que regulamenta as “stablecoins” com valor fixo em relação ao dólar, parece servir esse plano.
Essas criptomoedas são projetadas para manter paridade com o valor do dólar e oferecer mais estabilidade dentro do ecossistema cripto. Por isso, dizem alguns economistas, elas podem ampliar ainda mais a preponderância da moeda americana no sistema financeiro mundial.
Por outro lado, com sua política tarifária, Trump arrisca minar o domínio do dólar, segundo Fernanda Brandão, do Mackenzie.
Especula-se na imprensa e no mercado que esse pode ser exatamente seu objetivo, seguindo uma corrente dentro da Casa Branca que prega que a força da moeda americana pode estar impedindo o avanço da indústria americana, como aponta em um artigo recente o centro de estudos de relações internacionais Atlantic Council.
Essa ideia é defendida principalmente por Stephen Miran, ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo americano que foi recentemente nomeado por Trump para o Conselho de Governadores do Fed.
Em um artigo publicado em 2024, Miran afirma que por conta de sua posição como reserva mundial, o dólar “está persistentemente supervalorizado”, levando a desequilíbrios comerciais e prejudicando os próprios cidadãos dos EUA.
A demanda global por dólares, segundo este argumento, aumenta seu valor, encarecendo os produtos fabricados nos EUA — o que, por sua vez, gera déficits comerciais persistentes, e incentiva os fabricantes americanos a transferir a produção para o exterior, destruindo empregos locais.
Outros assessores de Trump também já defenderam a ideia de que um enfraquecimento do dólar poderia tornar as exportações americanas mais competitivas no mercado internacional, uma vez que ficam mais baratas para os compradores estrangeiros. Ao mesmo tempo, os produtos importados que entram nos EUA aumentariam de preço.
“Trump não quer um dólar forte porque isso aumenta as importações”, afirmou Gabriela Siller, diretora de análise econômica do grupo financeiro BASE, com sede no México, em junho à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Uma teoria é que Trump tem um plano com vários de seus principais conselheiros — o chamado “Acordo Mar-a-Lago”, que teria sido proposto por Miran, com o objetivo final de obrigar os parceiros comerciais dos EUA a desvalorizar o dólar americano no mercado internacional, aponta Anthony Zurcher, correspondente da BBC na América do Norte.
Tal medida tornaria as exportações americanas mais acessíveis aos mercados estrangeiros e diminuiria o valor das grandes reservas de moeda americana da China.
Mas ideias defendidas por Miran e outros assessores de Trump não são bem aceitas por uma parcela dos economistas.
“O plano de Miran, por mais astuto que pareça, se baseia em um diagnóstico equivocado”, escreveu Kenneth Rogoff, professor de economia e políticas públicas da Universidade de Harvard, nos EUA, e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Embora a função do dólar como principal moeda de reserva do mundo tenha um papel importante, o economista observa que “este é apenas um dos muitos fatores que contribuem para os persistentes déficits comerciais dos EUA”.
E, se o déficit comercial tem várias causas, “a ideia de que as tarifas podem ser uma panaceia é, na melhor das hipóteses, duvidosa”, acrescenta.
É importante ressaltar que, a rigor, o presidente não controla diretamente o valor do dólar em relação a outras moedas porque a taxa de câmbio flutua livremente.
Washington não pode intervir diretamente para fazer a moeda subir ou descer, já que seu valor é determinado por um vasto mercado global de divisas, e são os grandes investidores que compram ou vendem dólares de acordo com suas expectativas.
No entanto, a política econômica do governo dos EUA envia sinais ao mercado, e isso influencia a evolução do valor do dólar e outros fatores importantes, como as taxas de juros.
Dólar ainda ‘é rei’
Mas os últimos acontecimentos não são um sinal do fim da hegemonia da moeda americana na visão de parte dos analistas.
Para alguns dos especialistas consultados pela BBC News Brasil, o início do fim do dólar ainda não chegou. “A afirmação de que estamos vivendo o começo do fim do dólar é prematura”, diz Robert McCauley, da Universidade de Boston.
Apesar de uma retração em alguns setores, a moeda ainda impera quando falamos de transações em comércio internacional. E segundo a grande maioria dos analistas, não há no momento nenhuma outra capaz de substituí-la.
“A dolarização provavelmente continuará, mas o que vai limitá-la, a velocidade com que ela pode se desenvolver, é o fato de que ‘para onde ir em vez disso’, certo? Não há muitas outras moedas líquidas ou países nos quais você pode investir facilmente ou com um mercado de liquidez profunda”, afirma Luis Oganes.
Mesmo a moeda chinesa, que tem crescido e sendo usada por muitos bancos centrais para reservas, não tem ainda força suficiente ainda para substituir o dólar, segundo os especialistas.
Além disso, os depósitos bancários em dólar americano cresceram em muitos países emergentes na última década, indicando uma tendência de busca pela moeda americana em momentos de estresse econômico.
Há ainda quem argumente que mesmo países como Rússia e China, que promovem a discussão sobre a desdolarização, tem dificuldade de se desvincular totalmente do dólar americano.
“Me impressiona o quão lenta a desdolarização foi na Rússia, apesar da clara intenção do governo de reduzir sua exposição ao dólar americano”, diz Robert McCauley.
“Acredito que isso se deve ao fato de o setor privado não ser facilmente persuadido a abandonar o uso do dólar como forma de empréstimo e transação, mesmo em detrimento da moeda nacional.”
O especialista afirma ainda que a China não tem usado todo o potencial de seus empréstimos ou projetos de infraestrutura em países em desenvolvimento em meio à Iniciativa Cinturão e Rota para impulsionar alternativas à moeda americana.
“As autoridades chinesas parecem estar satisfeitas em conceder empréstimos pelo Banco de Exportação-Importação da China [China Eximbank] e pelo Banco de Desenvolvimento da China (CDB) a países africanos e asiáticos em dólar”, diz McCauley.
“Há uma excelente oportunidade para desdolarizar as contas externas da China, mas que não tem sido aproveitada.”
O PL 638/2019, de autoria da deputada Luzianne Lins (PT-CE), aprovado pela Câmara dos Deputados no último dia 1º de julho, representa uma iniciativa transformadora para o reconhecimento formal da economia do cuidado no Brasil.
O texto propõe a aferição do valor econômico e do impacto da “economia do cuidado” no desenvolvimento econômico e social do país por meio de uma conta-satélite vinculada ao Sistema de Contas Nacionais (SCN), além de alterar a Lei 7.735/1985 para incluir nas competências do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher o acompanhamento da implementação dessa conta-satélite.
O projeto surge em um cenário de reconhecida importância das chamadas atividades de cuidado não remunerado para a manutenção da vida, da sociedade e da própria economia.
Essas atividades, desempenhadas majoritariamente por mulheres, integram a “economia do cuidado”, que, conforme definida no projeto, engloba um conjunto de atividades essenciais à reprodução social e ao bem-estar da população, incluindo tarefas domésticas, cuidados diretos a crianças, idosos, pessoas com deficiência e enfermos, além de serviços comunitários não remunerados. Apesar de indispensáveis para a manutenção da força de trabalho e da sociedade, não são contabilizadas como produção econômica.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2022, analisados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Brasil, o fato de ser mulher acrescenta, em média, 11 horas semanais no trabalho doméstico e de cuidado não remunerado em relação aos homens[1].
Em 2022, as mulheres despenderam semanalmente 21h36min, e os homens 11h48min neste trabalho[2]. As mulheres dedicam, em média, 25,7 horas semanais a trabalhos domésticos e de cuidados não remunerados, enquanto os homens dedicam cerca de 10,8 horas por semana a essas atividades.
Considerando a “dupla jornada”, com uma diferença de aproximadamente 11,1 horas semanais em afazeres domésticos, as mulheres acumulam, ao longo de um ano, cerca de 577 horas a mais que os homens, o que corresponde a aproximadamente 72 dias de trabalho adicional por ano (considerando uma jornada diária de 8 horas).
Estudo do Ipea, publicado em 2023[3], com base na PNAD Contínua de 2022, reforça que as mulheres, especialmente as mais pobres, enfrentam uma carga significativamente maior de trabalho não remunerado. O estudo aponta que mulheres em domicílios com renda de até um quarto de salário-mínimo por pessoa dedicam, em média, 25,7 horas semanais a afazeres domésticos, enquanto as mais ricas (com renda superior a 8 salários-mínimos por pessoa) dedicam 15,5 horas.
Essa desigualdade de gênero no trabalho doméstico e de cuidados não remunerados tem impactos negativos na vida das mulheres, especialmente em termos de tempo disponível para lazer, educação ou progressão na carreira.
Essa sobrecarga, conhecida como “dupla jornada”, impacta negativamente o tempo disponível para lazer, educação e progressão profissional, especialmente entre mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica. As tarefas de cuidado, historicamente invisibilizadas e majoritariamente desempenhadas por mulheres, não são contabilizadas como produção econômica, apesar de serem indispensáveis para a manutenção da sociedade e da força de trabalho.
O PL 638 alinha-se aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, particularmente o ODS 5, que promove a igualdade de gênero, e o ODS 8, que foca no trabalho decente e no crescimento econômico inclusivo.
A proposta complementa a Lei 15.069/2024, que instituiu a Política Nacional de Cuidados, visando garantir a corresponsabilização social e entre gêneros na provisão de cuidados, considerando as múltiplas desigualdades estruturais presentes na sociedade brasileira.
O reconhecimento da economia do cuidado é um passo fundamental para visibilizar o trabalho não remunerado, majoritariamente feminino, e subsidiar políticas públicas que promovam igualdade, proteção social e valorização do trabalho doméstico.
A proposta busca criar um mecanismo sistemático para quantificar e valorizar essas atividades, que, apesar de sua relevância socioeconômica, permanecem ausentes das contas nacionais.
No mercado de trabalho formal, segundo dados do Dieese, em 2022 25% dos homens tinham jornada de trabalho semanal superior a 44 horas. As mulheres ocupadas tinham jornada de 55,1 horas semanais, quando somados afazeres domésticos e outros trabalhos[4].
Apesar da relevância socioeconômica dessas funções, não há ainda um mecanismo sistemático que quantifique e valorize formalmente essa economia do cuidado no Brasil, onde as desigualdades de gênero são marcantes, e a visibilidade dessa economia pode ser um avanço significativo.
A proposta central do PL é a criação de uma conta-satélite no âmbito do SCN para mensurar o valor econômico e o impacto social do trabalho de cuidado não remunerado, abrangendo atividades como organização do lar, preparação de alimentos, limpeza, cuidados diretos a dependentes e serviços comunitários voluntários.
Diferentemente do PIB, que se restringe a atividades mercantis, a conta-satélite permitirá capturar atividades não monetizadas, funcionando como um indicador socioeconômico complementar, sem integrá-las ao cálculo oficial do PIB. Essa abordagem preserva a metodologia tradicional do PIB, mas cria espaço para novas métricas que podem, no futuro, apoiar a incorporação do trabalho não remunerado nas contas nacionais.
A conta-satélite será baseada na Pesquisa de Uso do Tempo, conduzida pelo IBGE em 2009 e 2019, que coleta dados detalhados sobre o tempo dedicado a atividades domésticas e de cuidado, permitindo estimativas econômicas por meio de técnicas de valoração, como o custo de oportunidade ou o custo de substituição.
A implementação da conta-satélite exigirá coordenação intersetorial entre o IBGE e os Ministérios da Fazenda, Planejamento e Orçamento, Mulher, Família e Direitos Humanos, com atualizações dos dados previstas a cada cinco anos. Os resultados subsidiarão a formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas voltadas ao cuidado, promovendo a institucionalização do tema na agenda de desenvolvimento nacional.
O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher desempenhará um papel crucial no acompanhamento da implementação, em parceria com universidades, órgãos de controle e organizações sociais, reforçando a perspectiva de gênero. Essa abordagem reconhece que a maior parte do trabalho de cuidado é realizada por mulheres, especialmente em situação de vulnerabilidade, e busca promover políticas que reduzam as disparidades relacionadas ao tempo e à carga de cuidado, que limitam a participação feminina em outras esferas da vida.
O impacto socioeconômico da proposta é amplo e significativo. Ao visibilizar o trabalho de cuidado, o PL contribuirá para a redução das desigualdades de gênero, alinhando-se à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), ratificada pelo Brasil em 2002.
Dados do Fórum Econômico Mundial (2023) posicionam o Brasil na 89ª colocação no Índice de Desigualdade de Gênero, e a formalização da economia do cuidado pode impulsionar políticas públicas que ampliem o acesso a creches, serviços de assistência a idosos e programas de proteção social para cuidadores informais. Essas medidas podem aliviar a sobrecarga sobre as mulheres, promovendo maior equidade na divisão do trabalho e melhores condições para sua inserção no mercado formal, educação e lazer.
Estudos internacionais reforçam a relevância econômica do trabalho de cuidado não remunerado. O Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2018 estima que, em 53 países, esse trabalho representa cerca de 9% do PIB global, com variações de 2,1% a 41,3% dependendo do país e da metodologia utilizada.
No Brasil, cálculos[5] indicam que o trabalho doméstico não remunerado equivale a aproximadamente 11% do PIB, o que, considerando o PIB de 2024 (R$ 11,7 trilhões), representaria entre R$ 1,2 e R$ 1,75 trilhões. A ONU Mulheres e a Cepal (2021) apontam que, na América Latina, o trabalho não remunerado das mulheres contribui com 15,9% a 25,3% do PIB, sendo 75% desse valor atribuído às mulheres. Esses números destacam o impacto potencial da conta-satélite na economia brasileira, fornecendo uma base empírica para políticas públicas mais assertivas.
Experiências internacionais oferecem referências valiosas para o PL 638/2019. A Austrália, pioneira desde 2006, utiliza a Pesquisa de Uso do Tempo e o método de custo de substituição para estimar o trabalho não remunerado, que representa 41,6% a 58,7% do PIB. O Canadá, com atualizações entre 2015 e 2019, calculou que o trabalho doméstico não remunerado equivale a 37,2% do PIB (US$ 860,2 bilhões em 2019).
O México, desde 2013, estima esse trabalho em 26,3% do PIB (2019), utilizando dados da Pesquisa Nacional sobre o Uso do Tempo para subsidiar políticas de igualdade de gênero, como licenças parentais igualitárias. Na União Europeia, países como a Suécia utilizam contas-satélite para estimar valores entre 25% e 40% do PIB, apoiando políticas de parentalidade e creches universais.
O PL 638 posiciona o Brasil em linha com essas práticas, mas destaca-se por vincular explicitamente a implementação ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, reforçando o foco na igualdade de gênero.
A implementação da conta-satélite enfrenta desafios significativos. A quantificação do trabalho de cuidado é metodologicamente complexa, envolvendo aspectos econômicos, sociais e emocionais, além da subjetividade na definição das atividades. A exclusão desses dados do cálculo do PIB pode ser vista como uma limitação, mantendo o trabalho de cuidado à margem da economia formal.
Além disso, a efetividade da proposta dependerá de vontade política, investimento em capacitação técnica e coordenação entre instituições governamentais, universidades e sociedade civil. Outro desafio é garantir que os dados gerados se traduzam em políticas públicas eficazes, como a redistribuição das responsabilidades de cuidado, a ampliação de serviços públicos de qualidade e a valorização do trabalho feminino.
O PL 638 é uma iniciativa inovadora que posiciona o Brasil na vanguarda do reconhecimento da economia do cuidado, uma dimensão essencial para a sustentabilidade social e econômica do país. Ao visibilizar o trabalho predominantemente feminino, muitas vezes desvalorizado, o projeto fomenta o debate sobre justiça social e igualdade na divisão do trabalho doméstico e de cuidado.
Sua implementação pode transformar a forma como o Brasil aborda o desenvolvimento nacional, promovendo políticas públicas que reduzam as desigualdades estruturais, especialmente de gênero, e alinhem o país com compromissos internacionais de direitos humanos e desenvolvimento sustentável.
A criação da conta-satélite fornecerá uma base empírica robusta para políticas de cuidado, como incentivos à formalização do trabalho doméstico, ampliação de serviços públicos e redistribuição das responsabilidades de cuidado, contribuindo para um futuro mais equitativo e inclusivo.
[5] Ver Hildete Pereira de Melo e Lucilene Morandi. Mensurar o trabalho não pago no Brasil: uma proposta metodológica. Economia e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 1 (71), p. 187-210, janeiro-abril 2021.
Luiz Alberto dos Santos é consultor legislativo (aposentado) do Senado. Mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais/Estudos Comparados, advogado e professor colaborador da Ebape/FGV
“A pejotização é ainda mais grave que a terceirização, pois prejudica não apenas os trabalhadores diretamente, mas todo o país, ao fragilizar o sistema de proteção social”, afirmou o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, durante reunião com representantes da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (Contar), na terça-feira (12/8).
Segundo Marinho, essa modalidade não apenas prejudica diretamente os trabalhadores, como compromete todo o sistema de proteção social. Ao substituir vínculos formais por contratos de prestação de serviços via CNPJ, há uma queda significativa na arrecadação de fundos essenciais, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o Sistema S e a Previdência Social, recursos fundamentais para o pagamento de benefícios como seguro-desemprego, aposentadorias, auxílios e para o financiamento de programas de qualificação profissional.
Além disso, afirmou que a pejotização fragiliza a rede de direitos trabalhistas construída ao longo de décadas, retirando garantias como férias remuneradas, 13º salário, licença-maternidade e estabilidade em situações específicas. Para o ministro, essa prática integra um processo mais amplo de precarização das relações de trabalho, com impactos sociais e econômicos severos.
O tema será debatido em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), e o ministro defendeu a participação ativa de representantes da sociedade civil organizada, considerando a relevância estratégica do debate para o futuro do trabalho e para a preservação das políticas públicas de proteção ao trabalhador no país.
A audiência pública
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) marcou para o dia 10 de setembro de 2025 uma audiência pública para discutir a pejotização no Brasil. No despacho chamando para a reunião, o ministro elencou perguntas exemplificativas que ele pretende discutir, que vão desde o que se entende por pejotização, a dimensão do fenômeno na economia brasileira, qual o impacto financeiro da pejotização na arrecadação tributária da União e no equilíbrio do sistema previdenciário, como se dá o tratamento tributário de pessoas físicas versus pessoas jurídicas no contexto da pejotização, dentre outros tópicos.
A relação de inscritos habilitados a participar da audiência pública será divulgada nesta sexta-feira (15/8). A audiência será transmitida pela TV Justiça e pela Rádio Justiça.
O caso concreto do ARE 1532603 versa sobre um franqueado que buscava o reconhecimento de vínculo empregatício com uma franqueadora. Porém, ao admitir a repercussão geral do caso, a discussão foi expandida para decidir a “competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade”.
Gilmar Mendes deu entrevistas dizendo que poderia levar o caso a julgamento neste segundo semestre. Contudo, o ministro Edson Fachin assume a presidência do Supremo no dia 29 de setembro, o que deixa a dúvida se ele colocaria o tema tão logo no plenário físico. Por ora, já são mais de 25,6 mil processos suspensos na Justiça do Trabalho em todo o país, segundo dados fornecidos pela Gestão de Precedentes do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Atualmente são mais de 15 milhões de Microempreendedores Individuais (MEIs) no Brasil e cerca de 1,5 milhão de trabalhadores por aplicativos.